— Mas porque vamos discutir o caso Hartung quando o Nylander diz que não é relevante?
— Não faço ideia. Se tem a ver com machetes e com o desmembramento de porcos, não contem comigo, mas tens de lhe perguntar a ele.
Thulin está debruçada sobre Genz no laboratório e acena, irritada, com a cabeça na direcção de Hess, que fecha a porta para ninguém ouvir o que dizem. Conduziram directamente do Ministério dos Assuntos Sociais e através da cidade até Genz e ao edifício em forma de cubo com as suas muitas divisórias de vidro e batas brancas nos laboratórios. A caminho, Hess pedira a Thulin para se certificar de que Genz lá estava, enquanto o próprio Hess se ocupara a falar ao telemóvel. Genz parecera feliz com o telefonema de Thulin, talvez excepcionalmente feliz por ser um telefonema inesperado, e talvez tenha ficado um pouco desiludido quando ela lhe dissera que a honra se devia ao facto de Hess querer discutir algumas coisas com ele. Thulin esperara que Genz estivesse demasiado ocupado, mas uma reunião cancelada significava que tinha tempo, e Thulin arrepende-se de ter aceitado ir. Estão junto à mesa onde viram pela primeira vez a impressão digital de Kristine Hartung no ecrã, mas parece-lhe que foi há muito tempo. Uma máquina e fato de soldar no meio de um clarão em pano de fundo dizem a Thulin que Genz esteve a aquecer plásticos para testar a sua flexibilidade, contudo, agora o seu olhar amigável mas atento está focado em Hess, que se aproxima da mesa.
— Porque eu acredito que o caso Hartung é relevante. Mas nem eu nem a Thulin estivemos presentes nessa investigação, portanto, preciso da ajuda da única pessoa em quem confio. Mas, se tens medo de te meter em sarilhos, diz agora, e nós vamos embora.
Genz olha para eles. Depois sorri.
— Estou curioso. Desde que não queiras que eu desmembre um porco, está tudo bem. O que queres?
— As provas contra Linus Bekker.
— Eu sabia.
Thulin levanta-se da cadeira onde acaba de se sentar, mas Hess agarra-lhe na mão.
— Ouve-me. Até agora, só fizemos o que o assassino já esperava. Temos de encontrar um atalho. Se for uma perda de tempo revisitarmos este caso antigo, havemos de descobrir, e nessa altura prometo que me calo. Também em relação à Kristine Hartung.
Hess larga a mão dela. Thulin fica parada por um momento e depois volta a sentar-se. Ela percebe que Genz reparou quando Hess lhe agarrou na mão e sente-se envergonhada por não a ter afastado. Hess pega numa pasta grossa.
— No dia 18 de Outubro do ano passado, Kristine Hartung desapareceu durante a tarde, quando regressava a casa de um jogo de andebol. O desaparecimento foi imediatamente comunicado à polícia, e a investigação começou algumas horas mais tarde, quando a bicicleta e o saco dela foram encontrados abandonados num bosque. Nas três semanas que se seguiram, procurou-se em vão a rapariga, que desaparecera sem deixar rasto. Então, receberam uma dica anónima, a dizer que deviam procurar um certo homem, Linus Bekker, de 23 anos, que vivia num rés-do-chão, num complexo residencial em Bispebjerg. Está tudo correcto até aqui?
— Sim. Eu próprio participei nas buscas à casa, e a pista revelou ser boa.
A princípio, Hess não responde a Genz, e em vez disso continua a folhear as páginas do ficheiro.
— Então, detiveram Linus Bekker e interrogaram-no acerca de Kristine Hartung e, como já disseste, fizeram buscas à casa. O homem parecia suspeito. Não tinha emprego, não tinha estudos, não estava em nenhuma rede social. Vivia sozinho, passava os dias à frente do computador e vivia basicamente de jogos de póquer online. Mais importante ainda era o facto de ter estado preso durante três anos pela violação de uma mãe e da sua filha adolescente numa casa em Vanløse, que invadira quando tinha 18 anos. Além disso, Bekker tinha no cadastro alguns pequenos delitos e recebera tratamento para os seus problemas psiquiátricos num hospital psiquiátrico, mas, a princípio, Bekker negou saber o que quer que fosse de um crime cometido contra Kristine Hartung.
— Até disse que agora estava normal. Mas depois abrimos o computador dele, ou melhor, os nossos técnicos informáticos fizeram-no.
