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Estão a meio da manhã. Da janela da sala de estratégia da esquadra, Nylander vê os abutres da liberdade de expressão com os seus telemóveis, câmaras e microfones em frente à entrada. Apesar dos inúmeros avisos a todos os funcionários, constata regularmente que o sistema tem mais buracos que uma peneira, e aquele dia não é excepção. Apenas 12 horas depois da descoberta do corpo no bosque, os primeiros contactos da imprensa começaram a especular sobre a relação com o homicídio de Laura Kjær em Husum, alegadamente porque «fontes na polícia» que se haviam declarado anónimas tinham falado dessa possibilidade. E, como se não bastasse o cerco da imprensa, Nylander também tinha o vice-director da polícia em linha, mas consegue esquivar-se dizendo que lhe liga mais tarde. Neste momento, a investigação está a decorrer, e ele olha com impaciência para Thulin, que está a dar uma actualização de estado ao grupo de investigadores.

A maioria esteve presente no bosque naquela noite, e dormiram apenas algumas horas, mas, tendo em conta a gravidade da situação, não tiveram problemas em acordar para receber a actualização de Thulin.

A noite também fora longa para Nylander. O telefonema a anunciar a descoberta de Anne Sejer-Lassen chegara a meio de um jantar com o grupo dos oficiais num restaurante na rua Bredgade, na noite anterior. Havia várias pessoas importantes no encontro, e era uma boa oportunidade para forjar relações profissionais, mas, quando recebeu a chamada, deixou o jantar a meio da sobremesa de tiramisù. Na realidade, não precisava de ir pessoalmente inspeccionar o local do crime. Tinha a sua equipa para isso, mas fazia sempre questão de estar presente porque era importante dar um bom exemplo e assim manter sempre o caminho livre. Se relaxasse, ficava vulnerável a ataques futuros, e Nylander era demasiado inteligente para deixar que isso acontecesse. Já vira uma miríade de executivos e oficiais arruinarem as suas carreiras e serem apanhados em falso porque tinham deixado que o orgulho levasse a melhor. No caso de Laura Kjær, em Husum, excepcionalmente, não visitara o local do crime por causa das reuniões sobre o orçamento, e, quando mais tarde fora contactado por Thulin e informado da presença das impressões digitais de Kristine Hartung, sentiu que recebera um golpe. Por isso, na noite anterior, Nylander deixou o restaurante imediatamente, sem sequer sentir irritação. De qualquer forma, a sobremesa assinalava a altura em que os piores convidados já tinham bebido tanto que começavam a falar dos seus negócios. Nylander sabe que provavelmente tem de passar por cima de todos eles, mas para isso tem de estar de cabeça limpa e de estar atento para o caso de uma luz vermelha começar a piscar, e até agora tem conseguido fazê-lo. Desde a visita ao local do crime no meio do bosque, contemplara vários cenários, mas ainda não tinha encontrado uma estratégia pelo simples motivo de que tudo aquilo era incompreensível. Naquela manhã, visitara pessoalmente Genz e o Departamento Forense, na esperança de ouvir a explicação de que as impressões digitais tinham sido um erro, mas isso não aconteceu. Genz explicara-lhe que em ambos os casos havia semelhanças suficientes para se estabelecer uma correspondência com Kristine Hartung, e a única coisa de que Nylander tem certeza neste momento é de que tem de traçar um percurso claro para evitar armadilhas.

—… E ambas as vítimas estavam na casa dos trintas e foram apanhadas de surpresa nas respectivas casas. Segundo a investigação forense preliminar, as mulheres foram torturadas e mortas com uma arma que lhes foi cravada num olho e atingiu o cérebro. No caso da primeira vítima, a mão direita também fora amputada, e, no caso da segunda, ambas haviam sido amputadas, e as duas mulheres estavam alegadamente vivas durante as amputações.

O grupo de investigadores ali reunido olha para as fotografias que Thulin passou em volta da mesa, e alguns dos recém-chegados franzem as sobrancelhas e desviam o olhar. Nylander também viu as fotografias, mas não lhe causaram tanta impressão. Quando começou a trabalhar como polícia, perguntou-se porque não era afectado por aquele tipo de coisas como tantos colegas seus, mas agora vê-o apenas como uma vantagem.

— Em que ponto estamos em relação à arma do crime? — interrompe com impaciência o relatório de Thulin.

— Não temos nada de definitivo. Um objecto contundente desconhecido com uma esfera de metal com picos. Não é uma estrela-d’alva, mas o princípio é o mesmo. No caso das amputações, é provavelmente uma serra eléctrica com bateria e com uma lâmina de diamante ou algo semelhante. Os estudos preliminares indicam que o mesmo instrumento foi usado em ambas…

— Então e a mensagem enviada para o telemóvel de Laura Kjær? O remetente?

— A mensagem foi enviada de um velho telemóvel Nokia com um cartão não registado, que pode ser comprado em qualquer lugar. Do telemóvel Nokia, que estava colado com fita adesiva à mão direita de Laura Kjær, não sabemos mais nada porque não contém mais nenhuma informação para além da mensagem, e o número de série foi queimado com um ferro de soldar — diz Genz.

— Mas a carrinha da empresa de estafetas que entregou a encomenda e que seguiram através do sinal do telemóvel deve ter-vos dado informações sobre o remetente?

— Sim, deu, mas o problema é que Laura Kjær está registada como remetente.

— O quê?

