89

É quase noite e há muito trânsito na auto-estrada E20, a sudoeste de Copenhaga. Asger carrega a fundo na buzina para fazer os outros saírem da faixa de ultrapassagem, mas a fila de idiotas à sua frente insiste em conduzir com cuidado por causa da chuva, e ele volta para a fila do meio, impaciente. O carro da ministra é um Audi A8 3.0, e é a primeira vez que acelera a sério. Não tem medo de chamar a atenção, porque agora só importa escapar. Correu tudo mal, e Asger sabe que é apenas uma questão de tempo até a polícia perceber que é a ele e a Benedikte que têm de procurar — se é que não sabem já.

Tudo estava a correr como previsto até há 35 minutos. Protegera o seu álibi acompanhando o puto até ao campo de ténis e cumprimentando o treinador, que dava sempre uma volta ao campo e verificava as redes antes do treino. Depois pedira licença e dirigira-se para a parte de trás do campo, onde estacionara entre os pinheiros e voltara a entrar pela porta lateral, que deixara aberta quando acompanhara o rapaz. O complexo estava quase sempre vazio àquela hora, portanto, fora fácil entrar no balneário. O rapaz estava a mudar de roupa e não ouvira nada, mas, quando Asger estava a postos, com a cara tapada e de luvas, a preparar o clorofórmio, ouvira passos atrás de si. O treinador tinha entrado, e, embora Asger tivesse conseguido tirar a máscara, surgira uma situação constrangedora quando Gustav descobrira Asger no balneário. O treinador, por outro lado, fora mais fácil.

— Ah, está aqui. Tenho os serviços de informação ao telefone. Pediram-me para chamar o Gustav porque não conseguiam falar consigo, mas agora você pode falar com eles.

O treinador passa o telemóvel a Asger. Um dos guarda-costas arrogantes de Hartung ordenou-lhe que levasse Gustav até à mãe, no ministério, porque tinha surgido uma emergência: a polícia encontrara a casa do suspeito num antigo matadouro em Sydhavn. Asger sentira um nó na garganta. Mas então percebera que a polícia ainda não sabia que era ele que procurava. Recebera uma reprimenda por não ter atendido o telemóvel e depois deixara a escola de ténis com o puto. O treinador seguiu-os com o olhar, portanto, teve de levar Gustav para o carro, embora fosse irrelevante, porque Asger não tinha a menor intenção de ir para o ministério.

— Porque estamos a ir por este caminho? Não é o caminho para…

— Cala a merda da boca e dá-me o teu telemóvel.

O rapaz no banco traseiro fica demasiado surpreendido para reagir.

— Dá-me o telemóvel! És surdo?!

Gustav obedece e, quando Asger estende a mão para o telemóvel e o agarra, atira-o pela janela e ouve-o a rolar e a raspar no asfalto atrás de si. Asger percebe que a situação assusta o rapaz, mas não quer saber. A única coisa que lhe interessa neste momento é descobrir para onde ele e Benedikte vão levá-lo, porque nunca fizeram um plano de fuga específico. Asger imaginara que estariam para lá das montanhas antes que a polícia suspeitasse de alguma coisa, mas não fora assim. A sua cabeça é um emaranhado de pensamentos, mas sabe que Benedikte vai perdoá-lo, porque não teve culpa por o plano ter ido por água abaixo. Ela vai compreender, e, enquanto estiverem juntos, tudo vai correr bem.

Fora o que Asger sentira desde a primeira vez que olhara para os olhos escuros da mulher. Tinham-se conhecido na velha escola de Tingbjerg, onde ele estava dois anos à frente dela, e ficara apaixonado desde esse momento. Tinham faltado às aulas, bebido, fumado e mandado o mundo inteiro à merda, deitados na relva ao lado do carro, na berma da estrada, e Benedikte fora a primeira rapariga com quem ele dormira. Mas depois fora expulso da escola por causa de todas as lutas, e, quando fora mandado para um instituto no Sul da Jutlândia, a relação morrera. Uns bons dez anos mais tarde, contudo, voltara a encontrá-la em Christiania, quando ela fora à cidade com uma das colegas do hospital, e, no dia a seguir, já estavam a falar de irem viver juntos.

