19 DE SETEMBRO
Ventos do inferno
O vento soprou pela minha janela com uma força tão grande que levou tudo que havia em cima da minha mesa. Livros e papéis, até minha mochila, voaram no ar, rodopiando como um furacão preso em uma garrafa. As torres de caixas de sapato empilhadas contra minha parede caíram no chão, fazendo tudo, de revistas em quadrinhos à minha coleção de tampas de garrafa do 1º. ano, sair voando pelo ar. Eu me agarrei a Amma, que era tão pequena que eu tinha medo que saísse voando junto com todo o restante.
— O que está acontecendo? — Podia ouvir Link gritando em algum lugar atrás de mim, mas não conseguia vê-lo.
Abraham estava parado no centro do quarto, com a voz gritando no interior do vórtice negro.
— Para aqueles que trouxeram destruição à minha casa, convido o caos para a sua. — O vento revolveu ao seu redor sem fazer nem a parte de trás do paletó mexer. Ele o estava controlando. — A Ordem está Rompida. A Porta está Aberta. Surja, ascenda, destrua! — A voz dele ficou mais alta. — Ratio Fracta est! Ianua Aperta est! Sugite, Ascendite, Exscindite! — Agora ele estava gritando. — Ratio Fracta est! Ianua Aperta est! Sugite, Ascendite, Exscindite!
O ar rodopiante escureceu e começou a tomar forma. Vultos pretos e turvos pularam para fora da espiral, como se estivessem saindo do vórtice e se forçando pela beirada, para o mundo. E era uma ideia bastante perturbadora, considerando que o local para onde estavam se lançando era o meio do meu quarto.
Eu sabia o que eram. Já tinha os visto antes. E nunca quis vê-los de novo.
Tormentos, os demônios que habitavam o Subterrâneo, desprovidos de alma e de forma, surgiram do vento, contorcendo-se em vultos escuros que se moviam no meu teto azul, crescendo até parecer que iam sugar todo o ar do próprio quarto. As criaturas das sombras se moviam como uma névoa densa e agitada, transformando-se em pleno ar. Eu me lembrava daquele que quase nos tinha atacado fora do Exílio, do grito apavorado quando ele armou o bote e abriu a bocarra. Conforme as sombras se transformavam em monstros à nossa frente, eu sabia que o grito não demoraria muito.
Amma tentou se desprender dos meus braços, mas não a soltei. Ela teria atacado Abraham com as próprias mãos, se eu deixasse.
— Não ouse entrar na minha casa achando que pode trazer um mundo de perversidade por uma pequena rachadura no céu.
— Sua casa? Para mim, parece mais a casa do Obstinado. E o Obstinado é exatamente a pessoa a mostrar o caminho para meus amigos, através de sua pequena rachadura no céu.
Amma fechou os olhos e murmurou baixinho:
— Tia Delilah, tio Abner, vovó Sulla… — Ela estava tentando chamar os Grandes, seus ancestrais no Outro Mundo, que nos tinham protegido dos Tormentos duas vezes antes. Eles tinham o próprio poder, e não era para ser desconsiderado.
Abraham riu, com o som da voz mais alto do que o vento sibilante.
— Não precisa chamar seus fantasmas, sua velha. Estávamos indo embora. — Consegui ouvir o som de algo rasgando antes mesmo de ele se desmaterializar. — Mas não se preocupe. Vejo vocês em breve. Em menos tempo do que gostariam.
Em seguida, abriu o céu e entrou pela abertura. Desapareceu.
Antes que qualquer um de nós pudesse dizer alguma coisa, os Tormentos saíram pela janela aberta, como uma única fileira preta se movendo acima das casas adormecidas de Cotton Bend. No final da rua, a linha de Demônios se separou em direções diferentes, como os dedos de uma mão negra aprisionando a cidade.
Meu quarto estava estranhamente silencioso. Link tentou andar ao redor dos papéis e revistas em quadrinhos que se acomodavam no chão. Mas ele mal conseguia ficar parado.