— Exacto. Segundo entendi, Linus Bekker revelou-se um excelente hacker. Autodidacta, mas persistente. Paradoxalmente, o seu interesse por informática começara com um curso que fizera na prisão, e descobriu-se que passara pelo menos seis meses a invadir o arquivo digital da polícia que continha fotografias de locais do crime.
Thulin tencionava manter-se calada para poupar tempo, mas neste ponto teve de corrigir Hess.
— Em termos técnicos, ele não invadiu o arquivo. Apanhou um cookie de login de um dos computadores que estavam ligados ao sistema e, como o sistema era velho e pouco seguro, conseguiu entrar reenviando o cookie. É uma desgraça termos demorado tanto tempo a actualizar o sistema.
— Ok. Não obstante, Bekker teve acesso a centenas de fotografias de locais do crime ao longo do tempo, e deve ter sido um choque quando fizeram essa descoberta.
— Não foi apenas um choque. Foi uma bomba atómica — acrescenta Genz. — O homem conseguiu ter acesso a algo a que ninguém deveria aceder para além de nós. Além disso, os dados de utilizador dele revelaram que usara essa capacidade para se deliciar com alguns dos homicídios mais terríveis que encontrou.
— Também foi essa a minha interpretação. Especialmente homicídios de mulheres por motivos sexuais. Mulheres despidas que tinham sido mutiladas estavam, alegadamente, entre os seus preferidos, mas em alguns casos também crimes contra crianças, especialmente raparigas menores de idade. Bekker também admitiu ter impulsos sádicos e disse que se sentia sexualmente estimulado por aquelas imagens. Mas continuou a negar ter tocado em Kristine Hartung, e não era já essa a indicação que tinham?
— Não. A suspeita só surgiu quando analisámos os sapatos dele.
— Fala-me dos sapatos.
— É muito simples. Examinámos tudo no apartamento dele, incluindo os seus velhos ténis brancos, que estavam em cima de um jornal no armário. A análise dos resíduos de terra nas solas revelou uma correspondência exacta com o tipo de solo da parte do bosque onde a bicicleta e o saco de Kristine Hartung tinham sido encontrados. Não havia a menor dúvida. Mas então ele começou a mentir.
— Por mentir referes-te à explicação que deu para o momento em que esteve no bosque?
— Sim. Tanto quanto entendi, ele disse que, à semelhança do motivo para procurar as fotografias do arquivo, se sentia atraído por locais do crime. E, quando ouviu a notícia do desaparecimento de Kristine Hartung, fora a essa parte do bosque. Tens de perguntar ao Tim Jansen ou a um dos outros, mas acho que ele disse que ficou atrás da barreira policial, com os outros curiosos, e que se sentiu sexualmente excitado por estar ali.
— Já voltamos a isso. Mas o facto é que o homem continuava a insistir que não tinha matado a Kristine Hartung. De um modo geral, tinha dificuldade em explicar as suas movimentações e admitiu ter falhas de memória, que podem ser explicadas pelo seu diagnóstico de esquizofrenia paranóide, mas a verdade é que continuou a negar, mesmo quando encontraram a arma com o sangue de Kristine Hartung, o machete, numa prateleira na garagem dele, ao lado do carro.
Hess foca-se numa informação no ficheiro.
— Só quando foi interrogado pelo Jansen e pelo Ricks e foi confrontado com a arma encontrada é que confessou. Correcto?
— Não sei o que aconteceu durante o interrogatório, mas tudo o resto parece-me certo.
— Ok, e agora já podemos ir?
Thulin olha para Hess.
— Não percebo onde podemos chegar com isto? Claramente, o homem não era bom da cabeça, portanto, não faz sentido estarmos a desperdiçar tempo com ele enquanto temos outro assassino à solta.
— Eu não estou a dizer que o Linus Bekker é são. O problema é que acho que ele disse a verdade até ao momento em que confessou o crime.
— Pára.
— O que queres dizer com isso?
É Genz, que se mostra curioso, e Hess aponta para o ficheiro.
— Duas vezes no ano antes do desaparecimento da Kristine Hartung, Linus Bekker foi detido por pequenos delitos. A primeira vez foi no jardim de uma residência de estudantes em Odense, onde uma rapariga tinha sido violada e morta pelo namorado alguns anos antes. A segunda foi em Amager Fælled, onde, dez anos antes, uma mulher fora morta por um taxista e deixada no bosque. Em ambos os casos, Bekker foi visto a masturbar-se nos locais e detido, recebendo uma pena menor.
