15 DE SETEMBRO

Roda do destino

Quando vi a escada podre de madeira, iluminada por uma fraca luz amarela vinda de baixo, soube que não levava a um túnel Conjurador. Eu já tinha andado por muitas escadas que levavam do mundo Mortal até aqueles túneis e raramente as via quando descia. Elas costumavam ficar escondidas por Feitiços protetores, para que parecesse que você poderia cair e morrer, se ousasse dar um passo adiante.

Esse era um tipo diferente de passo e parecia mais perigoso. A escadaria era torta, o corrimão não passava de algumas tábuas pregadas de qualquer jeito. Eu poderia estar olhando para o porão coberto de poeira das Irmãs, que sempre ficava no escuro porque elas nunca me deixavam trocar a lâmpada exposta acima da porta. Mas isso não era um porão e não tinha cheiro de poeira. Tinha alguma coisa queimando lá embaixo e exalava um odor denso e enjoativo.

— Que cheiro é esse?

Link inspirou e tossiu.

— Alcaçuz e gasolina. — É, era uma combinação que se encontrava todos os dias.

Estiquei a mão em direção ao corrimão.

— Você acha que essa escada aguenta?

Ele deu de ombros.

— Aguentou Amma.

— Ela pesa 45 quilos.

— Só tem um jeito de descobrir.

Fui primeiro, e cada tábua gemeu sob meu peso. Minha mão apertou o corrimão, e pequenas farpas entraram na minha pele. Havia uma sala enorme na lateral da escada, e era a fonte tanto da luz quanto da fumaça nauseante.

— Onde é que estamos? — sussurrou Link.

— Não sei.

Mas eu sabia que era um lugar sombrio, um lugar para onde Amma jamais iria em uma ocasião normal. Era mais do que gasolina e alcaçuz. Havia morte no ar, e quando entramos na sala entendi por quê.

Era uma espécie de loja, as paredes tomadas de prateleiras com livros de capas de couro rachado e vidros com coisas vivas e mortas dentro. Um vidro exibia asas de morcego, intactas, mas que não estavam mais unidas aos respectivos corpos. Outro recipiente estava cheio de dentes de animais; outros, de garras e peles de cobra. Garrafas pequenas e sem rótulo continham líquidos turvos e pós escuros. Mas as criaturas vivas aprisionadas ali eram ainda mais perturbadoras. Sapos enormes se jogavam contra o vidro dos potes, desesperados para sair. Cobras deslizavam umas sobre as outras, empilhadas em viveiros cobertos de camadas grossas de terra. Morcegos estavam pendurados no alto de gaiolas enferrujadas.

Havia alguma coisa mais do que errada no lugar, desde a mesa arranhada de metal no centro do aposento até o estranho altar no canto, cercado de velas, esculturas e um palito de incenso preto com fedor de alcaçuz e gasolina.

Link me deu uma cotovelada e apontou para um sapo morto flutuando em um vidro.

— Este lugar é pior do que as aulas de verão no laboratório de biologia.

— Tem certeza de que Amma está aqui? — Eu não conseguia imaginá-la nessa versão deturpada do porão das minhas tias-avós.

Link indicou o fundo do aposento, onde uma luz amarela brilhava.

— Balinhas de canela Red Hot.

Andamos entre as fileiras de prateleiras, e em segundos pude ouvir a voz de Amma. No final do corredor, duas estantes baixas flanqueavam uma passagem estreita até o fundo da loja ou fosse lá o que este lugar fosse. Ficamos de quatro e nos escondemos atrás das estantes. Pés de galinha flutuavam em uma garrafa ao lado do meu ombro.

— Preciso ver o langiappe. — Era uma voz de homem, grave e com sotaque pesado. — Você ficaria surpresa com quantas pessoas conseguem chegar aqui e não são o que dizem ser.

Deitei de barriga no chão e me arrastei para a frente para conseguir ver além da estante. Link estava certo. Amma estava parada em frente a uma mesa de madeira escura, segurando a bolsinha com as duas mãos. As pernas da mesa formavam o pé de um pássaro, com as garras a centímetros dos pequenos sapatos ortopédicos de Amma. Ela estava de perfil; a pele escura brilhando contra a luz amarela, o coque preso com cuidado debaixo do chapéu florido de ir à igreja, o queixo erguido e as costas eretas. Se estava com medo, eu não conseguia perceber. O orgulho de Amma era uma parte tão grande de quem ela era quanto seus enigmas, biscoitos e palavras cruzadas.

— Imagino que sim. — Ela abriu a bolsa e pegou o embrulho vermelho que a mulher creole deu a ela.

Link também estava deitado de barriga para baixo.

