Thulin abre o computador portátil em cima da mesa na sala escura e começa a ler o material que foi compilado pelos outros investigadores do grupo naquele dia. Especialmente o que diz respeito a Erik Sejer-Lassen. Sebastian fora-se embora, e era o que ela desejava, mas o encontro podia ter corrido melhor.
— Quando não retribuis os meus telefonemas, arriscas-te a que eu apareça de repente — disse ele quando chegaram ao apartamento. Ela acendera a luz da cozinha e tivera a sensação de que há muito tempo que não ia ali. As roupas húmidas da busca nocturna no bosque ainda estavam empilhadas a um canto, e em cima da mesa da cozinha havia uma tigela com restos secos de iogurte daquela manhã.
— Como sabias que eu estava a vir para casa?
— Arrisquei e tive sorte.
A situação na rua fora desconfortável, e ainda se sentia irritada por não ter reparado no Mercedes cinzento-escuro de Sebastian na fila de carros estacionados em frente à sua porta até ele ter batido na janela. Ela saíra do carro, e Hess fizera o mesmo para passar para o lugar do condutor, pois tinham concordado que ele podia usar o carro para ir para casa. Por um momento, ele e Sebastian ficaram frente a frente e cumprimentaram-se com um aceno de cabeça, o de Sebastian efusivo, e o de Hess mais contido, e Thulin dirigira-se para a porta de casa. Uma situação sem importância, mas irritava-a que Hess tivesse conhecido Sebastian e que tivesse visto um pouco da sua vida privada. Ou seria Sebastian que a irritava? Fora como encontrar uma criatura de outro planeta, mas era justamente isso que lhe agradava nele.
— Tenho de deitar mãos ao trabalho imediatamente.
— Aquele era o teu novo parceiro? O que foi mandado embora da Europol?
— Como sabes que ele é da Europol?
— Almocei com uma pessoa do gabinete do promotor público hoje. Mencionou que havia um investigador que tinha arranjado problemas em Haia e que fora mandado para casa, para o Departamento de Homicídios. Somei dois mais dois, porque tu me tinhas falado de um tipo que tinha começado a trabalhar no teu departamento e que não fazia nada. Como está a correr o caso?
Thulin arrependeu-se de ter falado de Hess quando Sebastian lhe telefonara umas duas vezes durante a semana e no fim-de-semana. Não tivera tempo para se encontrar com ele por causa do caso e mencionara que estava mais ocupada do que o habitual porque o seu parceiro não ajudava nada. O que já não lhe parecia uma avaliação correcta de Hess.
— Vi nos noticiários da noite que aconteceu algo no primeiro local do crime. Foi por isso que ele escapou de um acidente de viação?
Sebastian aproximou-se dela, e ela afastou-o.
— Tens de ir. Tenho muitas leituras a fazer.
Sebastian tentara acariciá-la, e ela rejeitara-o. Ele tentara novamente e dissera que tinha saudades dela e que a desejava, e até a lembrara de que a filha dela não estava em casa e podiam fazer o que quisessem, por exemplo na mesa da cozinha.
— Porque não? Passa-se alguma coisa com a Le? Como é que ela está?
Mas Thulin não queria falar de Le e em vez disso repetiu que queria que ele se fosse embora.
— Então é assim? Tu decides quando e como, e eu não tenho uma palavra a dizer?
— Sempre foi assim. Se não consegues lidar com isso, é melhor ficarmos por aqui.
— Porque encontraste uma pessoa mais divertida?
— Não. Se isso acontecer, eu digo-te. Obrigada pelas flores.
Sebastian rira, mas continuava a ser difícil pô-lo fora, e ela supôs que era porque não estava habituado a ser mandado embora quando aparecia com flores e uma garrafa de vinho. Talvez também fosse estranho ela estar a fazê-lo, e prometeu a si mesma telefonar-lhe no dia seguinte.
Thulin come metade de uma maçã em frente ao computador antes de o telefone tocar. É Hess. Depois da conversa no carro, decidiram que ele ia investigar o acidente da filha do casal Sejer-Lassen, portanto, não a surpreende que ele esteja a ligar. O que é estranho é a forma como ele pergunta educadamente se está a incomodar.
— Não, está tudo bem. O que queres?
— Tinhas razão. Acabo de ligar para as urgências do hospital. Para além da fractura do nariz e da clavícula que resultou na hospitalização da rapariga mais velha, ambas as filhas dos Sejer-Lassen receberam tratamento na sequência de acidentes em casa. Ambos os casos quando viviam em Islands Brygge e em Klampenborg. Não há nada que indique abuso sexual, mas é possível que as crianças fossem vítimas de maus-tratos. Apenas de um tipo diferente dos que o Magnus Kjær sofreu.
— Quantos acidentes?
— Ainda não sei. Demasiados.
Thulin ouve o relato dos resultados da investigação dele. Quando Hess acaba de lhe contar dos relatórios das hospitalizações, a náusea que sentira naquele quarto subterrâneo regressa. Mal o ouve quando Hess sugere que comecem o dia seguinte com uma visita à Câmara Municipal de Gentofte.
— A casa dos Sejer-Lassen, em Klampenborg, pertence ao município de Gentofte, e, se houve uma denúncia contra Anne Sejer-Lassen, é o sítio certo para procurar.
Ele termina a conversa com:
— E, já agora, obrigado por teres voltado à casa, se ainda não te tinha dito.
Ela responde:
— Não tens por que agradecer. Adeus. — E desliga.
Depois disso, Thulin tem dificuldade em relaxar. Decide antes tomar um estimulante, desta vez um Red Bull, que tira do frigorífico, para não cair completamente. Mas, quando se levanta, Thulin olha pela janela.
Do seu apartamento no quarto andar, normalmente consegue ver os telhados e torres da cidade, uma vista que se estende quase até aos lagos. Mas os andaimes do prédio em frente taparam quase completamente a vista desde que foram instalados, no último mês. Quando o vento sopra com força como naquela noite, agita as coberturas e faz os andaimes rangerem e estalarem, como se estivessem prestes a cair. Mas é no vulto que o olhar de Thulin se fixa. Há ali um vulto? Por detrás do andaime no prédio em frente ao seu apartamento, Thulin pensa ver uma silhueta. Por um momento, é como se estivesse a olhar directamente para ela. Subitamente, Thulin lembra-se da figura que a observava do outro lado da fila de trânsito quando foi levar a filha à escola, há uma semana. A sua mente entra em alerta e diz-lhe que é a mesma pessoa. Mas, quando o vento sopra novamente e faz a lona agitar-se como uma vela gigante, a forma desvanece-se. Quando a cobertura volta ao lugar, a silhueta desapareceu. Thulin apaga a luz e fecha o computador. Durante vários minutos, fica parada no meio da cozinha escura a olhar para o andaime e a suster a respiração.