A sala de visitas tem cerca de cinco metros por três. A janela espessa de vidro armado não precisa realmente das grades que a protegem, mas oferece uma vista desimpedida para o pátio e para o muro de seis metros de altura, ao fundo. Há quatro cadeiras de plástico ordenadamente colocadas em volta de uma pequena mesa quadrada, e a simetria deve-se ao facto de estarem presas ao chão. Linus Bekker já está sentado numa das cadeiras quando Hess e Thulin entram.
É surpreendentemente baixo. Deve ter cerca de 1,65 metros de altura. Um homem jovem quase careca. Tem um rosto infantil, mas uma constituição robusta. Parece um pouco um ginasta, talvez por causa das calças de fato de treino cinzentas e da T-shirt branca.
— Posso sentar-me do lado da janela? Gosto de ficar ao pé da janela.
Linus Bekker levantou-se e parece agora um rapazinho nervoso enquanto olha para eles.
— Tudo bem. Faça como preferir.
Hess apresenta-se a si e a Thulin, e Thulin nota que ele se esforça por parecer simpático e de confiança, terminando mesmo com um agradecimento pelo tempo que Bekker lhes está a dispensar.
— Tempo não me falta.
Linus Bekker diz aquelas palavras sem ironia e sem sorrir. É uma simples declaração, enquanto os seus olhos os fitam com incerteza. Quando Thulin se senta na cadeira em frente ao jovem, Hess começa a explicar que estão ali porque precisam da ajuda dele.
— Mas eu não sei onde o corpo está. Lamento, mas não me lembro mesmo de nada para além do que já vos disse.
— Não se preocupe. Não é disso que queremos falar.
— Trabalharam no caso? Não me lembro de vocês.
Linus Bekker parece um pouco assustado. Fita-os com olhos confusos e semicerrados. Endireita-se na cadeira enquanto puxa as cutículas das unhas, que têm um ar vermelho e inflamado.
— Não, não trabalhámos no caso.
Hess conta-lhe a mentira que tinham combinado. Mostra-lhe o distintivo da Europol e diz que trabalha em Haia a estudar perfis de criminosos. Ao estudar a personalidade e o comportamento de perpetradores como Linus Bekker, elabora perfis que podem ajudar a resolver crimes semelhantes. Agora, Hess está na Dinamarca para ajudar os colegas dinamarqueses, incluindo Thulin, a criar um departamento congénere. Fazem visitas a alguns reclusos para conhecerem os seus padrões de reacção antes dos crimes e gostariam de contar com a participação de Linus Bekker.
— Mas ninguém me disse que vocês vinham.
— Não, infelizmente houve um erro. Deveria ter sido notificado muito antes, para poder ter-se preparado, mas infelizmente houve um mal-entendido. Agora cabe-lhe a si decidir se quer ajudar-nos. Se não quiser, nós vamos embora.
Linus Bekker olha pela janela e volta a puxar as cutículas, e por um momento Thulin tem a certeza de que ele vai recusar.
— Aceito. Se pode ajudar outras pessoas, é importante, não é?
— Sim, é. Obrigado, é muito simpático da sua parte.
Nos minutos que se seguem, Hess aproveita para confirmar vários factos acerca de Linus Bekker. Idade. Local de residência. Relações familiares. Educação. Se é destro. Detenções anteriores. São todas perguntas inofensivas e sem importância, uma vez que já conhecem as respostas, mas servem para fazer Linus Bekker sentir-se seguro e para cultivarem a sua confiança. Thulin tem de admitir que Hess está a sair-se muito bem, e o seu cepticismo em relação à desculpa que inventaram desvanece-se. Mas demora tempo, e ela sente que estão no centro de um furacão, a falar de coisas sem importância, enquanto a tempestade destrói tudo do lado de fora. Por fim, Hess chega ao dia do homicídio.
— Disse que tem uma memória difusa desse dia. Que só se lembra de flashes.
— Sim, tive algumas brancas. A doença dá-me tonturas, e não dormia há vários dias. Tinha passado demasiado tempo a ver as fotografias do arquivo.