— E isso explica tudo?
— Não. Mas diz-nos que existe a possibilidade real de Linus Bekker ter ido à procura do local assim que ouviu falar dele nas notícias. Pode ser incompreensível para outros, mas, para um homem com as tendências dele, faz sentido.
— Pois, mas a questão é que ele não disse isso quando foi detido. Teria sido uma coisa inocente. Só quando analisaram o solo agarrado à sola dos ténis brancos é que ele deu essa explicação.
— Talvez isso também não seja assim tão estranho. Talvez, a princípio, ele tenha esperado que não encontrassem nenhum vestígio de solo. Afinal de contas, tinham passado três semanas, e, sem conhecer pessoalmente Linus Bekker, imagino que não queria voltar a discutir a sua compulsão de visitar locais do crime. Mas, quando foi confrontado com a análise do solo, viu-se obrigado a contar a verdade.
Thulin levanta-se.
— Estamos a andar em círculos. Não percebo porque haveríamos de assumir como verdade a explicação de um psicopata condenado, portanto, vou voltar para o ministério.
— Temos de o fazer, porque o Linus Bekker esteve realmente naquele bosque. No momento exacto em que disse que esteve.
Hess faz sair uma bolsa de plástico do bolso e tira de dentro dela um molho de folhas enroladas. Antes de as estender a Thulin, ela percebe que é a mesma pasta que vira na mão de Hess em Odinpark naquela manhã, quando ele chegou da corrida.
— A Biblioteca Real tem artigos e fotografias no arquivo digital, e, entre as fotografias tiradas no local do desaparecimento no bosque naquela noite, encontrei esta. A primeira folha mostra a fotografia no topo de um artigo de jornal do dia em que Kristine Hartung desapareceu. As outras são ampliações.
Thulin olha para o pequeno conjunto de imagens. A primeira é uma fotografia que já tinha visto. É quase icónica, porque é uma impressão em tamanho real de uma das primeiras fotografias que se lembra de ver na imprensa sobre o caso Kristine Hartung. A imagem mostra uma parte do bosque iluminada por projectores, e equipas de polícias e cães que parecem estar a coordenar a busca. A imagem é sombria e evidencia a seriedade da situação. Ao longe, em pano de fundo, fotógrafos e curiosos estão reunidos atrás da barreira policial, e Thulin prepara-se para protestar que aquilo é uma perda de tempo. A imagem é pouco nítida e pixelizada. Mostra uma ampliação de alguns rostos, e Thulin percebe imediatamente que devem ser dos curiosos atrás da barreira policial. Na parte mais afastada e quase ocultado pelos ombros dos outros, na terceira ou quarta fila, vê o rosto de Linus Bekker. Por causa da ampliação, os olhos são buracos negros, mas a forma do rosto e o cabelo louro e escasso não deixam lugar para dúvidas.
— A questão, obviamente, é como é que ele pode estar ali quando mais tarde explicou que estava a conduzir em direcção a norte com a cabeça da Kristine Hartung, à procura de um lugar para a enterrar.
— Não acredito…
Genz tira a página da mão de Thulin, que ainda não sabe o que dizer.
— Porque não disseste nada antes? Porque não disseste ao Nylander?
— Tinha de confirmar com o fotógrafo a hora a que a fotografia foi tirada. Para obter a confirmação de que foi realmente tirada naquela noite, e recebi essa confirmação no carro quando estávamos a vir para aqui. E, quanto ao Nylander, achei que seria melhor nós os dois discutirmos isto primeiro.
— Mas isto continua a não ilibar o Bekker. Ele pode ter matado a Kristine Hartung, metido o corpo no carro e regressado ao bosque para observar a actividade da polícia antes de conduzir para norte.
— Sim. Esse tipo de comportamentos já foi observado noutros casos. Mas, como eu disse, também é estranho o machete não ter vestígios de osso se foi realmente usado para a desmembrar. E o caso começa a parecer mais suspeito…
— Mas porque é que o Linus Bekker haveria de confessar um crime que não cometeu? Não faz sentido.
— Pode ter tido vários motivos. Mas acho que devemos perguntar-lhe. Acho que o perpetrador do caso da Kristine Hartung é idêntico àquele que procuramos. E, com um pouco de sorte, Linus Bekker pode ajudar-nos.