— Cara, achei que eles iam nos arrastar pro inferno ou pro lugar de onde vieram, sei lá. Talvez minha mãe esteja certa e seja mesmo o Fim dos Dias. — Coçou a cabeça. — Temos sorte de terem ido embora.
Amma andou até a janela, esfregando o talismã de ouro que ela tinha pendurado no pescoço.
— Eles não foram embora, e não temos sorte. Só um tolo pensaria qualquer uma dessas duas coisas.
Os gafanhotos zumbiram debaixo da janela, a sinfonia desafinada de destruição que tinha se tornado a trilha sonora de nossas vidas. A expressão de Amma estava perturbada, uma mistura de medo, sofrimento e uma outra coisa que eu nunca tinha visto antes.
A indecifrável e inescrutável Amma. Olhando para a noite.
— O buraco no céu. Está ficando maior.
Não tinha como a gente voltar a dormir, e não havia como Amma ir para longe da gente. Então nós três nos sentamos ao redor da mesa da cozinha e ficamos ouvindo o tique-taque do relógio. Felizmente, meu pai estava em Charleston, como ficava na maior parte nas noites durante a semana, agora que estava dando aulas na universidade. Esta noite o teria mandado de volta para Blue Horizons, com certeza.
Percebi que Amma estava distraída porque ela cortou para Link uma fatia de torta de chocolate com noz-pecã quando cortou para mim. Ele fez uma careta e a colocou no prato de porcelana ao lado do pote de água de Lucille. Lucille cheirou e saiu de perto, indo se aconchegar em silêncio debaixo da cadeira de Amma. Nem mesmo Lucille tinha apetite esta noite.
Quando Amma se levantou para colocar água e fazer o chá, Link já estava tão agitado que batucava uma melodia no jogo americano com o garfo. Olhou para mim.
— Lembra o dia em que serviram aquela torta de chocolate com noz-pecã horrível no refeitório e Dee Dee Guinness falou pra todo mundo que tinha sido você quem deu o cartão de dia dos namorados sem assinatura pra Emily?
— Lembro. — Cutuquei a cola seca que havia na superfície da mesa desde que eu era criança. Minha torta estava intocada. — Espere, o quê? — Eu não estava prestando atenção.
— Dee Dee Guinness era bonitinha. — Link estava sorrindo para o nada.
— Quem? — Não fazia ideia de quem ele estava falando.
— Olá? Você ficou tão furioso que pisou em um garfo e o esmagou? E não deixaram você voltar ao refeitório por 6 meses? — Link examinou o próprio garfo.
— Eu me lembro do garfo, acho. Mas não me lembro de ninguém chamada Dee Dee. — Era mentira. Eu não conseguia nem me lembrar do garfo. Pensando bem, não me lembrava nem do dia dos namorados.
Link balançou a cabeça.
— Nós a conhecemos desde sempre, e ela entregou você no terceiro ano. Como pôde se esquecer dela?
Eu não respondi, e ele voltou a batucar com o garfo.
Boa pergunta.
Amma levou a xícara de chá até a mesa, e ficamos sentados em silêncio. Era como se estivéssemos esperando que uma onda de maremoto caísse sobre nós e fosse tarde demais para fazer as malas, entrar em pânico e fugir. Quando o telefone tocou, até Amma deu um pulo.
— Quem ligaria tão tarde? — Eu disse tarde, mas queria dizer cedo. Eram quase 6h. Estávamos todos pensando a mesma coisa: fosse lá o que estivesse acontecendo, ou o que Abraham tivesse liberado no mundo, devia ser por causa disso.
Link deu de ombros, e Amma pegou o telefone preto de disco que estava na parede desde que meu pai era criança.
— Alô?
Observei enquanto ela escutava a pessoa que ligou do outro lado da linha. Link batucava na mesa à minha frente.
— É uma mulher, mas não consigo identificar quem é. Está falando muito rápido.
Ouvi Amma prender a respiração, e ela desligou o telefone. Por um segundo, ficou parada segurando o fone.
