Quando a porta da frente da grande villa se abre e Thulin olha para o rosto de Steen do lado de dentro, arrepende-se imediatamente de lá ter ido. Ele tem um avental à cintura e um medidor de líquidos com restos de arroz na mão, e o seu olhar diz-lhe que esperava encontrar outra pessoa quando abrisse a porta.
— Steen Hartung?
— Sim.
— Desculpe estar a incomodá-lo. Somos da polícia.
O rosto do homem muda de expressão. É como se algo se quebrasse no seu íntimo, ou como se estivesse a regressar à realidade que esquecera por momentos.
— Podemos entrar?
— Do que se trata?
— Só vamos tomar um momento do seu tempo. É melhor falarmos dentro de casa.
Thulin e Hess olham, constrangidos, para a grande sala, enquanto esperam sem trocar uma única palavra. Do lado de fora das grandes janelas de vidro, o jardim está às escuras. A mesa de jantar está posta para três pessoas, por baixo do grande candeeiro Arne Jacobsen, e o aroma de especiarias vindo de uma panela na cozinha paira no ar. Subitamente, Thulin quer sair porta fora antes de Steen Hartung regressar. Olha de soslaio para o companheiro, que está de costas voltadas para ela e a olhar em volta, e percebe que não pode contar com a ajuda dele.
Depois da conversa com Genz no Departamento Forense, telefonara a Nylander, que parecera irritado porque tinha sido interrompido a meio de uma reunião. As coisas não melhoraram quando ela lhe contou por que motivo estava a ligar. Nylander ficara desconfiado de início e insistira que tinha de ser um erro, mas, quando ela lhe disse que Genz já tinha verificado 117 vezes, ele ficara em silêncio. Apesar da sua impressão geralmente negativa do departamento, Thulin sabia muito bem que Nylander não era burro, e tornou-se óbvio que levara a sério a informação. Disse que devia haver uma explicação lógica, um contexto natural de que não tinham conhecimento, e foi por isso que os mandou falar com a família Hartung.
Hess não dissera muito. No caminho para o carro, ela contara-lhe em traços gerais o caso de Kristine Hartung. Acontecera mesmo antes de ela ser contratada pelo departamento, mas claro que fora assunto de conversa na esquadra e nos media durante muito tempo depois de encerrado o caso. E ainda era. Kristine Hartung era filha de Rosa Hartung, a política e ministra dos Assuntos Sociais que acabara de regressar à vida política. A rapariga de 12 anos desaparecera quase um ano antes, quando estava a regressar a casa depois de uma actividade desportiva. O seu saco e a sua bicicleta tinham sido encontrados abandonados num bosque, e, algumas semanas mais tarde, um colega que era um nerd dos computadores, Linus Bekker, fora detido. Tinha às costas várias acusações de crimes sexuais, e as provas e indícios tinham sido convincentes. Durante um interrogatório na esquadra, o perpetrador admitira ter agredido sexualmente Kristine Hartung e ter subsequentemente estrangulado a rapariga na mesma noite em que fora encontrado na sua garagem o machete com o sangue de Kristine Hartung. Enterrara o corpo desmembrado em partes distintas dos bosques de Nordsjælland, mas Linus Bekker, diagnosticado com esquizofrenia paranóide, não fora capaz de identificar os locais exactos à polícia, e, ao fim de dois meses de uma investigação que consumira imensos recursos, a busca fora abandonada, quando o gelo começou a instalar-se e o trabalho da polícia se tornou impossível. Na Primavera, Linus Bekker recebera grande atenção dos media quando foi condenado à pena mais severa possível, nomeadamente um internamento psiquiátrico por tempo indefinido, o que significava que provavelmente ficaria encarcerado durante 15 a 20 anos ou mais.
Thulin ouve o som do rádio ser desligado, e Steen Hartung regressa da cozinha.
— A minha mulher está lá em cima. Se vocês…
Steen Hartung interrompe-se e debate-se para encontrar as palavras.
— Se encontraram alguma coisa… Eu gostaria de saber antes de informarem a minha mulher.
— Não encontrámos nada. Não tem nada a ver com isso.
