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— Interrompo?

Tim Jansen está à porta. Tem olheiras marcadas, uma expressão distante, e Nylander sente o cheiro de bebida.

— Não, pode entrar.

Atrás de Jansen, a esquadra está agitada, e, já no dia anterior, depois da cerimónia memorial, Nylander rejeitara as suas tentativas de continuar a trabalhar no caso, portanto não é por isso que decide tirar aquele tempo. Mas Hess e Thulin acabaram de sair do seu gabinete, e Jansen não os cumprimentou quando se cruzaram, limitando-se a fitá-los como se não os tivesse ouvido, e, entre outras coisas, parece-lhe boa ideia convidar o homem a entrar.

Nylander não demorara muito tempo a passar a mensagem a Thulin e Hess. Estivera em contacto com o Ministério dos Assuntos Sociais naquela manhã, e a ministra Rosa Hartung informara-o através do seu conselheiro, Frederik Vogel, de que gostaria de contribuir com o que pudesse.

— Mas a ministra não é suspeita nem foi desacreditada de nenhuma forma, portanto, é essencial que vejamos isto como uma conversa e não como um interrogatório.

Nylander supôs que a situação não agradava ao conselheiro, que ele recomendara à ministra que evitasse essa «conversa» e que ela insistira pessoalmente em ajudar. Apesar da mensagem, Hess, tal como Nylander, estava a gostar cada vez menos de estar naquele gabinete.

— Isto significa que vai reabrir o caso do desaparecimento da Kristine Hartung?

Nylander notou que Hess disse «o desaparecimento da Kristine Hartung» e não «a morte da Kristine Hartung».

— Não, essa parte está fora de questão. Se não consegue entender isso, mais vale voltar para o complexo de Urbanplanen e continuar a bater às portas.

Na noite anterior, Nylander recusara-se uma vez mais a entrevistar Rosa Hartung, mas a pressão sobre o departamento começava a tornar-se enorme. A visão com que se deparara na colónia de férias fora um pesadelo, e, com a morte do investigador Martin Ricks, a investigação tornara-se um assunto pessoal para muitos. Todas as vidas eram importantes, e não deveria haver diferença entre a morte de um polícia e a de qualquer outra pessoa, mas o assassinato a sangue-frio do investigador de 39 anos que, segundo o médico-legista, fora atacado por trás e golpeado na carótida ficara marcada no ADN de todos os que trabalhavam na polícia.

Naquela manhã, às sete horas, fora pedido a Nylander que desse uma actualização de estado numa reunião extraordinária com a direcção. Em princípio, deveria ser fácil falar-lhes da situação de alerta máximo e do grande número de barcos de investigação que haviam sido enviados para o lago e dos quais aguardavam resultados. Mas embora não tivesse mencionado o seu nome nem uma vez, a sombra de Kristine Hartung pairava sobre a sala. Era como se estivessem apenas à espera de que ele terminasse para abordarem o verdadeiro assunto da reunião: as impressões digitais encontradas nos bonecos de castanhas.

— À luz do que aconteceu, há alguma dúvida em relação à resolução do caso de Kristine Hartung?

As palavras do vice-director foram diplomáticas, mas não deixavam de soar como uma provocação. Pelo menos, foi o que Nylander sentiu. Era um tópico crucial da conversa, e Nylander reparou que todos estavam de olhos postos nele. Todos os chefes presentes se davam por felizes por não estarem no lugar dele, porque a pergunta era mais traiçoeira que uma estrada de abastecimento no Médio Oriente. Mas Nylander tinha a resposta. Isoladamente, não tinham encontrado nada no caso Hartung, o que indicava que estava resolvido. A investigação fora exaustiva, e todas as possibilidades tinham sido investigadas até ao momento em que as provas haviam sido apresentadas em tribunal e o culpado fora condenado.

Por outro lado, havia três impressões digitais de Kristine Hartung em três bonecos feitos de castanhas que estavam relacionados com os assassinatos de três mulheres. Mas isso podia significar qualquer coisa. Podia ser uma espécie de assinatura de um crítico da ministra dos Assuntos Sociais e das autoridades sociais, e por esse motivo a ministra deveria ser posta sob protecção. E os bonecos de castanhas podiam ter sido comprados a Kristine Hartung antes da sua morte, mas neste momento era tudo uma incógnita, com a excepção de que nada indicava que a rapariga podia estar viva algures. Para calar os chefes, Nylander até dissera que talvez a intenção do assassino fosse espalhar dúvida e a incerteza, por isso eles, os profissionais, deviam concentrar-se em factos e realidades.

