O som do choro das duas raparigas no andar de cima penetra em todos os cantos da casa grande e recém-decorada. E também se ouve na cozinha, onde Erik Sejer-Lassen está sentado à impressionante mesa de madeira chinesa ainda com o fato que usava quando a encomenda com a mão de Laura Kjær foi encontrada no seu escritório, no dia anterior. É óbvio para Hess, que está sentado ao lado dele, que o homem ainda não dormiu. Tem os olhos vermelhos e inchados, a camisa enrugada, há brinquedos espalhados pelo chão da casa e manchas de sujidade no fogão atrás dele. Hess vê Thulin tentar olhar nos olhos do homem do seu lugar, do outro lado da mesa, mas é em vão.
— Por favor, olhe novamente para a fotografia. Tem a certeza de que a sua esposa não conhecia esta mulher?
Erik Sejer-Lassen olha para a fotografia de Laura Kjær, do n.º 7 de Cedervænget, mas não há reconhecimento no seu olhar.
— Então e esta? A Ministra dos Assuntos Sociais, Rosa Hartung. É uma pessoa que a sua mulher conhecesse ou de quem falasse, que os dois tenham conhecido ou…
Mas Sejer-Lassen abana a cabeça, apático, ao olhar para a fotografia de Rosa Hartung que Thulin empurrou na sua direcção. Hess nota que ela está a tentar conter a irritação e entende-a bem. É a segunda vez no espaço de uma semana que está cara a cara com um viúvo que parece não saber as respostas a nenhuma das suas perguntas.
— Sr. Sejer-Lassen, precisamos da sua ajuda. Tem de haver alguma coisa de que se lembre. Ela tinha inimigos, tinha medo de alguém ou havia…
— Mas eu não sei nada. Ela não tinha inimigos. Cuidava da casa e das crianças…
Thulin respira fundo e continua a fazer perguntas, mas Hess sente que Erik Sejer-Lassen está a dizer a verdade. Tenta abstrair-se do som do choro das crianças e já se arrependeu de não ter dito a Nylander que não, que isto não era para ele, quando teve essa oportunidade, mais cedo nesse dia. Por outro lado, sabia que não tinha alternativa, quando acordou na zona de Odinpark naquela manhã, ao fim de apenas três horas de sono, com a imagem de um boneco de castanhas e corpos mutilados gravada na retina. O pequeno vice-administrador aparecera pouco depois com uma reprimenda porque Hess deixara os instrumentos de pintura e o afagador do chão no meio do corredor, mas Hess não tinha tempo para se preocupar com isso. A caminho da esquadra, ligara para a sede, em Haia, e tentara pedir desculpa por não ter participado na reunião com Freimann, no dia anterior. A frieza da secretária não enganava. Hess desistiu de explicar o motivo da sua negligência e, em vez disso, apressou-se a atravessar o trânsito matinal para ver as fotografias detalhadas do corpo de Anne Sejer-Lassen. Decidira que não teriam motivo para se preocupar se houvesse golpes noutra parte do corpo para além dos pulsos. Se houvesse alguma pista mais concreta do instrumento usado para a amputação das mãos, podiam não ter motivo para investigar a ideia doentia que lhe ocorrera quando acordara nessa manhã. Mas não havia sinal de o perpetrador ter tentado amputar outras partes do corpo de Anne Sejer-Lassen. Hess ligou para o médico-legista para ter a certeza. Segundo o médico-legista, aquele instrumento fora usado exclusivamente para a amputação das mãos, tanto no primeiro homicídio como no segundo, e isso confirmou as suspeitas de Hess. Não tinha como saber se a sua profecia de que haveria outras vítimas estava certa, mas essa sensação ganhara força. Acima de tudo, teria preferido fazer uma pausa e mergulhar no caso de Kristine Hartung antes de decidir que novos caminhos deviam seguir, mas Nylander recusara, e, em vez disso, ele e Thulin foram enviados à casa de Sejer-Lassen, onde ainda não tinham chegado a nenhuma conclusão.
