A pequena caravana de três carros desce a rampa e abandona o ferry quando o Sol começa a nascer. Rostock é frio e ventoso, e a caravana dirige-se a um destino que fica a duas horas de distância. Hess está ao volante do último carro, e, embora não consiga prever o que podem ganhar com a viagem, é bom sair da cidade. Na esquadra e nos respectivos departamentos, nos últimos dias, houve grande controvérsia e muito trabalho de controlo de danos, mas, na auto-estrada alemã, o Sol de Novembro brilha, e ele pode ligar o rádio do carro sem ser atacado pelas especulações e busca de bodes expiatórios.
A revelação de que Genz era o Homem das Castanhas fora um choque para todos. Como chefe do Departamento Forense, ele era um modelo para os seus funcionários, e havia alguns discípulos que tinham dificuldade em acreditar que ele abusara do seu poder e que tinha o peso de várias vidas na consciência. No campo oposto, os críticos diziam que Genz tinha demasiado poder e que já deviam ter dado ouvidos às suas críticas há muito tempo. Mas as críticas e os pedidos de auto-reflexão não terminavam ali. Não podiam esquecer os media. O Departamento de Crimes Pessoais, que fora usado por Genz e pelas suas capacidades sem desconfiarem de nada, também estava sob ataque. O mesmo era verdade em relação à liderança das forças policiais, que havia apoiado a sua nomeação como chefe. Por enquanto, as consequências dos erros tinham sido postas em espera pelo ministro da Justiça, pelo menos até à conclusão da investigação das acções de Simon Genz.
Enquanto as ondas estavam altas na imprensa, Hess e os outros investigadores tinham-se concentrado em atar as pontas soltas do caso. Hess percebera quanto Genz conseguira controlar a direcção da investigação dos homicídios: como guiara a atenção de Thulin e Hess para a pista do boneco de castanhas com a impressão digital, para garantir que a ministra Rosa Hartung era envolvida; a forma como pusera Thulin e Hess a seguir o telemóvel de Laura Kjær para os levar a Erik Sejer-Lassen, enquanto o próprio Genz surpreendia a mulher de Sejer-Lassen na sua casa, em Klampenborg; a forma como entrara na base de dados da secção pediátrica do Rigshospitalet e encontrara um motivo para estudar os filhos de Laura Kjær, Anne Sejer-Lassen e Jessie Kvium — veio a descobrir-se que Olivia Kvium também fora hospitalizada na sequência de um acidente em casa — e depois enviara denúncias anónimas para o município, para a polícia e as autoridades se verem confrontadas com a ineficácia do sistema; a forma como conseguira manter-se informado da armadilha que tentaram lançar ao assassino no complexo residencial de Urbanplanen e como deve ter-se sentido pressionado pela visita de Thulin e Hess a Linus Bekker, o que o levou a depositar os membros decepados na casa de Skans e Neergaard quando investigara o local a trabalho. Por fim, mas não menos importante, a forma como Genz encontrara o jovem casal no bosque seguindo o localizador do carro da Hertz e a maneira como matara os dois suspeitos antes de ligar a Nylander a dizer-lhe onde estavam. Eram descobertas terríveis, e possivelmente ainda tinham outras pela frente. Especialmente porque a investigação do papel de Genz no desaparecimento de Kristine Hartung no ano anterior ainda não estava terminada.
Relativamente à história pessoal de Genz, as informações que Hess descobrira no registo RX também foram investigadas. Os gémeos órfãos tinham sido separados depois da sua estadia na casa da família Ørum, e, quando as autoridades ficaram sem famílias de acolhimento para oferecer a Toke Bering, ele fora mandado para um colégio interno em Vestsjælland, com 17 anos de idade. Ali, a sorte sorrira-lhe, obviamente. Um homem mais velho e sem filhos que já geria um fundo em benefício dos jovens carenciados da escola acabou por adoptar o rapaz. O homem, que tinha o sobrenome Genz, dera-lhe a possibilidade de começar de novo numa escola de elite em Sorø, agora com o nome adoptivo de Simon Genz, e o rapaz destacou-se rapidamente. No entanto, a experiência do homem mais velho fora bem-sucedida apenas à superfície, porque, aos 21 anos, Genz fora aceite num curso de Informática para Economia na Universidade de Aarhus, onde provavelmente tivera o seu primeiro contacto com a vítima de Risskov, em 2001. O relatório da investigação do caso pela polícia de Aarhus relata que «o estudante Simon Genz, que vive na faculdade, foi interrogado por ter aparentemente sido visto pelo namorado da vítima no dia do homicídio». Por outras palavras, Genz era vizinho da vítima e oferecera a sua ajuda para a investigação de um homicídio que fora provavelmente cometido pelo próprio.
Quando o seu mecenas morrera, pouco depois, de ataque cardíaco, Genz herdara uma quantia considerável e usara a sua liberdade recém-adquirida para se mudar para a capital e transferir os estudos para a Academia de Polícia, com o objectivo de se tornar técnico forense. As suas competências e dedicação ao estudo rapidamente se fizeram notar, mas antes disso aprendera a entrar no registo da segurança social e a alterar os seus dados, para nunca mais poder ser associado a Toke Bering. A subida na carreira que se seguiu constituía uma leitura impressionante, mas também um pouco sinistra, tendo em conta que a investigação dos homicídios de duas outras mulheres durante o período 2007–2011, que nunca tinham sido resolvidos, fora reaberta por terem sido observados bonecos de castanhas nas fotografias dos locais do crime.