Asger adorava quando ela se apoiava nele e se sentia protegida por ele, mas sabia que Benedikte era muito mais forte. O tempo passado no exército fora bom, mas, depois de dois destacamentos no Afeganistão como condutor de carros-patrulha e tanques, demitira-se porque sofria de ataques de ansiedade e acordava frequentemente a meio da noite, encharcado em suor e a sentir-se vulnerável. Mas Benedikte pegava-lhe na mão, apertava-a com força, e ele acalmava-se. Pelo menos até voltar a acontecer. Quando ela regressava a casa depois dos turnos, falava-lhe sempre das crianças com quem trabalhara, e um dia dissera-lhe que também gostava de ter uma família. Asger viu no rosto dela quanto aquilo era importante. Rapidamente, encontraram um lugar barato e espaçoso no velho matadouro onde mais ninguém conseguia viver e, quando Benedikte engravidara, certificaram-se de que Asger tinha como morada oficial a casa de um velho amigo do exército, para Benedikte poder receber os subsídios do município.

Asger não percebera o que acontecera à mulher depois do parto e começara a pensar que a culpa era da criança. A perda da guarda fora, obviamente, um choque, mas, por outro lado, não tinham conseguido ligar-se ao rapaz. Depois do nascimento, ele começara a trabalhar na construção civil para trazer dinheiro para casa, e, aos seus olhos, Benedikte era uma boa mãe, pelo menos muito melhor do que a que ele tivera, e que ainda ia ficar em casa deles às vezes, e que lhe extorquia dinheiro para a bebida. Benedikte contactara advogados, jornais e televisões e atacara a ministra Rosa Hartung, mas depois o assunto caíra no esquecimento, e ela contara-lhe, em lágrimas, que os jornalistas já não queriam ajudá-la mais. Pouco depois, o rapaz morrera na casa da família de acolhimento, na sequência de uma doença respiratória, e tudo mudara. Benedikte tivera de ser internada por causa de um conflito com os cabrões dos assistentes sociais, e, todos os dias, depois do trabalho na obra, Asger conduzia até Roskilde para a visitar no hospital psiquiátrico. A princípio, ela estava tão medicada que nem conseguia fazer gestos, e ele ouvira explicações longas e incompreensíveis de uma médica que tinha vontade de atirar contra a parede. Embora Asger lesse muito mal, sentava-se a ler para Benedikte de jornais e revistas e sentia-se só e impotente quando regressava a casa e se fechava no matadouro, à noite. Frequentemente, adormecia em frente à televisão, mas, quando a filha da ministra desaparecera, no Outono passado, as coisas começaram a melhorar.

Benedikte sentira-se muito consolada ao saber que a ministra também tinha perdido a filha, e, certa tarde, quando a visitara depois do trabalho, ele até a encontrara com um jornal a postos na cadeira, para ele lhe ler. Foi no dia em que as buscas foram dadas por terminadas e o caso foi encerrado. Gradualmente, os artigos começaram a escassear, mas Benedikte começou a sorrir novamente, e, quando a neve chegou e o lago atrás do hospital congelou, começaram a dar longos passeios. No início da Primavera, quando Asger pensava que já tinham posto tudo aquilo para trás das costas, os jornais começaram a escrever que Hartung ia regressar ao trabalho depois das férias de Verão. Ela dizia que estava ansiosa para voltar. Benedikte pegara na mão de Asger e apertara-a durante muito tempo, e Asger soubera que faria tudo o que ela lhe pedisse enquanto lhe segurasse assim na mão.

Começaram a fazer planos assim que Benedikte teve alta. A princípio, pensaram em ameaçar Rosa Hartung com e-mails e SMS anónimos, invadir a casa dela e partir tudo, talvez até atropelá-la e deixá-la caída na estrada. Mas, quando Benedikte acedeu ao sítio para encontrar o endereço de e-mail, apareceu uma mensagem a dizer que o ministério estava à procura de um motorista novo, e assim o plano de se vingarem de Rosa Hartung tornou-se mais concreto.

