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Jessie Kvium afasta-se apressadamente com a filha de 6 anos, mas o jovem professor imigrante de olhar afável apanha-as no corredor antes de terem tempo de virar a esquina.

— Jessie, posso falar consigo por um momento?

Antes de ela acabar de explicar que, infelizmente, ela e Olivia têm de ir para a aula de dança, Jessie percebe pela expressão resoluta do homem que ele não vai desistir. Ela tenta evitá-lo porque consegue sempre fazê-la sentir-se culpada, e agora, em vez disso, tem de tentar convencê-lo a deixá-la ir. Pestaneja e afasta o cabelo da cara com as suas unhas longas e acabadas de pintar, para o fazer notar como está bonita. Passou duas horas no cabeleireiro, sim, é certo que era o cabeleireiro imigrante de Amager Boulevard, mas é barato e faz maquilhagem e manicure quando há uma longa fila de espera, como aconteceu hoje. A sua nova saia amarela é justa nas ancas, acabada de comprar na Hø & Møg por apenas 79 coroas, em parte porque era um resto da colecção de Verão e em parte porque mostrou à empregada da loja que tinha a costura esgaçada. O que provavelmente não tinha importância, tendo em conta o fim a que se destinava.

Mas o seu sorriso e pestanejar não têm o efeito desejado no professor. A princípio pensa que vai ouvir um raspanete por ter ido buscar a filha tão perto da hora do fecho, às cinco, portanto, já tem preparada a resposta de que os impostos que paga lhe dão direito a isso. Mas, hoje, o professor, que se chama Ali, quer saber por que motivo Olivia não tem um impermeável e umas botas de borracha.

— Os sapatos que ela tem são bons, mas ela diz que fica com os pés frios quando ficam molhados, portanto, talvez não sejam práticos para o Outono.

O professor olha discretamente para os ténis esburacados de Olivia, e Jessie tem vontade de lhe gritar para calar a boca. Ela não tem 500 coroas para comprar roupa para a filha agora, e, se as tivesse, preferia transferir a filha para longe daquela turma onde 50 por cento das crianças falam árabe e onde cada palavra tem de ser traduzida por três intérpretes diferentes quando têm as reuniões de pais. Não que costume ir às reuniões de pais, mas é o que ouviu dizer.

Infelizmente, há outros professores no corredor, portanto Jessie opta pelo plano B.

— Mas nós comprámos um impermeável e botas de borracha. Simplesmente esquecemo-nos deles na casa de férias, mas vamos lembrar-nos de os trazer da próxima vez.

Claro que é tudo mentira. Não há roupas, nem botas, nem casa de férias, mas a meia garrafa de vinho branco que bebeu em casa antes de se vestir e conduzir até ali ajuda-a com a mentira.

— Ok, ainda bem. E como estão as coisas a correr em casa com a Olivia, na sua opinião?

Jessie repara nos olhares dos professores que passam por ela enquanto conta que a rapariga está bem. Ali baixa o tom de voz e diz-lhe que está um pouco preocupado porque não vê melhorias no contacto de Olivia com as outras crianças. Olivia parece muito isolada, e ele pensa que seria bom terem uma conversa. Jessie apressa-se a agradecer-lhe, com a mesma simpatia, como se ele tivesse acabado de lhe oferecer uma viagem com tudo pago.

Depois disso, ela senta-se no pequeno Toyota Aygo, a fumar à janela, enquanto a filha veste a roupa de dança no banco traseiro. Escureceu, e é seguro fazê-lo, e Jessie diz à filha que o professor tem razão e que em breve vão comprar roupa para a chuva.

— Mas também é importante que brinques mais com os outros meninos, ok?

— Dói-me o pé.

— Vai passar depois do aquecimento. É importante nunca faltares, querida.

A escola de dança fica no último piso do Centro Comercial Amager, e, quando chegam, faltam apenas dois minutos para o início da aula. Têm de correr pela escada acima desde o parque de estacionamento subterrâneo, e as outras pequenas princesas já estão a postos no chão de madeira envernizado, com as suas roupas caras e modernas. Olivia ainda usa o pequeno fato da Føtex que usou no ano passado, e, embora lhe esteja apertado nos ombros, ainda lhe servirá durante mais algum tempo. Jessie apressa-se a ajudar a filha a despir o casaco e manda-a para a sala, onde a professora a recebe com um sorriso afectuoso. Sentadas ao longo da parede estão as mães, muito finas e a falarem das suas férias de Outono nas Canárias, dos seus spas e dos seus luxos. Ela cumprimenta-as educadamente e sorri-lhes, mas tem vontade de as queimar a todas numa fogueira.

Quando as raparigas começam a dançar, ela olha em volta com impaciência e endireita a saia, mas ele ainda não chegou, e, por um momento, ela fica ali junto das outras mães, a sentir-se desiludida. Tinha a certeza de que ele viria, e o facto de ele não estar ali fá-la sentir-se insegura da relação que acredita que têm. Sente-se desadequada ao pé das outras mães e, embora tenha decidido ficar calada, começa a balbuciar nervosamente.