Passaram duas horas a investigar a mansão e o exterior da propriedade. Primeiro, descobriram que as câmaras de segurança que estavam apontadas ao lado norte do bosque tinham sido desactivadas. Qualquer pessoa podia ter subido a cerca e entrado na casa sem ser vista a partir do momento em que Anne Sejer-Lassen regressou da sua corrida e desligou o alarme. Os vizinhos não tinham visto nada, o que era perfeitamente credível, uma vez que as casas naquela rua estavam o mais afastadas possível, de modo a permitir aos agentes imobiliários anunciarem as propriedades como muito privadas.
Enquanto Genz e os técnicos forenses estavam ocupados a examinar a zona do jardim, bem como a sala e o corredor, em busca de possíveis vestígios, Thulin e Hess tinham subido ao primeiro piso para examinarem os quartos, as gavetas e os armários, para conhecerem um pouco melhor a vida de Anne Sejer-Lassen. O primeiro piso tinha nove divisões, se contássemos com o spa e o walk-in closet. Hess não era especialista em luxo, mas só o televisor Bang & Olufsen do quarto parecia ser suficiente para dar entrada para vários apartamentos em Odinpark. Outro sinal de bom gosto era a ausência de cortinas ou persianas nas janelas enormes, mas, quando estava parado no meio do quarto, não conseguiu evitar perguntar-se se o perpetrador não poderia ter-se aproveitado da vista desimpedida para Anne Sejer-Lassen e para as suas rotinas nocturnas do meio da escuridão do jardim, onde a chuva caía agora com força.
Também nos quartos do segundo piso a escolha dos interiores era cuidada: o walk-in closet de Anne Sejer-Lassen estava perfeitamente organizado, com fileiras de sapatos de salto alto, vestidos e calças novas em cabides todos da mesma cor, enquanto os collants e a lingerie estavam guardados em gavetas igualmente organizadas. A casa de banho adjacente parecia saída de uma suite de um hotel de cinco estrelas, com dois lavatórios, uma grande banheira embutida com azulejos italianos e uma zona de spa separada, com uma sauna. E, no quarto das crianças, grandes murais dos animais selvagens de Hans Scherfig rodeavam as duas camas pequenas, que tinham vista para um céu estrelado no tecto, com planetas e naves espaciais.
Mas, independentemente de onde procurasse, não havia nada que pudesse explicar por que motivo alguém surpreendera Anne Sejer-Lassen em sua casa, a perseguira para o meio do bosque e lhe amputado ambas as mãos.
Em vez disso, investiram na entrevista a Erik Sejer-Lassen, que lhes explicou como ele e Anne se conheceram, na escola secundária de Ordrup. Assim que terminaram os estudos na Copenhagen Business School, celebraram com o seu casamento e com uma viagem à volta do mundo, antes de se instalarem na Nova Zelândia e depois em Singapura. Erik fora bem-sucedido nos seus investimentos em várias empresas de biotecnologia, ao passo que o maior desejo de Anne era ter uma família e filhos. Tiveram duas meninas, e, quando a mais velha estava a chegar à idade escolar, regressaram à Dinamarca, primeiro para um apartamento novo arrendado em Islands Brygge, onde viveram até poderem comprar a casa em Klampenborg, que ficava perto de onde Erik tinha crescido. Hess sentiu que o nível de vida da família era mantido por Erik, e, embora Anne tivesse tirado há alguns anos o curso de Design de Interiores, ficou com a impressão de que ela se dedicava mais a ser mãe, a cuidar da casa e a organizar encontros para o círculo de amigos que era essencialmente de Erik. Um assistente criminal também fora enviado a Helsingør, onde a mãe de Anne Sejer-Lassen vivia, e, pelos minutos que a conversa durara, Hess entendeu que Anne crescera em circunstâncias humildes, perdera o pai quando era muito nova e desde muito pequena sempre estivera muito focada em criar uma família. A mãe, chorosa, disse que não via a filha e os netos tanto quanto gostaria e que achava que era porque Erik Sejer-Lassen não gostava dela. Não que Anne ou ele alguma vez o tivessem dito, mas basicamente só via a filha e os netos quando Erik estava no trabalho ou nas raras ocasiões em que a filha lá levava as netas para a verem. A impressão da mãe é que Anne e Erik não tinham o mesmo poder na relação, mas Anne sempre defendera o marido e recusava-se a deixá-lo, e a mãe entendeu que tinha de guardar esses pensamentos para si se queria continuar a vê-la. Coisa que não voltaria a acontecer depois daquela noite.