Benedikte escrevera a candidatura de Asger e demorara bastante tempo, porque tinha regressado ao seu trabalho na secção pediátrica do hospital, depois da longa baixa e do internamento. Pouco depois, ele fora chamado a uma entrevista com o chefe do ministério, e ao mesmo tempo percebeu-se que não sabiam da sua relação com Benedikte e do seu confronto com a ministra através da imprensa, provavelmente porque ele tinha uma morada oficial diferente. Na entrevista, valorizaram o facto de Asger ter boas referências do exército, ser flexível e não ter responsabilidades familiares, e depois disso ele teve uma conversa descontraída com um agente dos serviços secretos que estava encarregado de fazer a verificação de segurança de todos os candidatos. Quando mais tarde foi informado de que conseguira o emprego, Benedikte celebrara compondo a mensagem de ódio com fotografias do Facebook da rapariga Hartung, que daria as boas-vindas à ministra no seu primeiro dia de trabalho.

Nesse dia, Asger também começara o seu novo trabalho e conhecera Rosa Hartung. Fora apanhá-la em frente à sua villa grande e luxuosa em Østerbro e recebera indicações de caminho do seu conselheiro, Vogel, que pertencia ao tipo de cabrões arrogantes que Asger tinha vontade de esmurrar. Pouco depois de vandalizarem o carro da ministra com o sangue de duas ratazanas do velho matadouro, teceram vários planos maléficos, mas foram subitamente superados pelos assassinatos e pelos bonecos de castanhas com as misteriosas impressões digitais, que atraíram a atenção de Rosa Hartung. Essa parte fora agradável, também para Benedikte, mas então a bomba caíra: a filha de Rosa Hartung, que o mundo inteiro julgava morta, podia não ter morrido.

A especulação motivara-os a continuarem com os seus planos de vingança, mas agora Rosa Hartung estava sob a protecção dos serviços de informação. Era impossível de apanhar, até mesmo para Asger, por isso, Benedikte perguntara-lhe pelo miúdo. Ele transferira o foco da sua atenção e concordara que seria melhor raptarem o rapaz. Asger chegara mesmo a pensar que a polícia ia concluir que o assassino também raptara Gustav e, quando faz pisca para sair da auto-estrada, não pode deixar de pensar em quão irónico é ele e Benedikte serem agora fugitivos e suspeitos de homicídios dos quais não sabem nada.

A chuva bate com força no pára-brisas, e a luz do dia já desapareceu quando pára o carro na berma. Na outra ponta, avista a carrinha que alugaram na Hertz naquela manhã, mas ele detém-se deliberadamente a 20 metros dela e desliga o motor. Asger tira as suas coisas do porta-luvas e vira-se para o rapaz.

— Fica aqui sentado até alguém vir à tua procura. Fica sentado. Entendes!?

O rapaz assente, assustado. Asger sai do carro e bate com a porta, e depois corre para Benedikte, que saiu da carrinha e está à espera dele à chuva, apesar de usar apenas um colete acolchoado e a sua camisola vermelha com capuz.

Não parece satisfeita. Percebe pelo rosto dele que as coisas não correram como o previsto, e Asger, ofegante, explica-lhe o que aconteceu.

— Só nos restam duas opções, querida. Ou desaparecemos ou vamos directos à esquadra esclarecer esta merda toda antes que as coisas piorem. O que achas?

Mas Benedikte não responde. Nem sequer quando ele abre a porta do carro, impaciente, e estende a mão à espera das chaves. Ela fica à chuva e fita um ponto atrás dele com a expressão séria e silenciosa que há muito tempo substituiu o seu riso e o seu sorriso. Asger olha por cima do ombro e percebe que ela está a olhar para o rosto assustado do rapaz, que está encostado à janela do carro da ministra. Subitamente, Asger percebe que ela não vai mudar de ideias. Muito pelo contrário.