28 DE SETEMBRO

Risco

Estava ficando tarde, quando finalmente cheguei em casa. Lucille estava esperando na varanda da frente com a cabeça inclinada para o lado como se estivesse aguardando para ver o que eu ia fazer. Ao abrir a porta e seguir pelo corredor em direção ao quarto de Amma, eu já sabia. Não estava pronto para confrontá-la, mas precisava da ajuda dela. A Décima Oitava Lua de John Breed era uma coisa grande demais para eu encarar sozinho, e, se havia alguém que saberia o que fazer, esse alguém era Amma.

A porta do quarto dela estava fechada, mas eu conseguia ouvi-la remexendo em coisas lá dentro. Estava murmurando, mas a voz estava baixa demais para eu entender o que estava dizendo.

Bati na porta de leve, com a cabeça encostada na madeira fria.

Que ela esteja bem. Só esta noite.

Ela abriu a porta o bastante para dar uma olhada pela fresta. Ainda estava de avental e trazia uma agulha de costura em uma das mãos. Olhei para trás dela, para a luz fraca do quarto. A cama estava coberta de materiais de costura, carretéis e ervas. Estava fazendo as bonecas dela, sem dúvida. Mas alguma coisa estava estranha. Era o cheiro, aquela terrível combinação de gasolina e alcaçuz que eu lembrava da loja do bokor.

— Amma, o que está acontecendo?

— Nada com que precise se preocupar. Por que não sobe e faz o dever de casa? — Ela não me olhou nos olhos, nem perguntou onde estive.

— Que cheiro é esse? — Observei o quarto dela em busca da origem. Havia uma vela preta e grossa na cômoda. Parecia exatamente com a que o bokor tinha acesa na loja. Havia pequenos embrulhos costurados à mão empilhados ao redor. — O que a senhora está fazendo aí?

Ela enrubesceu por um segundo, mas se recompôs e fechou a porta.

— Amuletos, como sempre faço. Agora vá lá pra cima e se preocupe com o que há naquela bagunça que você chama de quarto.

Amma nunca tinha queimado o que pareciam ser produtos químicos tóxicos em nossa casa, nem quando estava fazendo bonecas e nem outro amuleto qualquer. Mas eu não podia falar para ela de onde aquela vela tinha vindo. Ela me arrancaria a pele se soubesse que entrei na loja do bokor, e eu precisava acreditar que havia uma razão para tudo isso, mas que era uma que eu não compreendia. Porque Amma era a coisa mais próxima que eu tinha de uma mãe, e, como minha mãe, sempre tinha me protegido.

Ainda assim, queria que ela soubesse que eu estava prestando atenção, que sabia que alguma coisa estava errada.

— Desde quando você acende velas que têm cheiro de coisa de laboratório de ciências quando faz suas bonecas? Pelos de cavalo e…

Minha mente estava completamente vazia.

Eu não conseguia lembrar o que mais ela enfiava dentro daquelas bonecas, o que havia nos vidros que cobriam suas prateleiras. Pelo de cavalo, eu conseguia imaginar aquele vidro. Mas o que havia nos outros?

Amma estava me observando. Não queria que percebesse que eu não conseguia lembrar.

— Esqueça. Se não quer me contar o que está fazendo aí dentro, tudo bem.

Saí andando rapidamente pelo corredor e pela porta da frente. Eu me encostei em uma das vigas da varanda, ouvindo o ruído dos gafanhotos consumindo nossa cidade, como se alguma coisa estivesse devorando minha mente.

Na varanda da frente, a escuridão crescente continha partes iguais de calor e tristeza. Pela janela aberta, podia ouvir as panelas dela batendo, as tábuas do piso reclamando, enquanto Amma botava a cozinha em posição de submissão. Ela deve ter deixado os amuletos de lado esta noite. Mas o ritmo familiar dos sons não me alegrou como costumava fazer. Só me fez sentir mais culpado, o que fez meu coração bater com mais força, e andar de um lado para o outro mais rápido, até que as tábuas da varanda estivessem gemendo quase tão alto quanto as da cozinha.

De cada um dos lados da parede, estávamos ambos cheios de segredos e mentiras.

