As denúncias anónimas submetidas ao município de Copenhaga contra mulheres com filhos revelam-se muito populares. Existem bastantes, e, quando os funcionários começam a chegar com as pastas vermelhas dos casos e a pilha em cima da mesa começa a crescer, Hess começa a perguntar-se se o plano que ele e Thulin elaboraram será o certo. Mas, depois de falar com Nylander, concluiu que não havia muito mais a fazer senão começar a investigar aquela via. Enquanto Thulin preferia ler os casos no seu computador portátil na grande sala, Hess escolhera sentar-se na sala de reuniões onde se encontra neste momento a virar as páginas, algumas das quais ainda estão quentes da impressora.
O seu método é simples. Abre o ficheiro e lê apenas a denúncia anónima. Se a denúncia não lhe parece relevante, a pasta vai para a pilha do lado esquerdo. Se lhe parece relevante e precisa de ser examinada com mais atenção, vai para a pilha do lado direito.
Descobre rapidamente que a triagem é mais difícil do que pensava. Em todas as denúncias há a mesma raiva contra as mães que reconhece das denúncias contra Laura Kjær e Anne Sejer-Lassen. Frequentemente, têm um tom muito emotivo, algumas com referências tão específicas que é fácil adivinhar que devem ter sido escritas por um ex-marido, uma tia ou uma avó que sentiu a necessidade de escrever uma denúncia a expor as falhas da mãe. Mas Hess não pode ter a certeza, e a pilha do lado direito continua a crescer. A leitura é horrível, uma vez que as denúncias descrevem geralmente a guerra civil no meio da qual as crianças estão e que ainda pode ser a realidade, porque todos os casos, em conformidade com o pedido de Hess, foram fechados com a decisão de não intervir. Ainda assim, a administração teve de investigar as circunstâncias, e, embora isso não ilibe Henning da sua responsabilidade, agora Hess entende melhor o cinismo do funcionário, porque existem naquelas denúncias muitos outros motivos para além da preocupação com o bem-estar das crianças.
Depois de ter lido cerca de quarenta denúncias anónimas a pedir intervenção nos últimos seis meses, Hess começa a sentir-se assoberbado. Demorou muito mais do que esperava. Quase duas horas, porque às vezes teve de ler a investigação do caso para fazer a sua avaliação. Mas o que era pior era que o assassino podia ter sido o autor da maioria delas. E nenhuma usava as expressões «puta egoísta» ou «devia ter percebido», como acontecera nas denúncias contra Laura Kjær e Anne Sejer-Lassen.
Um funcionário informa-o de que não há mais casos com os critérios que pediu, e ele recomeça do topo da pilha. Depois de acabar de ler tudo pela segunda vez, a escuridão abateu-se sobre a rua do lado de fora da Câmara Municipal. Passam pouco das quatro e meia, mas os candeeiros de rua já foram ligados na H.C. Andersens Boulevard, e as lâmpadas coloridas iluminam as árvores escuras ao longo do parque de diversões. Desta vez, Hess seleccionou sete denúncias, mas não tem a certeza se alguma delas é a certa. Em todas as sete, o autor pede o afastamento de uma ou mais crianças da casa da mulher em questão. As denúncias são todas muito diferentes. Algumas são breves, outras são longas. Uma delas tem quase a certeza de que foi enviada por um membro da família, e outra parece-lhe ter sido enviada por um educador, porque há informações de uma reunião numa escola.
Mas Hess não consegue decifrar as últimas cinco. Exclui outra porque usa palavras antiquadas, como se tivesse sido escrita por um avô ou avó, e outra porque está cheia de erros de ortografia. Restam três: uma mulher da Gâmbia acusada de deixar os filhos serem explorados por trabalho infantil. Uma mãe deficiente acusada de negligenciar os filhos por ser toxicodependente. Uma mãe reformada acusada de ter sexo com o próprio filho.
Todas as três denúncias descrevem circunstâncias horríveis, e Hess conclui que, se uma delas tiver sido escrita pelo assassino, a situação é provavelmente real. Pelo menos fora assim nos casos de Laura Kjær e de Anne Sejer-Lassen.
— Até onde chegaste? — pergunta Thulin quando entra com o computador portátil nos braços.
— Não consegui muito.
— Há três que saltam à vista. A da mãe da Gâmbia, a da mãe deficiente e a da mãe reformada.
— Sim, talvez.
Hess não se surpreende por Thulin ter chegado à mesma conclusão que ele. Na verdade, começou a perguntar-se se ela não faria mais progressos a trabalhar sozinha.
— Acho que devemos investigar. Talvez as três.
Thulin fita-o, impaciente. Hess continua com dor de cabeça. Há algo que faz tudo aquilo parecer pesado e irrelevante, mas Hess não consegue perceber o que é. Quando olha pela janela, descobre que a escuridão se adensou e sabe que tem de tomar uma decisão se querem agir ainda hoje.
— O assassino deve ter calculado que haveríamos de descobrir que todas as vítimas tinham sido denunciadas ao município. Certo? — pergunta Hess.
— Certo. Talvez a sua intenção até fosse essa. Mas não tem como saber com que rapidez íamos descobrir.
— Então, ele também sabe que em algum momento íamos ler as denúncias feitas contra Laura Kjær e Anne Sejer-Lassen, respectivamente. Certo?
— Porque estamos a jogar ao jogo das perguntas? Se não conseguirmos descobrir, podemos ir para a rua e interrogar os vizinhos outra vez.
Mas Hess continua. Tenta seguir o seu raciocínio.
— Então, se tu fosses o assassino e tivesses escrito as duas denúncias — e se soubesses que íamos descobri-las e sentirmo-nos muito espertos —, como escreverias a tua terceira denúncia?
Hess vê que ela entendeu. O olhar de Thulin desvia-se dele para o ecrã do computador.
— A linguagem usada nas denúncias é de um modo geral simples. Mas, se supusermos que o objectivo era confundir-nos, há duas outras que se destacam. A que está cheia de erros de ortografia e a que está escrita em dinamarquês antigo.
— Qual das duas te parece? — pergunta Hess.
O olhar de Thulin percorre rapidamente o ecrã, enquanto Hess vai buscar as pastas acima da mesa. Desta vez, nota algo ao ler a carta carregada de erros. Talvez seja a sua imaginação. Talvez não. Thulin vira o computador para Hess, e ele assente. É o mesmo caso que ele escolheu. Uma denúncia contra Jessie Kvium. 25 anos. Residente no complexo residencial de Urbanplannen.