O relógio digital num dos dois grandes fogões Smeg da cozinha avança novamente, e Hess força-se a ouvir o interrogatório de Thulin ao som dos choros vindos do segundo andar.
— Mas a sua mulher tinha feito uma mala. Estava de saída e disse à au pair que ia buscar as crianças. Para onde poderia ir?
— Já lhe disse. Ela ia visitar a mãe e ia passar lá a noite.
— Não é o que o conteúdo da mala indica. Ela levava os passaportes e roupas para mais de uma semana, portanto, para onde ia? Porque estava a fugir?
— Ela não estava a fugir.
— Eu acho que estava, e as pessoas não fogem sem motivo. Portanto, ou me diz porque ela haveria de querer fugir, ou eu arranjo um mandado do tribunal para examinar o seu telemóvel e os seus dados de navegação na Internet para ver se descubro a resposta.
Erik Sejer-Lassen começa a parecer stressado.
— A minha mulher e eu dávamo-nos bem. Mas nós... ou melhor eu... também tínhamos alguns problemas.
— Que problemas?
— Eu tive casos. Nada de importante. Mas… talvez ela tenha descoberto.
— Casos. Com quem?
— Vários.
— Com quem, como? Mulheres, homens?
— Mulheres. Coisas casuais. Pessoas que conhecia ou com quem trocava mensagens num portal ou noutro. Nada de importante.
— Porque fez isso?
Erik Sejer-Lassen hesita.
— Não sei. Às vezes a vida não corre como esperamos.
— O que quer dizer com isso?
Sejer-Lassen fita o ar com uma expressão vazia. Hess não tem dificuldade em escrever a última afirmação do homem, mas não consegue evitar perguntar-se o que um tipo como Sejer-Lassen esperava conseguir na vida senão uma mulher-troféu, uma família nuclear e aquela gaiola dourada de mais de 35 milhões de coroas.
— Quando e como é que a sua mulher podia ter descoberto? — prossegue Thulin, irritada.
— Não sei, mas o senhor perguntou…
— Sr. Sejer-Lassen, investigámos o telemóvel da sua mulher, os seus e-mails e redes sociais. Se ela tivesse descoberto isso que nos conta, o lógico seria que tivesse discutido a sua infidelidade com alguém. Ou consigo, ou com a mãe, ou com uma amiga, mas não encontrámos um único comentário nesse sentido.
— Bem…
— Portanto, não era por isso que ela estava a fugir. Então pergunto-lhe outra vez: porque queria a sua mulher deixá-lo? Porque fez elas as malas e…
— Eu não sei! Você pediu-me um motivo, e esse é o único que me ocorre, porra!
Hess acha que a explosão de raiva de Erik Sejer-Lassen parece excessiva. Por outro lado, o homem pode estar a ter dificuldade em controlar as emoções. Foi um dia longo, e Hess não vê motivo para continuarem a interrogá-lo, por isso interrompe:
— Obrigado, vamos parar por aqui. Se se lembrar de alguma coisa, contacte-nos imediatamente. Ok?
Erik Sejer-Lassen assente, grato, e, embora tenha virado costas para ir buscar o casaco, percebe que a interrupção não agradou a Thulin. Felizmente, ouve-se outra voz.