— Amma, qual é o problema?
Ela se virou com os olhos cheios de água.
— Wesley Lincoln, você está com aquele seu carro? — Meu pai tinha levado o Volvo para a universidade.
Link assentiu.
— Sim, senhora. Está um pouco sujo, mas…
Amma já estava indo para a porta da frente.
— Ande logo. Temos de ir.
Link saiu com o carro um pouco mais devagar do que o habitual por causa de Amma. Não sei se ela teria reparado ou se importado se ele tivesse deslizado pela rua em duas rodas. Ela estava sentada no banco da frente, segurando as alças da bolsa.
— Amma, qual é o problema? Aonde vamos? — Eu estava inclinado para a frente no banco de trás, e ela nem gritou comigo por não usar o cinto de segurança. Alguma coisa realmente estava errada.
Quando Link entrou na rua Blackwell, vi o quanto estava errada.
— Mas que… — Ele olhou para Amma e tossiu. — Porcaria?
Havia árvores pela rua toda, arrancadas do chão, com raízes e tudo. Parecia a cena de um dos programas de desastres naturais que Link assistia no Discovery Channel. O Homem contra a Natureza. Mas isso não era natural. Era o resultado de um desastre sobrenatural: Tormentos.
Eu podia senti-los, a destruição que carregavam consigo, pesando sobre mim. Eles tinham estado aqui na rua. Tinham feito isso, e por minha causa.
Por causa de John Breed.
Amma queria que Link entrasse em Cypress Grove, mas a rua estava bloqueada; então ele precisou entrar na Main. Todas as luzes da rua estavam apagadas, e a luz do dia apenas começava a romper a escuridão, transformando o céu de preto em tons de azul. Por um minuto, achei que a rua Main pudesse ter escapado do furacão de Tormentos de Abraham, até eu ver o verde. Porque era só isso que havia ali agora: grama. Esqueça o balanço de pneu do outro lado da rua. Até o antigo carvalho tinha sumido. E a estátua do general Jubal A. Early não estava de pé com orgulho no centro, com a espada em riste, pronto para a batalha.
O general tinha caído, e o punho da espada quebrara.
A camada preta de gafanhotos que tinha coberto a estátua durante semanas tinha sumido. Até eles o haviam abandonado.
Eu não conseguia me lembrar de uma época em que o general não estivesse lá, protegendo o gramado e nossa cidade. Ele era mais do que uma estátua. Era parte de Gatlin, entranhado em nossas tradições nada tradicionais. No dia 4 de julho, o general usava uma bandeira americana nas costas. No Halloween, usava um chapéu de bruxa e havia uma abóbora de plástico, cheia de doces, pendurada em seu braço. Na encenação da batalha de Honey Hill, alguém sempre colocava um uniforme dos Confederados verdadeiro por cima do de bronze, permanente. O general era um de nós, cuidando de Gatlin de seu posto, geração após geração.
Eu sempre tivera esperanças de que as coisas fossem mudar na minha cidade, até elas começarem a mudar. Agora, queria que Gatlin voltasse a ser a cidade chata que tinha conhecido a vida toda. Do jeito que as coisas eram quando eu odiava o jeito como eram. Quando eu conseguia ver as coisas que iam acontecer, e nada acontecia, nunca.
Eu não queria ver isso.
Ainda estava olhando para o general caído pela janela de trás do carro quando Link diminuiu a velocidade.
— Cara, parece que uma bomba explodiu.
As calçadas em frente às lojas dos dois lados da rua Main estavam cobertas de vidro. As vitrines de todas elas tinham explodido, deixando as lojas sem nome e expostas. Eu conseguia ver o L e o I pintados de dourado da vitrine da Little Miss, separados das outras letras. Vestidos cor-de-rosa e vermelhos sujos cobriam a calçada, com milhares de lantejoulas refletindo os pedaços das nossas rotinas.
— Não foi bomba nenhuma, Wesley Lincoln.
— Senhora?
Amma estava olhando para o que havia sobrado da rua Main.