— É a coisa que a moça dos donuts deu a ela? — sussurrou ele. Fiz que sim com a cabeça e gesticulei para que ficasse quieto.

O homem atrás da mesa se inclinou em direção à luz. A pele era como ébano, mais escura e mais lisa do que a de Amma. O cabelo estava retorcido em tranças rudimentares e descuidadas, presas na nuca. Cordões e pequenos objetos que eu não conseguia ver claramente estavam presos nas tranças. Ele contornou o cavanhaque com os dedos enquanto observava Amma com atenção.

— Me dê. — Esticou a mão e o punho da túnica escura deslizou pelo braço dele. Ao redor do pulso havia fios finos de corda e couro, repletos de talismãs. A mão tinha cicatrizes, com a pele marcada e brilhante, como se tivesse sido queimada mais de uma vez.

Amma entregou o embrulho sem encostar na mão dele.

Ele reparou na precaução dela e sorriu.

— Vocês, mulheres das ilhas, são todas iguais, praticando a arte para afastar minha magia. Mas suas ervas e pós não são páreo para a mão de um bokor.

A arte. Vodu. Eu já tinha ouvido o vodu sendo chamado assim. E, se mulheres como Amma ofereciam proteção contra a magia dele, isso só podia significar uma coisa. Ele praticava magia negra.

Abriu o embrulho e ergueu uma única pena. Examinou-a com atenção, virando-a nas mãos.

— Vejo que você não é uma invasora. Então o que quer?

Amma jogou um lenço sobre a mesa.

— Não sou invasora, nem uma das mulheres da ilha que você está acostumado a receber.

O bokor ergueu o tecido delicado e examinou o bordado. Eu sabia qual era o desenho, embora não conseguisse ver de onde estava: um pardal.

Ele olhou para o lenço e depois para Amma.

— A marca de Sulla, a Profeta. Então você é uma Vidente, uma das descendentes dela? — Abriu um amplo sorriso, com dentes brancos brilhando na penumbra. — Isso torna essa visitinha ainda mais inesperada. O que traria uma Vidente à minha oficina?

Amma o observou com atenção, como se ele fosse uma das cobras que deslizava nos viveiros da loja.

— Foi um erro. Não trabalho com gente como você. Vou embora. — Ela enfiou a bolsa debaixo do braço e se virou para sair.

— Vai embora tão rápido? Não quer saber como mudar as cartas? — A risada ameaçadora dele ecoou pelo aposento.

Amma parou na mesma hora.

— Quero, sim. — A voz dela estava baixa.

— Mas você mesma sabe a resposta, Vidente. Por isso está aqui.

Ela se virou e olhou para ele.

— Acha que é uma visita social?

— Não pode mudar as cartas depois que são distribuídas. Não as cartas sobre as quais estamos falando. O destino é uma roda que gira sem ajuda das nossas mãos.

Amma bateu a mão com força na mesa.

— Não tente me vender o belo contorno de uma nuvem tão negra quanto sua alma. Sei que pode ser feito.

O bokor bateu em uma garrafa de cascas de ovo moídas perto da beirada da mesa. Mais uma vez, os dentes brancos brilharam na penumbra.

— Qualquer coisa pode ser feita por um preço, Vidente. A pergunta é quanto está disposta a pagar?

— Quanto for preciso.

Estremeci. Havia alguma coisa no jeito que Amma disse aquilo, e mesmo no tom incerto da sua voz, que fez parecer que um limite invisível entre os dois estava desaparecendo. Eu me perguntei se esse limite era mais profundo do que o que ela cruzou na noite da Décima Sexta Lua, quando ela e Lena usaram O Livro das Luas para me trazer de volta à vida. Balancei a cabeça. Já tínhamos cruzados limites demais.

O bokor observou Amma com atenção.

— Então me mostre as cartas. Preciso saber com que estamos lidando.

Amma pegou um baralho do que pareciam ser cartas de tarô de dentro da bolsa, mas as imagens nas cartas não estavam certas. Não eram cartas de tarô, eram outra coisa. Ela as arrumou sobre a mesa com cuidado, recriando um jogo. O bokor observava, mexendo a pena entre os dedos.

Amma colocou a última carta.

— Aqui está.

Ele hesitou, murmurando em uma língua que não entendi. Mas dava para perceber que não estava satisfeito. O bokor tirou tudo de cima da mesa bamba de madeira, com garrafas e vidros se quebrando no chão. Ele se inclinou para perto de Amma como nunca vira ninguém ousar chegar.

— A Rainha Irada. A Balança Desequilibrada. O Filho das Trevas. A Tempestade. O Sacrifício. Os Gêmeos Separados. A Lâmina Sangrenta. A Alma Dividida.