— Fale-nos de como começou com o arquivo.
— Foi como um sonho juvenil. Se me permitem dizê-lo. Eu tinha o desejo de…
Bekker cala-se, e Thulin adivinha que parte do tratamento psicológico significa que já não tem de ceder ao seu sadismo e atracção pela morte.
— … e, pelas reportagens sobre os crimes, eu sabia que tinham sido tiradas fotografias nos locais do crime, mas não sabia onde estavam guardadas. Até ter entrado no servidor do Departamento Forense. Depois disso, foi muito fácil.
Thulin concorda. A falta de segurança só podia ser defendida pelo facto de ser impensável alguém querer entrar num arquivo digital com imagens de crimes. Até Linus Bekker ter derrubado a barreira e feito exactamente isso.
— Falou a alguém das informações a que teve acesso?
— Não. Sabia que não podia. Mas… como eu disse…
— Que efeito tinham as fotografias sobre si?
— Eu achava que as fotografias… que eram boas para mim. Porque ficava… calmo. Mas agora sei que não eram. Excitavam-me. Só conseguia pensar numa coisa. E lembro-me de sentir que precisava de apanhar ar. E fui dar uma volta de carro. Mas depois disso a minha memória começa a falhar.
Linus Bekker olha para Thulin como se pedisse desculpa, e, embora tenha uma expressão infantil e confusa, ela sente um arrepio.
— Estava alguém consigo quando teve essas brancas? Ou falou delas a alguém?
— Não. Não vi ninguém durante esse período. Passava a maior parte do tempo em casa. Se ia a algum lugar, era para ver os sítios.
— Que sítios?
— Os locais do crime. Recentes e antigos. Por exemplo, em Odense e em Amager Fælled, onde fui preso. Mas também outros.
— Também teve brancas nessas ocasiões?
— Talvez. Não me lembro. É assim que funciona.
— De que mais se lembra do dia do homicídio?
— Pouca coisa. É difícil dizer, porque misturo os factos com o que me disseram depois.
— Consegue lembrar-se, por exemplo, de seguir Kristine Hartung para o meio do bosque?
— Não. Não propriamente. Mas lembro-me do bosque.
— Mas, se não se lembra, como sabe que foi você quem a atacou e matou?
Linus Bekker parece surpreendido por um momento, e a pergunta parece inesperada para um homem que há muito tempo aceitou a sua culpa.
— Eles disseram que sim. E ajudaram-me a lembrar-me das outras coisas.
— Quem?
— Os polícias que me interrogaram. Eles também tinham descoberto coisas. Terra nas solas dos sapatos. Sangue no machete que eu usei para…
— Mas nessa altura afirmou categoricamente que não o tinha feito. Conseguia lembrar-se do machete?
— A princípio não. Mas depois as coisas começaram a apontar nessa direcção.
— Inicialmente, quando o machete foi encontrado, disse que nunca o tinha visto. Que alguém devia tê-lo posto na prateleira ao lado do seu carro. Só num interrogatório posterior confessou e disse que era seu.
— Sim, é verdade. Mas os médicos explicaram que é como a minha doença funciona. Uma pessoa com esquizofrenia paranóide confunde a realidade.
— Então não tem ideia de quem pode tê-lo posto lá, se fosse esse o caso?
— Não foi posto lá… fui eu que cometi o crime. Não tenho muito jeito para estas perguntas…
Linus Bekker olha para a porta, inseguro. Parece querer sair dali, mas Hess debruça-se para a frente e tenta olhá-lo nos olhos.
— Linus, está a sair-se muito bem. Preciso de saber se havia alguém que fosse próximo de si durante esse período. Alguém que soubesse aquilo por que estava a passar. Uma pessoa em quem tenha confiado, que conheceu ou com quem falava na Internet, ou…
— Mas não havia ninguém. Não entendo o que querem. Acho que quero voltar para o meu quarto.