Eu me perguntei se as tábuas gastas da Propriedade Wate eram o único lugar de Gatlin que conhecia todos os esqueletos do armário da minha família. Pediria à tia Del para dar uma olhada, se os poderes dela voltassem a funcionar.

Agora estava escuro, e eu precisava conversar com alguém. Amma não era mais uma opção. Apertei o atalho de discagem rápida de número três no meu celular. Não queria admitir que não conseguia lembrar o número para o qual tinha ligado cem vezes.

Estava esquecendo coisas o tempo todo agora e não sabia por quê. Mas sabia que não era bom.

Ouvi alguém atender.

— Tia Marian?

— Ethan? Você está bem? — Ela pareceu surpresa ao ouvir minha voz do outro lado da linha.

Não estou bem. Estou com medo e confuso. E tenho quase certeza de que nenhum de nós vai ficar bem.

Forcei as palavras a saírem da minha cabeça, abaixando a voz.

— Estou. Estou bem. Como você está indo?

Ela pareceu cansada.

— Sabe, Ethan, sua mãe ficaria orgulhosa desta cidade. Mais pessoas vieram se voluntariar para ajudar a reconstruir a biblioteca do que já foram nela enquanto esteve de pé.

— Ah, é. Acho que essa é a questão quanto a queimar livros. Tudo depende de quem os queima.

A voz dela ficou mais baixa.

— Conseguiu alguma resposta para isso? Quem os queimou? — Pelo jeito que falou, pude perceber que só pensava nisso. E, desta vez, ela sabia que a Sra. Lincoln não era a culpada.

— É por isso que estou ligando. Você pode me fazer um favor?

Você pode fazer tudo voltar a ser como era, quando meu maior problema era ter de ler revistas de carros no Pare & Roube com o pessoal?

— Qualquer coisa.

Qualquer coisa que não me envolva de uma maneira em que não posso me envolver. Era isso que ela queria dizer.

— Pode me encontrar em Ravenwood? Preciso conversar com você e Macon. E com todo mundo, acho.

Silêncio. O som de Marian pensando.

— Sobre isso.

— Mais ou menos.

Mais silêncio.

— As coisas não estão boas pra mim agora, EW. Se o Conselho do Registro Distante achasse que eu estava violando as regras de novo…

— Você vai visitar um amigo na casa dele. Isso não pode ser contra as regras. — Podia? — Eu não pediria se não fosse importante. É sobre mais do que a biblioteca, o calor e o que está acontecendo na cidade. É sobre a Décima Oitava Lua.

Por favor. Você e Amma são tudo que tenho, e ela está escurecendo mais do que nunca. E não posso falar com minha mãe. Então, tem de ser você.

Sabia qual era a resposta antes mesmo de ela falar. Se havia uma coisa que eu amava em Marian era o modo como sempre ouvia o que estava sendo dito, mesmo se ninguém dissesse.

— Me dê alguns minutos.

Fechei o celular e o joguei no degrau ao meu lado. Era hora de outra ligação, uma que não precisava de telefone. Olhei para o céu. As estrelas estavam começando a aparecer, e a lua já estava esperando.

L? Você está aí?

Houve uma longa pausa, e pude sentir Lena lentamente começando a relaxar a mente para perto da minha até estarmos conectados de novo.

Estou aqui, Ethan.

Precisamos descobrir isso. Depois do que aconteceu no County Care, não podemos desperdiçar mais tempo. Encontre seu tio. Já liguei pra Marian e vou pegar Link no caminho.

E Amma?

Queria contar a ela o que tinha acontecido hoje, mas doía demais.

Ela não está num bom momento. Você pode chamar sua avó?

Ela não está aqui. Mas tia Del está. E vai ser difícil deixar Ridley de fora.

Isso não ia melhorar as coisas, mas, se Link ia, seria impossível deixá-la de fora, de qualquer jeito.

Nunca se sabe, podemos ter sorte. Talvez Rid esteja ocupada demais, enfiando alfinetes em pequenas bonecas vodu de líderes de torcida.

Lena riu, mas eu, não. Não conseguia imaginar bonecas que não tivessem o cheiro do veneno queimando no quarto de Amma. Senti um beijo na bochecha, embora estivesse sozinho na varanda.

