Thulin não planeara desperdiçar tempo a jantar, mas a aparição de Hess sob o candeeiro do hall de entrada alterou a situação.
— Vim mais cedo porque arranjei plantas do complexo de Urbanplanen e dos apartamentos. Tens de te instalar antes de irmos para lá.
— Mas primeiro tens de me ajudar — diz Le, antes que Thulin tenha tempo de responder. — Como te chamas?
— Mark. Mas, como eu disse, infelizmente não tenho tempo para te ajudar com o jogo agora, mas, noutro dia, terei muito gosto.
— Agora tens de comer, Le — diz Thulin, apressada.
— Mas então o Mark pode jantar comigo. Vamos, Mark, assim podes explicar-me tudo. Os namorados da minha mãe não podem jantar connosco, mas, como não és namorado dela, tu podes.
Le desaparece para a cozinha. Thulin fica parada diante de Hess por um momento. Subitamente, parece-lhe estranho contradizer a filha, por isso afasta-se, hesitante, e guia Hess para lá.
Na cozinha, ele senta-se ao lado de Le, que troca o iPad pelo computador portátil, enquanto Thulin vai buscar três pratos. Com encanto e simpatia, como uma verdadeira princesa, Le cativa a atenção do seu convidado. A princípio, a simpatia é um ataque a Thulin, mas depois, quando Hess lhe explica o que sabe por motivos misteriosos, a rapariga fica completamente absorta nos conselhos que podem levá-la à terra prometida do Nível 6.
— Conheces o Park Su? É mundialmente famoso!
— Park Su? — repete Hess.
Em pouco tempo, aparecem em cima da mesa um póster e um pequeno boneco de plástico do adolescente coreano. Começam a comer, e a conversa sobre o jogo estende-se a outros jogos que Thulin não sabia que a filha conhecia, mas rapidamente se torna claro que Hess só conhece aquele jogo e nunca experimentou os outros. Para a filha, é como ter um aprendiz. Espalha o seu conhecimento com um fluxo contínuo de palavras e, quando esgota o assunto, vai buscar a gaiola do periquito, que em breve terá um companheiro, para poderem ter mais nomes na árvore da família.
— O Ramazan tem 15 na árvore dele, mas eu só tenho três. Cinco se contar com o periquito e o hámster. A minha mãe não quer que eu inclua os namorados dela, por isso não tenho mais, se não teria muitos.
Por esta altura, Thulin decide que está na hora de a filha tentar chegar ao Nível 6, e, depois de mais uma sessão de bons conselhos de Hess, Le instala-se finalmente no sofá para ir para a guerra.
— É uma miúda esperta.
Thulin assente e pensa que vão começar as perguntas do costume acerca do pai da rapariga, das relações familiares e das relações amorosas, assuntos que não quer discutir. Mas, em vez disso, Hess volta-se para o casaco que pousou nas costas da cadeira e retira do bolso um molho de papéis que espalha em cima da mesa de refeição.
— Dá uma olhadela a estes mapas. Vamos revê-los.
Hess é exaustivo, e Thulin ouve com muita concentração, enquanto segue os dedos dele, que apontam para a distribuição dos andares, as escadas e os espaços exteriores.
— Vai haver vigilância de todo o complexo, mas, claro, a uma distância segura, para não assustarmos o perpetrador. Se ele aparecer.
Também menciona o boneco, que vai estar embrulhado num cobertor, para Thulin poder fingir que está a levar a criança adormecida ao colo. Thulin só tem alguns comentários a fazer acerca da vigilância, que receia alertar o assassino, mas Hess insiste que é necessária.
— Não podemos correr riscos. Se a Jessie Kvium é a próxima vítima, provavelmente o assassino sabe tudo acerca do complexo, e temos de estar presentes para podermos intervir depressa. Se surgir uma situação de perigo, tens de nos alertar imediatamente. Tal como tens de me dizer agora se preferires que seja outra pessoa a fazê-lo.
— Porque haveria de o fazer?
— Porque isto não está isento de risco.
Thulin fita os olhos dele, um azul e um verde, e, se não o conhecesse, poderia pensar que estava preocupado com ela.
— Está tudo bem. Não tenho problema nenhum com isso.
— É dela que estão à procura?
Sem que se tivessem dado conta, Le saiu da sala e foi à cozinha buscar um copo de água. Está de pé a olhar para o iPad de Thulin, que está apoiado contra a parede e transmite mais um noticiário. Este também tem como história principal o caso de Kristine Hartung, e um narrador descreve os detalhes passados e presentes do caso.
— Não quero que vejas isso. Não é para crianças.
Thulin levantou-se e, com um gesto rápido, desligou o ecrã. Tinha explicado a Le que ia ter de trabalhar até tarde e, quando a filha insistira em saber porquê, Thulin dissera-lhe que estavam à procura de uma pessoa. Não mencionara que era um criminoso, portanto, Le fez a ligação com Kristine Hartung.
— O que lhe aconteceu?
— Vamos, volta para o sofá e para o teu jogo.
— A rapariga está morta?
A pergunta é inocente, como se tivesse perguntado se ainda há dinossauros vivos em Bornholm. Mas, por baixo da curiosidade, nota-se uma preocupação que leva Thulin a prometer a si mesma que no futuro se vai lembrar de desligar as notícias quando Le estiver por perto.
— Não sei, Le. Mas…
Thulin não sabe o que dizer. Qualquer resposta que dê levanta problemas.
— Ninguém sabe. Talvez esteja apenas perdida. Às vezes as pessoas perdem-se e têm dificuldade em encontrar o caminho de casa. Mas, se ela estiver perdida, vamos encontrá-la.
É Hess quem responde. É uma boa resposta, e os olhos da rapariga brilham novamente.
— Eu nunca me perdi. Os teus filhos já se perderam?
— Não tenho filhos.
— Porquê?
Thulin nota que Hess sorri para a rapariga, mas desta vez não responde. Quando a campainha toca no hall, a espera termina.