— Linus, não fique nervoso. Se quiser ajudar-me mais um pouco, acho que podemos descobrir o que aconteceu naquele dia. E o que aconteceu à Kristine Hartung.
Linus Bekker, que fizera menção de se levantar, fita Hess com incerteza.
— Acha que sim?
— Acho. Tenho a certeza. Só preciso que me diga com quem tinha contacto.
Hess lança um olhar confiante a Linus Bekker e fita-o. Por um momento, o rosto de criança ansiosa de Linus Bekker começa a deixar-se convencer por Hess. Mas depois desata a rir.
Linus Bekker ri às gargalhadas. Thulin e Hess vêem incredulidade no homem que, em vão, tenta conter o riso. Quando volta a falar, é como se tivesse posto uma máscara, e todos os vestígios de insegurança e nervosismo desaparecem.
— Porque não me perguntam o que realmente querem saber? Saltem esta farsa e vão directos ao assunto.
— O que quer dizer com isso?
— O que quer dizer com isso?
Linus Bekker imita a voz de Hess enquanto semicerra os olhos e sorri.
— Vocês estão mortinhos para saber porque confessei um crime que não cometi.
Thulin olha para Linus Bekker. A transformação é chocante. O homem é louco. Está completamente louco, e, por um instante, Thulin quer chamar o chefe de psiquiatria para ver com os seus próprios olhos o progresso de Linus Bekker, que tão ostensivamente elogiou. Hess tenta manter a compostura.
— Ok. Porque confessou?
— Pare com isso. Você é pago para descobrir. É mesmo verdade que foi enviado pela Europol para me arrancar informações ou o distintivo que me mostrou era falso?
— Linus, não sei do que está a falar. Mas, se não teve nada a ver com a Kristine Hartung, não é tarde demais para dizer a verdade. Se o fizer, provavelmente podemos ajudá-lo a pedir uma reavaliação do seu caso.
— Mas eu não preciso de ajuda. Se ainda vivemos num Estado de direito, vou estar em casa antes do Natal. Ou assim que o homem das castanhas terminar a sua colheita.
As palavras atingem Thulin como um martelo. Também afectam Hess, que se mantém direito como um pilar de pedra. Bekker sabe. Sorri e, enquanto Thulin tenta fingir que não se passa nada, é como se a escuridão se tivesse abatido sobre aquele espaço.
— O homem das castanhas…?
— Sim, o homem das castanhas. O motivo por que aqui estão. O querido Hansen, o armário humano, esquece-se de que ainda há teletexto no televisor da sala comum. Apenas 38 caracteres por frase, mas dá para perceber o suficiente. Porque vieram só agora? Foi porque o vosso chefe não queria arruinar a resolução perfeita do caso?
— O que sabe do homem das castanhas?
— Homem das castanhas, entra. Homem das castanhas…
Linus Bekker continua a trautear a melodia. Hess perde a paciência.
— Eu perguntei-lhe o que sabe?
— É tarde demais. Ele já chegou longe demais. É por isso que vocês estão aqui sentados a implorar. Porque ele vos derrotou. Porque não sabem o que fazer.
— Sabe quem ele é?
— Sei o que ele é. É o mestre. E fez-me parte do seu plano. Caso contrário, eu não teria confessado.
— Diga-nos quem ele é, Linus.
— Diga-nos quem ele é, Linus.
Linus Bekker volta a imitar a voz de Hess.
— Então e a rapariga?
— O que tem a rapariga?
— O que é que você sabe? Onde está ela? O que lhe aconteceu!?
— Que diferença faz? Deve ter-se divertido…
Linus Bekker olha-os com uma expressão inocente enquanto o seu sorriso aumenta. Thulin não consegue reagir quando Hess se levanta e se lança sobre o homem. Mas Bekker está preparado e, nesse preciso momento, puxa o cordão. O alarme soa com um uivo ensurdecedor. Quase no segundo seguinte, quando a pesada porta de metal se abre com estrondo e os homens corpulentos entram, Linus Bekker transforma-se no rapazinho indefeso com uma expressão ansiosa.