Ele cuspiu e sacudiu a pena para ela, como se fosse sua própria versão da Ameaça de Um Olho.

— Uma Vidente da linhagem de Sulla, a Profeta, é inteligente o bastante para saber que esse não é um jogo qualquer.

— Está dizendo que não é capaz de fazer? — Era um desafio. — Que vim até aqui por cascas de ovos moídas e sapos de pântano mortos? Consigo isso com qualquer cartomante.

— Estou dizendo que você não pode pagar o preço, velha! — Ele ergueu a voz, e eu enrijeci. Amma era a única mãe que eu tinha. Não suportava ouvir alguém falar com ela daquele jeito.

Amma olhou para o teto, murmurando. Apostei que estava falando com os Grandes.

— Nem um osso no meu corpo queria vir a este ninho do mal esquecido por Deus…

O bokor pegou um longo cajado enrolado com a pele áspera de uma cobra e rodeou Amma como um animal esperando para dar o bote.

— Mas você veio. Porque suas bonequinhas e ervas não são capazes de salvar o ti-bon-age. São?

Amma olhou para ele com desafio.

— Alguém vai morrer se você não me ajudar.

— E alguém vai morrer se eu ajudar.

— Essa é uma discussão para outro dia. — Ela bateu em uma das cartas. — Esta é a morte com a qual me importo.

Ele examinou a carta, acariciando a pena.

— Interessante você escolher a pessoa que já está perdida. Mais interessante ainda que você venha me visitar, em vez de seus preciosos Conjuradores. Isso é sobre eles, não é?

Os Conjuradores.

Senti um aperto no peito. Quem já estava perdido? Será que ele estava falando sobre Lena?

Amma respirou fundo.

— Os Conjuradores não podem me ajudar. Mal conseguem ajudar a si mesmos.

Link olhou para mim, confuso. Mas eu não entendia tanto quanto ele. Como o bokor poderia ajudar Amma com uma coisa com a qual os Conjuradores não podiam?

As imagens surgiram antes que eu pudesse impedi-las. O calor insuportável. A praga de insetos infestando cada centímetro da cidade. Os pesadelos e o pânico. Conjuradores que não conseguiam controlar seus poderes e nem usar todos os que tinham. Um rio de sangue. A voz de Abraham ecoando pela caverna depois que Lena se Invocou.

Haverá consequências.

O bokor deu a volta para encarar Amma, medindo a expressão dela.

— Você quer dizer que os Conjuradores da Luz não podem.

— Eu não pediria ajuda para nenhum outro tipo.

Ele pareceu satisfeito com a resposta, mas não pelo motivo que imaginei.

— Ainda assim, você veio a mim. Porque posso fazer uma coisa que eles não podem, a velha magia que nosso povo trouxe consigo ao cruzar o oceano. Magia que pode ser igualmente controlada por Mortais e Conjuradores. — Ele estava falando de vodu, uma religião nascida na África e no Caribe. — Eles não entendem o ti-bon-age.

Amma olhou para ele como se desejasse poder transformá-lo em pedra, mas não foi embora.

Ela precisava dele, mesmo eu não sabendo por quê.

— Diga seu preço. — A voz dela tremeu.

Observei enquanto ele calculava os custos tanto do pedido de Amma quanto da integridade dela. Eles eram forças opostas, trabalhando nos extremos de um misticismo compartilhado, que era tão preto e branco quanto a Luz e as Trevas no mundo Conjurador.

— Onde está agora? Você sabe onde esconderam?

— Esconderam o quê? — disse Link apenas com o movimento da boca. Balancei a cabeça. Não fazia ideia do que estavam dizendo.

— Não está escondido. — Pela primeira vez, Amma olhou nos olhos dele. — Está livre.

A princípio, ele não reagiu, como se ela pudesse ter dito algo errado. Mas, quando o bokor percebeu que Amma estava falando sério, voltou até a mesa e olhou de novo o jogo de cartas. Eu podia ouvir os trechos de francês creole enquanto ele murmurava.

— Se o que você diz é verdade, velha, só existe um preço.

Amma passou a mão por cima das cartas e as organizou em uma pilha.

— Eu sei. Vou pagar.

— Entende que não tem volta? Não tem jeito de desfazer o que será feito. Se você mexer com a Roda do Destino, ela vai continuar a girar até esmagar você em seu caminho.

Amma juntou as cartas e as colocou de volta na bolsa. Eu podia ver a mão dela tremendo entre a luz e a sombra do aposento.

— Faça o que precisar fazer, e farei o mesmo. — Ela fechou a bolsa e se virou para sair. — No final, a Roda esmaga a todos nós.