Estou indo.

Não mencionei o nome da outra pessoa que estaria lá. E Lena também não.

*    *    *

Dentro de casa, tia Grace e tia Mercy estavam assistindo Jeopardy!, que eu esperava ser uma boa distração, pois Amma sabia todas as respostas, mas fingia que não sabia. E as Irmãs não sabiam nenhuma e insistiam que sabiam.

— Dorme durante três anos? Bem, conchashima, Grace. Sei bem essa resposta, mas não vou dizer pra você. — Conchashima era o palavrão inventado de tia Mercy, que ela guardava para ocasiões em que realmente queria irritar uma das irmãs, pois se recusava a dizer o que significava. Tinha quase certeza de que ela também não sabia.

Tia Grace fungou.

Conchashima você, Mercy. O que todos os maridos de Mercy fizeram quando deviam estar sustentando a família? Essa é a resposta que estão procurando.

— Grace Ann, acho que estão perguntando quanto tempo você dormiu durante o sermão do último domingo de Páscoa. Babando debaixo do meu bom chapéu de rosas.

— Ele disse três anos, e não três horas. E, se o bom reverendo não gostasse tanto de ouvir a própria voz, talvez fosse mais fácil para o resto de nós prestar atenção. Você sabe que não consigo ver nada além de penas e flores quando me sento atrás de Dot Jessup com aquele grande chapéu de Páscoa.

— Lesmas. — Elas olharam para Amma sem entender. Ela desamarrou o avental. — Quanto tempo uma lesma consegue dormir? Três anos. E quanto tempo vocês meninas vão me fazer esperar até comerem meu jantar? E aonde, na face desta Terra, pensa que vai, Ethan Wate?

Fiquei paralisado na porta. Não havia como enganar Amma. Nunca.

Como era de esperar, ela não tinha intenção nenhuma de me deixar sair sozinho à noite, não depois de Abraham, do incêndio na biblioteca e de tia Prue. Ela me puxou para a cozinha tão rápido que poderiam pensar que fui insolente com ela.

— Não pense que não sei quando você está tentando me enrolar. — Ela olhou ao redor pela cozinha, procurando a Ameaça de Um Olho, mas eu tinha sido mais rápido e a enfiado no bolso de trás da calça jeans. Ela também não tinha um lápis, então estava desarmada.

Fiz minha jogada.

— Amma, não é nada. Falei pra Lena que jantaria com a família dela. — Queria poder contar a verdade, mas não podia. Não até descobrir o que ela tinha feito com aquele bokor em Nova Orleans.

Ela empinou um dos lados do quadril e entrou no meu jogo.

— Na noite do sanduíche de carne de porco? Com meu próprio Carolina Gold, três vezes vencedor do laço azul, e você espera que eu acredite nessa baboseira? — Ela fungou e balançou a cabeça. — Você escolheria um pastel de pavão em um prato de ouro no lugar da minha carne de porco? — Amma não tinha uma boa opinião da comida da Cozinha e estava certa.

— Não. Eu apenas esqueci. — Era verdade, embora ela tivesse mencionado o jantar naquela manhã.

— Humm. — Ela não acreditava em mim. E era compreensível, considerando que, em uma noite normal, essa seria minha ideia de paraíso.

— D-I-S-S-I-M-U-L-A-Ç-Ã-O. Doze na horizontal. Você está tramando alguma coisa, Ethan Wate, e não é o jantar.

Ela também estava tramando alguma coisa. Mas eu não tinha uma palavra para isso.

Eu me inclinei e coloquei os braços ao redor dela.

— Eu te amo, Amma. A senhora sabe disso? — Era verdade.

— Ah, eu sei bem. Sei que você está tão distante da verdade quanto a mãe de Wesley de uma garrafa de uísque, Ethan Wate. — Ela me empurrou para longe, mas eu a tinha agarrado de jeito. Amma, de pé nessa cozinha abafada, me dando bronca, independentemente de eu merecer e de ser o que ela queria dizer de verdade.

— Não precisa se preocupar comigo. A senhora sabe que sempre volto pra casa.

Ela amoleceu por um momento, colocou a mão no meu rosto e balançou a cabeça.