— Bombas caem do céu. Isso veio do inferno. — Ela não falou mais nada e apontou para o final da rua. Continue dirigindo. Era isso que ela estava dizendo.
Link dirigiu, e nenhum de nós perguntou para onde estávamos indo. Se Amma não tinha me contado até agora, era porque não planejava contar. Talvez não estivéssemos indo para nenhum lugar em particular. Talvez Amma só quisesse ver que partes de nossa cidade tinham sido poupadas e quais tinham sido abandonadas.
Mas então vi as luzes vermelhas e brancas piscando no final da rua. Enormes tufos de fumaça preta subiam no ar. Alguma coisa estava pegando fogo. Não apenas uma coisa na cidade, mas o coração e a alma da nossa cidade, ao menos para mim.
Um lugar onde eu achava que sempre estaria em segurança.
A Biblioteca do Condado de Gatlin, tudo que tinha algum significado para Marian e tudo que havia sobrado da minha mãe, estava tomada de chamas. Um poste telefônico estava caído por cima do telhado destruído, com chamas alaranjadas consumindo a madeira dos dois lados. Água jorrava das mangueiras, mas, assim que apagavam as chamas em um ponto, outras surgiam. O pastor Reed, que morava na mesma rua, estava jogando baldes de água ao redor, com o rosto coberto de cinzas. Pelo menos 15 membros da sua congregação tinham se reunido para ajudar, o que era irônico, considerando que a maioria tinha assinado uma das petições da Sra. Lincoln para que livros fossem banidos da biblioteca que eles estavam tentando salvar. “Quem bane livros não é melhor do que quem queima livros.” Era o que minha mãe costumava dizer. Nunca pensei que chegaria o dia em que realmente veria livros pegando fogo.
Link diminuiu a velocidade e contornou os carros estacionados e os carros de bombeiro.
— A biblioteca! Marian vai ter um treco. Você acha que aquelas coisas fizeram isso?
— Você acha que não? — Minha voz parecia distante, como se não fosse minha. — Quero sair. Os livros da minha mãe estão lá.
Link começou a parar o carro, mas Amma colocou a mão no volante.
— Continue dirigindo.
— O quê? — Achei que ela estava nos levando lá porque os bombeiros voluntários precisavam de ajuda para jogar água no resto do telhado para que não pegasse fogo. — Não podemos ir embora. Podem precisar de nossa ajuda. É a biblioteca de Marian.
É a biblioteca da mamãe.
Amma não tirava os olhos da janela.
— Mandei continuar dirigindo, a não ser que você queira parar para me deixar dirigir. Marian não está lá dentro, e ela não é a única que precisa de nossa ajuda agora.
— Como você sabe?
Amma ficou tensa. Nós dois sabíamos que eu estava questionando a capacidade dela de Vidente, o dom que era tão parte dela quanto a biblioteca era da minha mãe.
Amma continuava a olhar para a frente, com os nós dos dedos ficando brancos conforme ela apertava as alças da bolsinha.
— São apenas livros.
Por um segundo, não soube o que dizer. Era como se ela tivesse me dado um tapa na cara. Mas, como um tapa, depois do ardor inicial, tudo ficou mais claro.
— Você diria isso para Marian, ou para minha mãe, se ela estivesse aqui? São um pedaço da nossa família…
— Dê uma olhada antes de me fazer sermão sobre sua família, Ethan Wate.
Quando segui o olhar dela para além da biblioteca, soube que Amma não estava fazendo levantamento nenhum. Ela já sabia o que tínhamos perdido. Fui o último a perceber. Quase.
Meu coração estava em disparada, e meus punhos estavam fechados quando Link apontou para o fim da rua.
— Ah, cara. Não é a casa das suas tias?
Assenti, mas não falei nada. Não consegui encontrar palavras.
— Era. — Amma fungou. — Continue dirigindo.