— Mas, pelo que ouvi dizer, nem todos os seus investigadores têm a mesma opinião.

— Então ouviu mal. Talvez haja um investigador que tenha uma forma de pensar demasiado criativa, mas isso não é de admirar, porque ele não esteve envolvido na grande investigação que conduzimos no ano passado.

— De quem estamos a falar? — perguntou um inspector-chefe.

O subchefe de Nylander explicara que era Mark Hess, o agente de ligação que tivera problemas em Haia e fora enviado para ali até o seu futuro ser decidido. Nylander reparou nas expressões de desagrado dos outros, que não tinham boa imagem do agente de ligação que complicara ainda mais a sua relação com a Europol. Pensou que a discussão havia terminado, mas então foi a vez de o vice-director da polícia dizer que se lembrava bem de Hess e que sabia que o homem não era estúpido. Hess podia ser uma pessoa complicada, mas no seu tempo fora um dos melhores investigadores que já tinha entrado naquele departamento.

— Mas entendo que ache que o Hess está enganado. É reconfortante sabê-lo, especialmente tendo em conta que o ministro da Justiça esteve na rádio há menos de uma hora e negou a existência de motivos para reabrirmos o caso da Kristine Hartung. Por outro lado, temos em mãos quatro assassinatos, um deles de um polícia, portanto, é crucial que algo aconteça . Será muito prejudicial para nós se não investigarmos uma pista porque alguém quer salvar a própria pele.

Nylander negara estar a ocultar alguma coisa, mas a desconfiança pairava no ar, em cima da mesa de mogno da sala de reuniões. Pensando depressa, Nylander acrescentou imediatamente que fora por isso que ordenara que entrevistassem a ministra Rosa Hartung. Para ver se ela e o Ministério dos Assuntos Sociais tinham alguma informação que pudesse levar à detenção do assassino.

Depois disso, Nylander saiu da sala de cabeça erguida e sem revelar a parte de si que receava ter cometido um erro ao dar por encerrado o caso Hartung.

Já revira inúmeras vezes o processo mentalmente, mas não conseguia perceber onde podia estar o erro. Se é que havia algum. Por outro lado, sabe que pode esquecer os seus grandes planos de ascensão na carreira na esquadra ou em qualquer outro lugar naquela cidade se não fizerem uma descoberta em breve.

— Tem de me deixar voltar ao caso.

— Jansen, já tivemos esta conversa. Você não vai trabalhar no caso. Vá para casa. Tire uma semana de folga.

— Eu não vou para casa. Quero ajudar.

— Está fora de questão. Eu sei o quanto o Ricks era importante para si.

Tim Jansen não se sentou na cadeira reclinável que Nylander lhe oferecera e, em vez disso, manteve-se de pé a olhar pela janela, na direcção do pátio.

— O que vai acontecer agora?

— As pessoas vão trabalhar. Você será notificado quando soubermos alguma coisa.

— Então ainda não têm nenhuma pista? O Hess e a gaja?

— Jansen, vá para casa. Não está a pensar com clareza. Vá para casa e durma.

— A culpa foi do Hess. Sabe isso, não sabe?

— A única pessoa que é culpada pela morte do Ricks é o assassino. Na verdade, fui eu, e não o Hess, quem autorizou a operação, portanto, se tem de se zangar com alguém, é comigo.

— O Ricks nunca teria saído sozinho da casa se não fosse o Hess. Foi o Hess quem o obrigou a isso.

— Não entendo onde quer chegar.

A princípio, Jansen não responde. Continua a olhar pela janela.

— Passámos quase três semanas sem dormir… Demos tudo o que tínhamos e, finalmente, encontrámos provas e obtivemos uma confissão… Mas então, aquele cabrão entrou aqui vindo de Haia, a espalhar boatos de que tínhamos feito asneira…

As palavras surgem lentamente, e Jansen tem uma expressão distante no olhar.

— Mas não fizeram. O caso foi resolvido. Portanto, não fizeram asneira nenhuma. Ok?

Jansen fita o espaço à sua frente. É como se não estivesse ali, mas, então, o seu telemóvel toca, e ele sai para atender. Nylander observa-o enquanto o homem sai. De repente, espera sinceramente que Hess e Thulin obtenham alguma informação da entrevista com a ministra.