O funcionário do Ministério dos Assuntos Sociais entra com caixas que pousa na mesa elíptica branca no centro da grande sala.
— Deve estar aí tudo. Digam-me se precisarem de mais alguma coisa — diz o chefe do departamento antes de entrar. — Divirtam-se.
Por um momento, as caixas são iluminadas pela luz do Sol, que destaca as partículas de pó no ar, antes de as nuvens cobrirem o céu lá fora e de os deixarem entregues à iluminação das luzes fluorescentes. Os assistentes criminais debruçam-se sobre as pastas que há dentro das caixas, mas Hess tem um déjà vu. Há apenas alguns dias, esteve noutra sala de reuniões com outra pilha de pastas, dessa vez na Câmara Municipal de Copenhaga, e é como se o assassino o tivesse largado em mais um pesadelo kafkiano de novos casos para examinar. Quanto mais pastas Hess conta nas caixas, mais claro se torna que tem de fazer algo completamente diferente — fugir do previsível —, mas não sabe como.
Hess agarrara-se à esperança de obter uma resposta com a entrevista a Rosa Hartung. Depois de uma conversa com o conselheiro Vogel, que insistira que não deveria ser feita nenhuma entrevista, os três entraram na sala do ministério onde Rosa Hartung os aguardava. Ela dissera que não conhecia nenhuma das vítimas, apesar de lhe terem feito perguntas sucessivas sobre cada uma delas. Hess viu que a ministra estava realmente a tentar lembrar-se se já se tinha cruzado com alguma das vítimas ou com as suas famílias, mas não parecia ser o caso. Até sentira pena dela. Rosa Hartung, uma mulher bonita e dotada que perdera a filha, tinha um ar devastado. O seu olhar parecia confuso e vulnerável, como um animal perseguido, e, quando estava sentada em frente às fotografias e aos documentos, Hess notou que as mãos dela tremiam, apesar de tentar controlar-se.
Ainda assim, falara em tom austero, pois não tinha a menor dúvida de que Rosa Hartung era a chave. As vítimas tinham algo em comum. Nos três casos, tinham sob os seus cuidados crianças maltratadas ou vítimas de abuso. Em todos os casos, o assassino submetera uma denúncia anónima a pedir a retirada da guarda das crianças e, em todos eles, o sistema ilibara erradamente as famílias e recusara-se a agir em defesa das crianças. Uma vez que todas as vítimas tinham sido deixadas com um boneco de castanhas com as impressões digitais da filha de Rosa Hartung, isso só podia significar que o assassino queria responsabilizar Rosa Hartung, portanto, os casos tinham de ter algum significado para a ministra.
— Mas não têm. Lamento, mas não me ocorre nada…
— Então e as ameaças que recebeu recentemente? Soube que recebeu um e-mail desagradável e que alguém escreveu a palavra «assassina» no capô do carro do ministério. Tem alguma ideia de quem possa ter sido? Ou do motivo?
— Os serviços de informação fizeram-me a mesma pergunta, mas não me consigo lembrar de ninguém…
Hess evitara deliberadamente misturar as ameaças com os homicídios, porque, se era verdade o que os serviços de informação afirmavam e se a vandalização do carro do ministério ocorrera na mesma altura em que ocorrera o ataque a Anne Sejer-Lassen, as duas situações não podiam estar relacionadas. A menos que fosse uma colaboração entre dois criminosos, mas até ao momento não havia nada que o sugerisse. Thulin perdera a paciência.
— Mas de certeza que sabe do que se trata. Isto sugere que a senhora não é popular em toda a parte e deve saber se fez alguma coisa que possa levar alguém a querer vingar-se de si.
O conselheiro da ministra, Vogel, protestara contra o tom áspero da pergunta, mas Rosa Hartung insistira em tentar ajudar. Só não sabia como. Era bem sabido que ela sempre estivera do lado das crianças e sempre fora a favor da retirada da guarda se elas estivessem a sofrer, e fora por isso que pedira aos municípios que implementassem programas de denúncia como o do município de Copenhaga. O interesse das crianças era a sua prioridade, e a sua primeira acção como ministra fora incentivar os municípios a assumirem um papel mais activo. Com casos excepcionalmente graves em alguns municípios da Jutlândia, a necessidade era grande, mas é certo que pode ter enfrentado oposição, especialmente por parte dos municípios e das famílias afectadas.
— Não pode também ser alguém que sente que a senhora falhou às crianças? — perguntou Thulin.