Eu já conseguia ver o brilho vermelho da ambulância e do carro de bombeiros estacionado no gramado da casa das Irmãs ou no que tinha sido a casa delas. Ontem, era uma casa branca de dois andares em estilo federal, imponente, com uma varanda ao redor dela toda e uma rampa improvisada para a cadeira de rodas de tia Mercy. Hoje, era meia casa, cortada no meio como uma casa de bonecas. Mas, em vez de arrumações perfeitas de móveis em cada aposento, tudo na casa das Irmãs estava virado de cabeça para baixo e quebrado. O sofá azul de veludo amassado estava virado com as costas no chão, com mesas de canto e cadeiras de balanço empurradas para cima dele, como se o que havia na casa tivesse deslizado para um lado. Quadros estavam empilhados em cima de camas, depois de caírem das paredes. E o estranho recorte estava de frente para uma montanha de escombros: tábuas de madeira, folhas de gesso, pedaços não identificáveis de mobília, uma banheira de porcelana com pés em formas de garras… a metade da cosntrução que não tinha sobrevivido.
Enfiei a cabeça para fora da janela do carro e olhei para ela. Senti como se o Lata-Velha estivesse andando em câmera lenta. Na minha cabeça, relembrei os aposentos da casa. O quarto de Thelma ficava no andar de baixo, nos fundos, perto da porta de tela. Ainda estava de pé. Tia Grace e tia Mercy dividiam o quarto mais escuro, atrás da escada. E eu ainda conseguia ver a escada. Já era alguma coisa. Marquei mais esse na cabeça.
Tia Grace e tia Mercy e Thelma.
Tia Prue.
Não consegui encontrar o quarto dela. Não consegui encontrar a colcha florida cor-de-rosa com pequenas bolinhas estampadas, ou seja lá o que fossem. Não consegui encontrar o armário dela com cheiro de naftalina, nem a penteadeira com cheiro de naftalina e nem o tapete velho com cheiro de naftalina.
Tudo tinha sumido, como se um punho gigante tivesse caído do céu e transformado tudo em pó e entulho.
O mesmo punho gigante tinha poupado o resto da rua. As outras casas da Old Oak Road estavam intactas: nem uma árvore caída, nem pedaço de telhado quebrado nos jardins. Parecia o resultado de um tornado de verdade, pelo jeito como caiu de forma aleatória, destruindo uma casa e deixando a do lado perfeitamente intocada. Mas não era o resultado aleatório de um desastre natural. Eu sabia a quem pertencia esse punho enorme.
Era um recado para mim.
Link dirigiu o Lata-Velha até o meio-fio, e Amma saiu do carro antes mesmo de ele parar. Foi direto para a ambulância, como se já soubesse o que íamos encontrar. Fiquei paralisado, e meu estômago embrulhou.
O telefonema. Não tinha sido a grande rede de fofocas de Gatlin relatando que um furacão tinha destruído a maior parte da cidade. Tinha sido alguém ligando para contar a Amma que a casa antiga das minhas tias-avós tinha desmoronado e… o quê? Link segurou meu braço e me puxou para o outro lado da rua. Praticamente todo mundo do quarteirão estava ao redor da ambulância. Olhei para as pessoas sem realmente vê-las, porque era muito surreal. Nada daquilo podia realmente estar acontecendo. Edna Haynie estava usando bobes de cabelo de plástico cor-de-rosa e roupão atoalhado, apesar do calor de 32 °C, enquanto Melvin Haynie ainda vestia a camiseta branca e o short com os quais tinha dormido. Ma e Pa Riddle, que tinham uma tinturaria na garagem, estavam vestidos para desastre. Ma Riddle girava freneticamente a manivela do rádio antigo, apesar de ele parecer estar ficando sem energia e não estar captando sinal algum. Pa Riddle não soltava a espingarda.
— Com licença, senhora. Me desculpe. — Link abriu caminho pela multidão até estarmos do outro lado da ambulância. As portas de metal estavam abertas.
Marian estava de pé na grama marrom, do lado de fora das portas abertas, ao lado de uma pessoa enrolada em um cobertor. Thelma. Duas pessoas pequenas estavam entre elas, com canelas branco-azuladas magricelas aparecendo debaixo de camisolas longas e cheias de babados.
