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Steen Hartung está coberto de neve, que começou a cair no bairro onde anda a dar voltas. O álcool das pequenas garrafas é a única coisa que o aquece, mas em breve acaba-se, e lembra-se de que tem de parar na bomba de gasolina de Bernstorffsvej. Sobe a mais um alpendre, decorado com um cortejo de abóboras esculpidas cobertas de neve, e toca a mais uma campainha. Enquanto espera, olha para trás por um momento, para as pegadas que deixou na neve e para o remoinho de grandes flocos que se agitam no ar. Algumas portas abrem-se, outras não, e pelo tempo de espera Steen percebe que esta é uma das portas que não se vão abrir. Quando se vira e começa a descer as escadas, ouve o som da porta a abrir-se. Os olhos que o fitam são familiares. É um estranho, mas ao mesmo tempo Steen sente que o reconhece. Mas Steen está cansado, caminhou durante horas sem resultados, e o cansaço fá-lo duvidar de si próprio. Uma parte dele concluiu que o único propósito daquela busca é aliviar a dor que sente. Estuda mapas e plantas e bate às portas, mas no seu íntimo começa a admitir que é em vão.

Steen gagueja uma explicação da sua busca de informações novas. Primeiro apresenta a situação — depois a sua esperança de que a pessoa se lembre de alguma coisa, seja do que for, da tarde de 18 de Outubro do ano passado, quando a sua filha terá possivelmente passado naquela rua de bicicleta. Steen acompanha as suas palavras com uma fotografia da filha, cujo rosto há muito se cobriu de flocos de neve, e a tinta da imagem borrou. Mas mesmo antes de Steen ter tempo de terminar as suas frases, o homem abana a cabeça. Steen hesita por um momento e depois tenta explicar, mas o homem volta a abanar a cabeça e faz menção de fechar a porta, e subitamente Steen não consegue conter-se.

— Eu sei que já o vi. Quem é você? Eu sei que já o vi!

Há desconfiança na voz de Steen, quase como se tivesse reconhecido um suspeito, e põe o pé na porta para impedir o homem de a fechar.

— Eu também me lembro de si, e não é de estranhar. Você bateu-me à porta na segunda-feira e fez-me as mesmas perguntas.

Steen demora um momento a perceber que o homem tem razão. Envergonhado, ouve-se a pedir desculpa enquanto desce as escadas, confuso, e volta para a estrada. Atrás de si, ouve o homem a perguntar-lhe se está bem, mas Steen não pára para responder. Corre por entre o remoinho de neve em direcção ao fundo da rua e ao carro, onde escorrega e tem de se apoiar no capô para evitar cair. Como o pateta que é, que não consegue esquecer o passado, entra para o lugar do condutor e começa a chorar. Fica sentado às escuras no carro coberto de neve, a soluçar como uma criança, e, indiferente, nota que o telemóvel começou a vibrar no bolso do seu casaco. Quando pensa em Gustav, obriga-se a pegar no telemóvel, e no ecrã vê que tem muitas chamadas perdidas, e o medo apodera-se dele. Atende o telefone, mas não é Gustav, é a au pair, e Steen tem vontade de desligar sem dizer nada. Mas Alice explica que precisa de encontrar Rosa o quanto antes, porque se passa algo de errado. Ele não percebe bem o que ela diz, mas as palavras «bonecos de castanhas» e «polícia» arrancam-no do pesadelo daquela rua e arrastam-no para um novo.