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O gestor de caso Henning Loeb acaba de almoçar no refeitório quase deserto na cave da Câmara Municipal de Copenhaga, quando recebe o telefonema no seu telemóvel. A manhã fora uma provação. De manhã, fora surpreendido pela chuva quando estava na bicicleta e, quando finalmente chegou ao estacionamento para bicicletas nas traseiras do edifício da Câmara, tinha as roupas e os sapatos ensopados. Ainda assim, o seu superior, o chefe do Departamento de Crianças e Jovens, pedira-lhe que contribuísse com a sua perícia numa reunião urgente com uma família afegã e o seu advogado, que queria contestar a decisão do município de lhes retirar a custódia dos filhos.

Henning Loeb conhecia aprofundadamente o caso e fora ele a recomendar a retirada da criança de casa, mas teve de se sentar durante uma hora e meia a ouvir as reclamações e desculpas. A maior parte dos casos de afastamento de crianças dos cuidados dos pais por parte do município ocorre hoje em dia em famílias de imigrantes, e, neste caso, fora requisitado um intérprete para a reunião. O que, obviamente, a fez durar mais do que o tempo necessário. À partida, a reunião seria sempre um desperdício de tempo porque o caso já estava decidido: o pai, imigrante, fora violento com uma filha de 13 anos por ela namorar com um adolescente dinamarquês. Mas a sociedade democrática garante que mesmo os perpetradores de actos violentos têm direitos e têm de ser ouvidos, e, enquanto os argumentos eram atirados para um lado e para o outro sobre a mesa, Henning sentara-se e observara a vida que passava do lado de fora das janelas do edifício da Câmara.

No final da reunião, Henning ainda sentia o corpo húmido por causa da chuva, mas viu-se obrigado a mergulhar de cabeça nos seus casos porque estava atrasado com o trabalho do dia. Estava a uma entrevista de distância de um cargo muito mais estruturado e apelativo no Secretariado para a Gestão Tecnológica e Ambiental, no segundo piso, e ia ter essa entrevista naquela tarde. Se conseguisse recuperar o tempo perdido, ainda teria tempo para se preparar e, se a entrevista corresse bem, em breve poderia deixar o navio a afundar em que se encontrava, antes de ele ir ao fundo com os passageiros violentos, incestuosos e psicóticos do grupo social dos imigrantes. Era perfeitamente justo e razoável que, em vez disso, o deixassem participar em propostas de renovação urbana e melhoramento dos parques, e tinha como bónus a vista para a arquitecta estagiária ruiva que, independentemente da estação do ano, andava por ali de mini-saia e espalhava sorrisos atrevidos, pelo que estava a precisar de conhecer um homem a sério. Era possível que não fosse Henning a ter essa honra, mas as fantasias ninguém podia tirar-lhe.

Ao fim de poucos segundos, Henning já está arrependido de ter atendido o telefone, porque não consegue libertar-se daquele polícia que fala com os modos que Henning mais detesta. Autoritário e exigente, em poucos segundos deixou claro que precisa das informações imediatamente. Não dali a pouco e não naquela tarde. E, assim, Henning tem de largar o trabalho que tem em mãos e de correr para o computador do seu gabinete.

— Preciso de saber que informações tem de um caso relativo a um rapaz chamado Magnus Kjær.

O polícia tem o número de segurança social do rapaz, e Henning abre o ficheiro do caso no computador, enquanto explica que é responsável por centenas de casos, portanto, não pode, obviamente, lembrar-se de todos, se era isso que o investigador esperava.

— Diga-me apenas o que tem.

Henning passa os olhos pelo ficheiro que apareceu no ecrã enquanto o investigador espera. Veio a descobrir que era um dos seus casos e, felizmente, era um que era simples e fácil de resumir.

— É verdade que temos um caso aberto. Recebemos uma denúncia, ou melhor, um e-mail anónimo, acerca da mãe do rapaz, Laura Kjær, e, segundo a denúncia, ela não era capaz de cuidar do rapaz. Mas investigámos o caso e não encontrámos provas que substanciassem a denúncia, portanto, não há mais nada que eu possa…

— Quero que me conte todos os detalhes do caso. Agora mesmo.