O homem fita-a. Por um lado, parece aliviado, por outro, continua atento e inquisitivo.
— Na investigação de um local de crime em que estivemos hoje, encontrámos um objecto que contém o que pensamos serem as impressões digitais da sua filha. As impressões estão claramente marcadas num boneco feito de castanhas. Tenho aqui uma fotografia que gostaria de lhe mostrar.
Thulin estende-lhe uma fotografia, mas Steen Hartung olha para ela com uma expressão confusa e depois olha novamente para Thulin.
— Não estamos cem por cento certos de que a impressão digital é dela, mas é suficientemente provável para termos de procurar uma explicação para a sua presença ali.
Steen Hartung pega na fotografia quando Thulin a pousa na mesa.
— Não compreendo. Uma impressão digital…?
— Sim. O objecto foi encontrado num parque infantil em Husum. Mais precisamente junto à morada Cedervænget, n.º 7. Esta morada ou o parque infantil significam alguma coisa para si?
— Não.
— E uma mulher chamada Laura Kjær? Ou o seu filho Magnus ou um homem chamado Hans Henrik Hauge?
— Não.
— É possível que a sua filha conhecesse esta família? Ou outras pessoas naquela zona... talvez se encontrasse com as crianças para brincar ou se visitassem ou…
— Não. Nós vivemos aqui. Não entendo o significado disto.
Por um momento, Thulin não sabe o que responder.
— De certeza que existe uma explicação lógica. Se a sua mulher está em casa, talvez possamos perguntar-lhe também…
— Não. Não quero que perguntem à minha mulher.
Steen Hartung olha para eles com uma expressão hostil.
— Lamento, mas temos de descobrir.
— Não me interessa. Não vão falar com a minha mulher. A minha resposta é tão válida como a dela. Não fazemos a menor ideia do motivo por que essa impressão digital existe e não conhecemos o lugar de que me falam, e não entendo porque raio isso é importante!
Steen Hartung percebe subitamente que Thulin e Hess estão a olhar para algo atrás dele. A sua mulher desceu as escadas e está a observá-los do corredor.
Por um momento, ninguém diz nada. Rosa Hartung entra na sala e pega na fotografia que Steen Hartung atirou para o lado num acesso de fúria. Thulin volta a contemplar a possibilidade de se levantar e correr porta fora, e a sua irritação com Hess aumenta porque continua parado sem dizer nada.
— Lamento incomodar-vos. Nós…
— Eu ouvi.
Rosa Hartung olha para a fotografia do boneco de castanhas e parece que espera encontrar algo. O marido parece pronto para os pôr fora de casa.
— Eles já estão de saída. Disse-lhes que não sabemos nada. Obrigado.
— Ela vendia-os à beira da estrada…
Steen Hartung para junto à entrada e olha para a mulher.
— Todos os Outonos. Com a Mathilde da turma dela. Costumavam sentar-se ali e fazer imensos…
Rosa Hartung desvia o olhar da fotografia para o marido, e Thulin vê a expressão dele transformar-se quando a memória regressa.
— Vendiam como?
É Hess, que entretanto se aproximou.
— Elas montavam uma pequena banca. Vendiam-nos às pessoas que passavam a pé ou aos carros que paravam. Também faziam bolos e sumos. Assim podiam comprar bolo e sumo juntamente com um dos bonecos…
— E fizeram-no no ano passado?
— Sim… Costumavam sentar-se aqui, a esta mesa. Juntavam as castanhas do jardim e divertiam-se. No Verão faziam um pequeno mercado, mas… Mas ela achava que era mais divertido no Outono, quando tínhamos tempo para os fazermos juntas. Lembro-me bem porque foi no fim-de-semana antes de…
Rosa Hartung pára.
— Porque é que isto é importante?
— É apenas algo que temos de investigar. Relacionado com outro caso.
Rosa Hartung não diz nada. O marido está a apenas um passo de distância, e é como se estivessem os dois em queda livre. Hess fica parado a olhar para eles, e Thulin agarra-se à fotografia como se fosse uma tábua de salvação.
— Obrigada. Já ouvimos aquilo de que precisávamos. As nossas desculpas pelo incómodo.