Tia Mercy estava balançando a cabeça.
— Harlon James. Ele não gosta de bagunça. Não vai gostar nada disso.
Marian tentou colocar um cobertor em volta dela, mas tia Mercy o empurrou.
— Você está em choque. Precisa se aquecer. Foi o que o bombeiro falou.
Marian me entregou o cobertor. Ela estava funcionando no modo de emergência, tentando proteger as pessoas que amava e minimizar os danos, embora seu mundo inteiro estivesse em chamas a algumas quadras dali. Não havia como minimizar esse tipo de dano.
— Ele fugiu, Mercy — murmurou tia Grace. — Já falei, aquele cachorro não presta. Prudence deve ter deixado a portinhola aberta de novo. — Não consegui evitar de olhar para o local onde a porta de cachorro ficava, e agora a parede toda tinha sumido.
Sacudi o cobertor e o coloquei com delicadeza ao redor dos ombros de tia Mercy. Ela estava agarrada em Thelma como uma criança.
— Temos de contar a Prudence Jane. Você sabe que ela é doida por aquele cachorro. Temos de contar a ela. Vai ficar mais furiosa do que uma vespa, se ouvir de outra pessoa primeiro.
Thelma as reuniu em um abraço.
— Ela vai ficar bem. São só pequenas complicações, como as que você teve alguns meses atrás, Grace. Você lembra.
Marian olhou para Thelma por bastante tempo, como uma mãe observando uma criança voltando do quintal.
— Está se sentindo bem, Srta. Thelma?
Thelma parecia quase tão confusa quanto as Irmãs costumavam estar.
— Não sei o que aconteceu. Em um minuto, eu estava sonhando com aquele pão do George Clooney e um encontro quente com bolo de açúcar mascavo, e, quando percebi, a casa estava caindo em cima de nós. — A voz de Thelma estava trêmula, como se não conseguisse entender as palavras que estava dizendo. — Mal tive tempo de pegar as meninas, e quando encontrei Prudence Jane…
Tia Prue. Não ouvi mais nada. Marian olhou para mim.
— Ela está com os paramédicos. Não se preocupe. Amma está com ela.
Passei por Marian, sentindo meu braço deslizar pelos dedos dela quando tentou segurá-lo. Dois paramédicos estavam inclinados por cima de uma pessoa deitada em uma maca. Havia tubos pendurados em hastes de metal que desapareciam no corpo frágil da minha tia, em partes que eu não conseguia ver, cobertas de esparadrapo branco. Os paramédicos estavam prendendo bolsas de um fluido claro em mais hastes de metal, e era impossível ouvir o que diziam com o som caótico de vozes, choro e sirenes. Amma estava ajoelhada ao lado dela, segurando a mão inerte e sussurrando. Eu me perguntei se ela estava orando ou conversando com os Grandes. Provavelmente, as duas coisas.
— Ela não está morta. — Link apareceu atrás de mim. — Posso sentir o cheiro dela… quero dizer, posso sentir. — Ele inspirou de novo. — Cobre, sal e molho de café.
Sorri apesar de tudo e soltei a respiração que estava prendendo.
— O que estão dizendo? Ela vai ficar bem?
Link prestou atenção nos paramédicos inclinados por cima de tia Prue.
— Não sei. Estão dizendo que, quando a casa caiu, ela teve um derrame e não está reagindo.
Eu me virei para olhar para tia Mercy e tia Grace. Amma e Thelma as ajudaram a se sentarem nas cadeiras de rodas, afastando os bombeiros voluntários como se não soubessem que os homens eram o Sr. Rawls, que cuidava dos medicamentos delas no Pare & Roube, e Ed Landry, que colocava gasolina para elas no posto BP.