— Posso levar as meninas a comerem um gelado?
A au pair desceu as escadas do primeiro piso com as duas raparigas vestidas para sair. Hess e Thulin já a interrogaram. Ela só viu Anne ontem de manhã, passou a hora de almoço na igreja filipina e recebeu um telefonema à tarde a dizer que a Anne queria ir buscar as meninas. Era óbvio que tinha grande respeito pela família Sejer-Lassen e também pela polícia, e Hess desconfia de que a sua documentação de residência não está em ordem. Ela tem a criança mais pequena ao colo e está de mão dada com a outra. Elas estão chorosas e de olhos vermelhos, e Erik Sejer-Lassen, que entretanto se levantou, caminha na sua direcção.
— Sim. Boa ideia, Judith. Obrigado.
Erik Sejer-Lassen faz uma festa no cabelo de uma das suas filhas e abraça a outra, enquanto os quatro se dirigem para a entrada da cozinha.
— Eu é que decido quando o interrogatório terminou.
É Thulin, que se aproximou de Hess e está de pé à sua frente, pelo que ele não consegue evitar olhar para os seus olhos castanhos.
— Mas nós estávamos com ele ontem, quando Anne Sejer-Lassen foi atacada, portanto, o culpado provavelmente não é ele.
— Estamos à procura do denominador comum dos dois homicídios. Uma vítima mandara trocar as fechaduras, a outra podia estar a fugir de casa…
— Eu não estou à procura de um denominador comum. Estou à procura de um assassino.
Hess faz menção de ir à sala ouvir o relatório dos técnicos, mas Thulin põe-se no seu caminho.
— Vamos lá ser francos: tens algum problema com isto? Nós os dois a trabalharmos juntos?
— Não, não tenho problema nenhum. Mas acho que devemos separar-nos, para não ficarmos aqui parados como dois idiotas.
— Interrompo?
A porta deslizante dourada ao lado do hall abre-se, e Genz aparece, com o seu fato espacial branco e uma mala na mão.
— Vamos arrumar tudo para sair. Não quero desiludir ninguém demasiado cedo, mas temos poucas pistas, tal como aconteceu na casa da Laura Kjær. O mais notável são vestígios de sangue em algumas fendas do chão do hall. Mas não há salpicos, e aqueles não correspondem ao tipo de sangue de Anne Sejer-Lassen, portanto, suponho que não seja relevante.
No chão de madeira do hall atrás de Genz vêem-se os rastos de luminol em algumas fendas, iluminados por lâmpadas de fósforo, enquanto um detective tira fotografias.
— Porque há vestígios de sangue no chão do hall?
É Thulin que faz a pergunta a Sejer-Lassen, que entretanto regressou da cozinha e, apático, começou a arrumar os brinquedos.
— Se é nas escadas para o primeiro piso, podem ser da Sofia, a nossa filha mais velha. Ela caiu e partiu o nariz e a clavícula e esteve hospitalizada há alguns meses.
— Pode ser algo assim. Também quero agradecer-te pelo porco, em nome do nosso departamento, Hess.
Genz desaparece para junto dos outros homens de fato espacial branco e fecha as portas deslizantes atrás de si. Hess tem uma ideia e olha para Erik Sejer-Lassen com interesse renovado, mas Thulin adianta-se.
— Em que hospital esteve a Sofia internada?
— No Rigshospitalet. Foram apenas alguns dias.
— Em que departamento do hospital?
Agora é Hess quem pergunta. O facto de ambos os investigadores estarem subitamente interessados no assunto confunde Sejer-Lassen, que pára no meio da sala com um triciclo na mão.
— Na secção pediátrica. Acho. Mas foi a Anne quem tratou de tudo. Porquê?
Nenhum deles responde. Thulin dirige-se para a porta da rua, e Hess sabe que também não o vai deixar conduzir o carro desta vez.