A partir de 2014, estivera ligado à Bundespolizei e à Scotland Yard como especialista de renome, mas deixara ambas as colaborações quando, cerca de dois anos antes, conseguira o lugar de chefe em Copenhaga. O verdadeiro motivo para ter concorrido ao cargo fora, provavelmente, para poder usá-lo nos seus planos contra Rosa Hartung, que recentemente se tornara famosa ao ser promovida ao cargo de ministra dos Assuntos Sociais. Imediatamente depois, Genz comprara a Quinta das Castanhas, que conseguira renovar com o dinheiro que lhe restava da herança, e, quando as folhas começaram a cair das árvores, no Outono anterior, já estava pronto para pôr em prática o seu plano de vingança contra Rosa Hartung. Como chefe do Departamento Forense, podia controlar facilmente as várias pistas da investigação: inicialmente colocando os vestígios do desaparecimento de Kristine no lugar errado, mas pouco depois deixando pistas que os levariam a culpar Linus Bekker. Através do computador de Genz no laboratório, Thulin descobrira que Genz sabia de Linus Bekker e da sua invasão ao arquivo digital com imagens dos locais do crime muito antes de a polícia ter esse conhecimento. Entretanto, não dissera nada a ninguém. Genz devia ter percebido que encontrara em Linus Bekker o bode expiatório de que precisava, e deve ter sido fácil decidir colocar o machete com o sangue de Kristine Hartung na garagem de Bekker e fazer o telefonema anónimo para a polícia. O facto de Bekker entretanto ter decidido confessar o crime deve ter sido um bónus divertido para Genz, embora não fosse necessário, porque as provas eram suficientes para o condenar.
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Para Hess, o maior problema fora não haver nas coisas de Genz indicação nenhuma do que realmente acontecera a Kristina Hartung. O que houvera já fora provavelmente apagado, destruído ou queimado quando as chamas consumiram a Quinta das Castanhas. Desta forma, esperava obter informações dos dois telemóveis que tinham recuperado do carro destruído no bosque, mas ambos revelaram ser completamente novos e só terem sido usados no dia anterior a serem encontrados. Por outro lado, o registo do GPS do carro revelara várias visitas a uma determinada área no Sudeste de Rostock, no Norte da Alemanha. Inicialmente, não parecera extraordinário, tendo em conta a anterior colaboração de Genz com a Bundespolizei alemã, mas, quando Hess, na tarde do dia anterior, abordara os portos com os quais os ferries de Falster e Lolland tinham ligação, a pista de Rostock tornara-se interessante. Um carro alugado verde-escuro, não reclamado, ainda estava à espera no porto de Rostock, onde se encontrava desde sexta-feira, quando Genz morrera empalado num castanheiro. Contactando o rent-a-car alemão, Hess descobriu que o carro fora alugado em nome de uma mulher.
— Der Name der Mieterin ist Astrid Bering — dissera a voz do outro lado.
A partir dali, a investigação avançara depressa. Hess usara os seus contactos na polícia alemã, e, depois de algumas voltas, descobriu-se que a irmã gémea de Genz estava agora registada como residente na Alemanha, numa zona perto de uma pequena aldeia, Bugewitz, a cerca de duas horas de carro de Rostock e não muito longe da fronteira com a Polónia. Hess lembrava-se de ler no registo RX que o rasto da irmã gémea desaparecera quando tivera alta de uma instituição psiquiátrica apenas um ano antes, mas, se ela e Genz tinham mantido contacto durante esse período, facto que o registo do GPS do carro de Genz parece atestar, a irmã podia muito bem ser a única pessoa a saber alguma coisa acerca do que acontecera a Kristine Hartung.
— Thulin, acorda.
Um telemóvel começou a tocar no lugar ao seu lado, e Thulin levanta a cabeça de baixo do blusão de penas com que a cobrira.
— Podem ser os alemães. Como estou a conduzir, pedi-lhes que ligassem para ti se acontecesse alguma coisa, mas dá cá.
— Eu não sou inválida e falo muito bem alemão.
Hess sorri para si mesmo enquanto Thulin, mal-humorada, procura o telemóvel no bolso do casaco. Tem o braço esquerdo numa tala porque está fracturado em dois sítios, e a cara dela faz parecer que escapou de um acidente de viação. Hess não estava com melhor aspecto, e os dois tinham formado um par estranho no buffet de pequeno-almoço no ferry, meia hora antes. Quando voltaram a entrar nos carros, Thulin perguntara se ele se importava que ela dormisse uma sesta. Desde sábado à tarde que estavam a tentar encontrar alguma informação nova sobre Kristine Hartung. Ambos tinham recebido alguns dias dos respectivos empregadores para fecharem o caso e recompor-se, e Hess supunha que Thulin não andava a dormir muito. Além disso, estava-lhe imensamente grato, porque, se ela não tivesse atacado Genz no carro, provavelmente ele teria morrido. Encontrara Thulin inconsciente, caída na neve um pouco atrás da árvore onde Genz estava empalado, sem saber se ela estava gravemente ferida. Ao ouvir as sirenes a aproximarem-se, pegara nela e levara-a para a estrada, para junto dos destroços, e mandara-a para o hospital mais próximo com o primeiro carro que parara.
— Sim… Gut… Entendo… Danke.
Thulin desliga a chamada, e os seus olhos recuperam o brilho.
— O que disseram?
— A equipa táctica está à nossa espera num parque de estacionamento a cinco quilómetros da morada. Um dos habitantes locais diz que há uma mulher na casa, e a descrição corresponde à idade de Astrid Bering.
— Mas…?
Hess percebe pela expressão de Thulin que há mais, mas não consegue determinar se é bom ou mau.
— A mulher é muito reservada. Mas foi observada algumas vezes a caminhar no bosque com uma criança de 12 a 13 anos que se supõe ser o seu filho…