— Oh, estão mesmo bonitas hoje, as nossas princesinhas. Parece mentira que ainda só começaram há um ano!

Cada palavra que diz é recebida com uma expressão compassiva. Por fim, a porta abre-se, e ele entra. Também está acompanhado pela filha, e ela corre para junto das outras e começa a participar na dança. Ele olha para ela e para as outras mães, assente e sorri descontraidamente, e o coração de Jessie começa a bater mais depressa. Ele avança com confiança e balança na mão as chaves do Audi que ela conhece tão bem. Depois de ele trocar algumas palavras com as outras mães e de as fazer rir, Jessie apercebe-se de que não olhou para ela. Ignora-a, apesar de ela estar sentada ao lado dele como um cão, e é por isso que ela diz subitamente que precisa de discutir um assunto com ele. Algo importante sobre a «cultura de classes» na escola — expressão que acaba de ouvir de uma das outras mães. Ele parece surpreendido, mas, antes que tenha tempo de responder, ela começa a dirigir-se para a saída. Jessie olha para trás e nota, com satisfação, que parece estranho ele recusar um pedido para discutir um assunto tão importante, por isso vê-se obrigado a pedir licença e a segui-la.

Enquanto ela desce as escadas e atravessa a pesada porta que conduz ao corredor por baixo da escola de dança, ouve os passos dele atrás de si. Pára e aguarda, mas, assim que vê o rosto dele, percebe que está zangado.

— Afinal qual é o teu problema? Ainda não percebeste que acabou? Deixa-me em paz!

Ela abraça-o, agarra-lhe as calças e abre o fecho de correr, enfia a mão lá dentro e encontra imediatamente o que procurava. Ele tenta afastá-la, mas ela não desiste e, assim que o puxa para fora, enfia-o na boca, e a resistência dele transforma-se em incentivo. Quando ele está quase a terminar, era vira-se e inclina-se sobre o contentor de lixo, enquanto sobe a saia com a outra mão. Mas ele adianta-se a ela. Puxa-lhe a saia amarela nova para o lado, até que ela ouve o tecido rasgar. Sente-o a penetrá-la e empurra para trás para ele não poder recuar e dentro de poucos segundos ele termina, ofegante. Ela vira-se, beija-lhe os lábios sem vida e segura o seu membro flácido, mas ele recua como se ela lhe tivesse dado um choque e dá-lhe uma bofetada.

Jessie está demasiado chocada para conseguir falar. Sente o calor alastrar-lhe pelo rosto enquanto ele fecha as calças.

— Esta foi a última vez. Não sinto nada por ti. Nada. E nunca vou deixar a minha família. Entendes?

Ela ouve os passos dele e a porta pesada a fechar-se. Fica ali sozinha, com a dor a alastrar-lhe pelo lado esquerdo da cabeça. Ainda o sente entre as pernas, mas agora sente vergonha. Numa placa de metal na parede vê o seu reflexo distorcido e começa a endireitar as roupas, mas a saia está rasgada. O rasgão continua até à parte da frente, e ela tem de fechar o casaco para não se ver. Limpa as lágrimas do rosto, ouve a música alegre e distante no andar de cima e recompõe-se. Jessie regressa pelo mesmo caminho, mas agora a porta que dá para as escadas está trancada. Tenta abri-la, em vão, e, quando tenta gritar por ajuda, só consegue ouvir a música ao longe.

Jessie decide escolher outro caminho, através de um longo corredor com canos que alimentam o aquecimento central, um lugar onde nunca esteve. Mas ao fim de algum tempo o caminho bifurca, e a direcção que escolhe acaba num beco sem saída. Jessie experimenta outra porta, mas também está trancada. Volta para trás e passa pelo corredor com os canos do aquecimento, mas, depois de avançar 20 metros, ouve subitamente um som atrás de si.

— Está aí alguém?

Por um momento, tenta imaginar que foi ele que voltou para lhe pedir desculpa, mas o silêncio diz-lhe outra coisa. Continua a avançar, insegura, e depois começa a correr. Os corredores sucedem-se, e Jessie pensa ouvir os passos atrás de si, e desta vez não grita. Tenta abrir todas as portas que encontra, e, quando uma finalmente se abre, sai e corre pelas escadas acima. Pensa ter ouvido a porta a abrir-se lá em baixo e, quando chega ao patamar seguinte, empurra a porta da sala de dança com tanta força que a faz bater na parede.

Jessie Kvium sai a cambalear para o piso superior, onde as famílias empurram os seus carrinhos ao som das promoções de Outono. Quando se dirige para a entrada da escola de dança, vê uma mulher e um homem alto com o rosto ferido. Estão a falar com uma das outras mães, que, subitamente, a vê e aponta na sua direcção.