Eu me abaixei e peguei um pedaço de vidro nos escombros aos meus pés. Não conseguia identificar o que tinha sido, mas a cor do vidro me fez pensar que era o gato verde de vidro de tia Prue, que ela exibia com orgulho ao lado das uvas de vidro. Eu o virei na mão e vi um adesivo redondo vermelho. Marcado, como tudo na casa das Irmãs, para um parente ou outro quando elas morressem.
Um adesivo vermelho.
O gato era para mim. O gato, os escombros, o fogo, tudo aquilo era para mim. Enfiei o pedaço de vidro quebrado no bolso e observei sem poder fazer nada, enquanto minhas tias eram levadas em direção à única outra ambulância da cidade.
Amma me lançou um olhar, e eu soube o que queria dizer. Não diga uma palavra e não faça nada. Queria dizer que era para eu ir para casa, trancar as portas e ficar de fora. Mas ela sabia que eu não podia.
Três palavras ficavam ressurgindo na minha mente. Não está reagindo. Tia Grace e tia Mercy não entenderiam o que queria dizer quando os médicos dissessem a elas que tia Prue não estava reagindo. Elas ouviriam o que ouvi quando Link falou.
Não está reagindo.
Praticamente morta.
E era minha culpa. Porque não pude dizer a Abraham como encontrar John Breed.
John Breed.
Tudo entrou em foco.
O Incubus mutante que tinha nos levado até a armadilha de Sarafine e Abraham, que tentara roubar a garota que eu amava e tinha Transformado meu melhor amigo, estava destruindo minha vida mais uma vez. Minha vida e a das pessoas que eu amava.
Por causa dele, Abraham tinha libertado os Tormentos. Por causa dele, minha cidade estava destruída, e minha tia estava quase morta. Livros estavam pegando fogo e, pela primeira vez, não era por causa de mentes pequenas e nem de pessoas pequenas.
Macon e Liv estavam certos. Era tudo relacionado a ele.
John Breed era o culpado.
Cerrei o punho. Não era um punho gigante, mas era meu. Assim como isso era um problema meu. Eu era um Obstinado. Se deveria achar o caminho para estar pronto para algum propósito grande e terrível, para liderar ou livrar os Conjuradores de seja lá o que Marian e Liv disseram, eu o tinha encontrado. E agora eu tinha de encontrar John Breed.
Não havia volta, não depois de hoje.
Uma ambulância se afastou. Depois, a outra. As sirenes ecoaram pela rua, e, enquanto desapareciam à minha frente, comecei a correr. Pensei em Lena. Corri mais rápido. Pensei em minha mãe e Amma, e tia Prue e Marian. Corri até perder o fôlego, até os carros de bombeiro estarem tão longe que não conseguia mais ouvir as sirenes.
Parei quando cheguei na biblioteca e fiquei ali de pé. As chamas tinham se apagado, quase todas. Ainda havia fumaça subindo em direção ao céu. O modo como as cinzas rodopiavam no ar fazia com que parecessem neve. Caixas de livros, algumas pretas, outras encharcadas, estavam empilhadas na frente do prédio.
Ela ainda estava de pé, mais da metade dela. Mas não importava, não para mim. Jamais teria o mesmo cheiro. Minha mãe, o que havia sobrado dela em Gatlin, tinha finalmente desaparecido. Não dava para reverter os livros queimados. O que podia ser feito era se comprar livros novos. E aquelas páginas jamais teriam sido tocadas pelas mãos dela, nem marcadas com uma colher.
Uma parte dela tinha morrido esta noite de novo.
Eu não sabia muito sobre Leonardo da Vinci. O que o livro dizia? Talvez eu estivesse aprendendo a viver ou talvez estivesse aprendendo a morrer. Depois de hoje, podia seguir para qualquer um dos dois caminhos. Talvez eu devesse ouvir Emily Dickinson e deixar a loucura começar a fazer sentido. Fosse como fosse, era Poe quem havia ficado comigo.
Porque eu tinha a sensação de que estava no meio das trevas observando, tão no meio quanto uma pessoa podia estar.
Peguei o pedaço de vidro verde do bolso e olhei para ele, como se pudesse me dizer o que eu precisava saber.