— Não, não posso acreditar.
— Porque não? Como ministra, é fácil deixar-se distrair por…
— Eu não sou assim. Não que lhe diga respeito, mas também fui criança e também precisei da ajuda de uma família de acolhimento, portanto, sei perfeitamente como é e não falho às crianças.
Os olhos de Rosa Hartung brilharam de fúria quando respondeu a Thulin, e, embora Hess tivesse ficado satisfeito por ela ter perguntado, percebeu subitamente porque Rosa Hartung se tornara tão popular. Ao fim de alguns anos difíceis como ministra, ainda tinha a sinceridade que muitos políticos tentam forçar quando estão em frente às câmaras, mas, no caso de Hartung, isso fazia parte de quem ela era.
— Então e os bonecos de castanhas? Consegue imaginar um motivo para alguém querer confrontá-la com bonecos de castanhas, ou com castanhas em geral?
Para além do facto de ser Outono, a assinatura do assassino era invulgar, e, se Hess estivesse certo e Rosa Hartung fosse de facto a chave, esperava que ela tivesse alguma ideia.
— Infelizmente não. Para além da pequena banca que a Kristina tinha à beira da estrada no Outono. Quando se sentavam à mesa, ela, a Mathilde e… mas eu já vos contei isso.
A ministra tivera de se esforçar para conter as lágrimas, e Vogel tentara interromper a entrevista, mas Thulin insistira que ainda precisava da ajuda dela: uma vez que a ministra incentivara mais retiradas da guarda nos municípios, Thulin e Hess queriam ter acesso a todos os casos que haviam sido tratados enquanto Rosa Hartung fora ministra. O assassino podia ser uma das pessoas envolvidas que queria agora vingar-se da ministra e do sistema que ela representava, e Rosa Hartung mandara Vogel falar com o chefe do departamento para tratar de tudo. Hess e Thulin levantaram-se e agradeceram a Rosa Hartung pela reunião, mas foram subitamente surpreendidos pela pergunta da ministra.
— Antes de nos despedirmos, gostaria de saber se há alguma possibilidade de a minha filha estar viva.
Nenhum dos dois sabia o que responder. Era a pergunta mais previsível, e, ainda assim, não estavam preparados para a ouvir. Mas, então, Hess ouviu-se a responder:
— O caso da sua filha foi encerrado. Um homem confessou e foi condenado.
— Mas impressões digitais… em três sítios?
— Se o assassino não gosta de si e se tiver motivos para isso, pode ser mais cruel do que a senhora e a sua família pensam.
— Mas vocês não sabem. Não têm como saber.
— Como eu disse…
— Eu faço tudo o que me pedirem. Mas têm de a encontrar.
— Não podemos. Como já lhe disse…
Rosa Hartung não dissera mais nada. Limitara-se a olhá-los com uma expressão vazia até se recompor e Vogel vir chamá-la. Hess e Thulin deixaram a sala de reuniões, e Nylander ordenara com a máxima urgência a dez assistentes criminais que ajudassem a filtrar os ficheiros dos casos.
Thulin entra com mais uma caixa, que pousa na mesa de reuniões.
— Havia mais uma. Vou ler num computador portátil aqui ao lado. Vamos a isto!
O optimismo que Hess sentira quando obtivera permissão para falar com a ministra desvanecera-se. Mais uma vez, têm de se sentar a rever pastas com ficheiros. Muitas infâncias terríveis, sentimentos feridos, interferência municipal e abandono com que o assassino provavelmente quererá confrontar a polícia e as autoridades. Hess percebe que não dormiu o suficiente. Os pensamentos correm demasiado depressa, e tem dificuldade em concentrar-se. O assassino estará num dos ficheiros em cima da mesa? Parece lógico, mas o assassino será lógico? O sujeito deverá ter previsto há muito tempo que eles iam reler aqueles casos, portanto, porque haveria de correr esse risco? E porquê fazer bonecos de castanhas? Porquê amputar mãos e pés, porquê as mães em vez dos pais, e onde está Kristine Hartung?
Hess verifica se a pasta de plástico ainda está no seu bolso e dirige-se para a porta.
— Thulin, vamos. Diz ao teu pessoal para ligar se descobrirem alguma coisa.
— Porquê? Onde vamos?
— Vamos voltar ao início.
Hess desaparece porta fora sem saber se Thulin o segue. A caminho, avista Frederik Vogel, que se despede com um aceno de cabeça e depois fecha a porta do gabinete da ministra.