— O departamento de apoio ao cliente diz que uma pessoa lhes ligou ontem à hora de almoço. A pessoa pediu a um estafeta que fosse recolher uma encomenda de Laura Kjær na escada do número 7 de Cedervænget, em Husum. Que é a morada da Laura Kjær. A encomenda estava pronta para recolha, juntamente com o pagamento, quando o estafeta lá chegou, pouco depois das 13h00. Ele levou-a para o armazém e entregou-a no 7-Eleven do primeiro piso, com o qual a empresa de Erik Sejer-Lassen tem um acordo para entregas. Não sabem mais nada, e só encontrámos as impressões digitais do funcionário do 7-Eleven e de Sejer-Lassen na embalagem.

— Mas a pessoa que ligou?

— O funcionário nem se lembra se era homem ou mulher.

— Mas e em Cedervænget? Alguém deve ter visto quem deixou lá a encomenda?

Thulin abana a cabeça.

— O nosso suspeito inicial era o companheiro de Laura Kjær, Hans Henrik Hauge, mas ele tem um álibi. O médico-legista diz que o homicídio de Anne Sejer-Lassen aconteceu às 18h00, e, segundo a advogada dele, o Hauge estava nessa altura no parque de estacionamento em frente à firma de advogados a falar com ela e a queixar-se por ainda não termos libertado a sua casa.

— Então não temos nada? Testemunhas, telefonemas, nada?

— Ainda não. E também não parece haver nenhuma ligação entre as vítimas. Tinham vidas muito diferentes, círculos distintos e aparentemente nada em comum para além dos dois bonecos de castanhas e das impressões digitais, portanto, devemos começar…

— Que impressões digitais?

Nylander olha para Jansen, que fez a pergunta, como sempre sentado ao lado do seu fiel companheiro, Martin Ricks. Nylander repara no olhar de Thulin, porque lhe tinha dito que não queria partilhar aquela informação.

— Em ambos os casos, um boneco feito de castanhas foi colocado na vítima ou perto dela. Em ambos os casos, o boneco de castanhas tinham uma impressão digital, e, segundo os estudos dactiloscópicos, a impressão digital pode ser idêntica às de Kristine Hartung.

A voz de Nylander soa deliberadamente seca e pouco dramática, e por um momento ninguém diz nada. Então, Tim Jansen e alguns outros dão-se conta do significado daquelas palavras. A surpresa espalha-se e transforma-se em confusão, e Nylander interrompe-os.

— Ouçam. O Departamento Forense está a investigar, portanto, não quero conclusões precipitadas antes de sabermos mais. Neste momento, não sabemos nada. Talvez essas impressões digitais não sejam relevantes, portanto, se alguém mencionar o assunto fora destas paredes, terei de me certificar pessoalmente de que essa pessoa nunca mais trabalha aqui. Entendido?

Nylander pensa em como irão lidar com aquilo. Já é suficientemente mau terem em mãos dois homicídios por resolver. Talvez até cometidos pelo mesmo perpetrador — embora Nylander também tenha dificuldade em aceitar essa parte. E, enquanto houver o mínimo de incerteza em relação às impressões digitais, não quer misturar as coisas. O caso de Kristine Hartung é um dos maiores sucessos de Nylander. A dada altura, chegou a pensar que lhe iria custar a carreira, mas depois viera a revelação com a detenção de Linus Bekker. Não encontraram o corpo da rapariga, mas, por motivos lógicos, não podiam adiar mais a resolução do caso. O perpetrador não conseguira identificar os locais onde estava enterrado, mas confessara o crime, e havia provas mais do que suficientes para o condenar.

— Mas vocês têm de reabrir o caso Hartung.

Nylander e os outros olharam para a direcção de onde vinha a voz, e os seus olhos fixaram-se no homem da Europol. Até agora, mantivera-se calado e invisível, ocupado a observar as fotografias que tinham sido partilhadas. Ainda traz as mesmas roupas que usava no bosque, tem o cabelo despenteado, mas, embora pareça algo que esteve caído no chão do bosque durante uma semana, soa determinado.

— Uma impressão digital pode ser coincidência. Duas não. E, se forem as impressões digitais de Kristine Hartung, a conclusão da investigação do caso do seu desaparecimento pode estar errada.

— Do que estás para aí a falar?

Tim Jansen virou-se e olha para Hess como se ele lhe tivesse pedido que lhe desse o seu ordenado.

— Jansen, eu trato disto.

Nylander sente o ambiente ficar pesado, e é exactamente isso que quer evitar, mas Hess interrompe antes que Nylander tenha a oportunidade de prosseguir.

— Eu não sei mais do que vocês. Mas o corpo de Kristine Hartung não foi encontrado, e os estudos forenses da altura provavelmente não são suficientes para concluir que está morta. Agora apareceram impressões digitais, e só digo que isso levanta certas questões.

— Não, não é isso que está a dizer, Hess. Está a dizer que não fizemos bem o nosso trabalho.

— Isto não é uma questão pessoal. Mas duas mulheres foram mortas, e, se querem evitar mais mortes, têm de…

— Eu não o entendi como uma questão pessoal. E de certeza que os outros 300 agentes que ajudaram a resolver o caso também pensam o mesmo. Mas é engraçado estarmos a receber críticas de uma pessoa que veio aqui parar porque foi expulsa de Haia.

A resposta de Jansen faz sorrir alguns dos seus colegas. Mas Nylander olha para Hess com uma expressão neutra. Fixou-se nas palavras de Hess e depois disso não ouviu mais nada.

— Que raio quer dizer com isso de evitar mais mortes?