Henning abafa um bocejo. Aquilo é capaz de demorar, portanto, começa a falar depressa e dá ao investigador a versão curta da história enquanto relê o resumo do caso.

— A denúncia foi enviada por e-mail há cerca de três meses, ao abrigo do programa de denúncias do Estado. Todos os municípios do país implementaram um sistema semelhante com a mesma finalidade, segundo a ministra dos Assuntos Sociais: as pessoas podem fazer denúncias anónimas se souberem de crianças que correm perigo. A denúncia em causa não continha informação do remetente. Resumindo, pedia que o rapaz fosse retirado dos cuidados da mãe e da casa o mais brevemente possível, afirmando que a mãe era — cito — «uma puta egoísta» — fim de citação. Também dizia coisas como que ela achava que podia abrir as pernas e fechar os olhos aos problemas do rapaz, mas que ela — e cito novamente — «devia ter percebido» — fim de citação. Dizia que as provas necessárias para o afastamento da criança podiam ser encontradas na casa deles.

— E o que encontraram na casa?

— Não encontrámos nada. Seguindo as nossas directivas, demos seguimento à alegação dos maus-tratos do rapaz e falámos com o rapaz introvertido e com os pais, chocados, a mãe e o padrasto. Mas não descobrimos nada de extraordinário, o que, infelizmente, não é invulgar em casos de assédio como este.

— Quero ver o e-mail. Pode enviar-me uma cópia?

Era o que Henning esperava ouvir.

— Posso, assim que me mostrar um mandado do tribunal. E agora, se não há mais nada…

— Mas não havia informação do remetente?

— Não. É isso que significa a palavra «anónimo». Como eu disse…

— Porque haveria alguém de estar a assediá-los?

— Não descobrimos nada. O plano de denúncias é usado principalmente para a prática de assédio. Pergunte às Finanças. Os políticos criaram este esquema que leva as pessoas a denunciarem-se umas às outras, mesmo quando não há nada a ganhar com isso. Ninguém pensa que existem realmente pessoas que têm de gastar o seu tempo e recursos a investigar a merda que escrevem e enviam. Mas, como eu disse, se não há mais nada…

— Há sim. Já que estamos a falar, quero que investigue se também receberam alguma denúncia relativa a duas outras crianças.

O investigador dá a Henning mais dois números da segurança social, desta vez de duas raparigas, Lina e Sofia Sejer-Lassen. Embora a família viva agora em Klampenborg, sabe que até há pouco tempo viviam em Islands Brygge, no município de Copenhaga, e é sobre esse período que ele quer informações. Irritado, Henning volta a carregar nas teclas do computador enquanto olha para o relógio. Ainda consegue preparar-se se se despachar. O computador acaba por encontrar os números pedidos, e Henning olha para o ficheiro do caso, enquanto o inspector repete os números. Henning prepara-se para dizer que se lembra do caso, pois também era um dos seus, mas é então que descobre algo no ecrã de que nunca se tinha apercebido. Folheia os documentos, volta rapidamente ao ficheiro de Magnus Kjær para verificar a sua impressão e as palavras do e-mail anónimo. Henning Loeb repara em algo que não entende, e isso fá-lo proceder com cautela.

— Infelizmente não. Não tenho nada acerca delas. Pelo menos nada que eu veja.

— Tem a certeza?

— O sistema não localizou os números. Mais alguma coisa? É que estou muito ocupado.

Depois disso, Henning Loeb tem um mau pressentimento. Por precaução, envia imediatamente um e-mail ao serviço de informática a explicar que o sistema foi abaixo e não pôde ajudar um investigador da polícia numa consulta. Não que pense que é relevante, mas nunca se sabe. E Henning está a uma entrevista de distância de subir na hierarquia e de se afastar daquela merda. Para muito longe. Para o segundo piso e para o Secretariado para a Gestão Tecnológica e Ambiental, e talvez para aquela ruiva.