— O pêssego que você está vendendo tem cheiro doce, mas ainda não caí nessa.

— Volto às 23h. — Peguei a chave do carro na bancada e beijei sua bochecha.

— Nem um segundo depois das 22h ou você vai ter de dar banho em Harlon James amanhã. E estou falando de todos eles!

Saí da cozinha antes que ela pudesse me impedir. E antes que reparasse que levei a Ameaça de Um Olho comigo.

— Olha só. — Link estava pendurado na janela do Volvo, e o carro começou a se inclinar na direção dele. — Uau.

— Senta aí.

Ele voltou para o banco.

— Está vendo aquelas valas negras? Parece que alguém jogou napalm ou usou um lança-chamas pela estrada toda, indo direto pra Ravenwood. E, então, parou.

Link estava certo. Mesmo à luz da lua, eu conseguia ver os entalhes profundos, com, pelo menos, 1,20 metro de largura, dos dois lados da estrada de terra. A alguns metros do portão de Ravenwood, eles desapareciam.

Ravenwood estava intocada, mas a escala total do ataque à casa de Lena na noite em que Abraham libertou os Tormentos deve ter sido enorme. Ela nunca disse que tinha sido ruim assim, e não perguntei. Estava preocupado demais com minha própria família, minha própria casa e minha biblioteca. Minha cidade.

Agora, estava olhando para os estragos e torcia para que tivesse parado por aí. Encostei na lateral da estrada, e nós dois saímos. Era óbvio que pirotecnia nessa escala merecia ser observada de perto.

Link se agachou ao lado da trilha negra em frente ao portão.

— Fica mais grossa quando se chega mais perto da casa. Na hora em que chega nela desaparece.

Peguei um galho negro, e ele se desfez na minha mão.

— Não era assim que estava a casa de tia Prue. Aquilo parecia mais um furacão. Isso foi uma espécie de fogo, como na biblioteca.

— Não sei, cara. Talvez os Tormentos façam coisas diferentes com pessoas diferentes ou sei lá.

— Conjuradores são pessoas.

Link pegou outro galho e o examinou.

— Tá, tá. Somos todos pessoas, certo? Só sei que esta coisa está frita.

— Você acha que foi Sarafine? O fogo é meio que o forte dela.

Eu odiava considerar isso, mas era possível. Sarafine não estava morta. Estava em algum lugar por aí.

— É, ela é quente, verdade. — Ele reparou que fiquei olhando para ele como se fosse louco. — O quê? Não posso falar o que vejo?

— Sarafine é a Rainha das Trevas, idiota.

— Viu algum filme ultimamente? A Rainha das Trevas é sempre quente. Queimadura de terceiro grau. — Ele limpou as cinzas do galho esfarelado das mãos. — Vamos sair daqui. Tem alguma coisa aqui me dando dor de cabeça. Está ouvindo esse zumbido como um bando de serras elétricas, sei lá? Os Feitiços de Proteção. Ele agora conseguia senti-los.

Eu assenti, e ligamos o carro. Os portões enferrujados e tortos se abriram na escuridão, como se estivessem nos esperando.

Está aqui, L?

Enfiei as mãos nos bolsos e olhei para a grande casa. Podia ver as janelas, com as venezianas de madeira velha cobertas de hera, como se o quarto de Lena não tivesse mudado. Sabia que era ilusão, e de onde Lena estava, no quarto, ela conseguia me ver pelas paredes de vidro.

Estou tentando convencer Reece a ficar no andar de cima com Ryan, mas ela está sendo tão cooperativa quanto costuma ser.

Link estava olhando para a janela do lado oposto da de Lena.

O que aconteceu com Ridley?

Perguntei se ela queria vir. Achei que ia reparar em todo mundo chegando. Disse que iria, mas quem sabe? Ela anda tão estranha ultimamente.

Se Ravenwood tivesse rosto, o quarto de Lena seria um olho piscando e a janela de Ridley, o outro. As venezianas caindo aos pedaços estavam abertas e penduradas, e a janela por trás estava imunda. Antes de me virar, uma sombra passou por trás da janela de Ridley. Pelo menos, achei que fosse uma sombra; à luz da lua, era difícil dizer.

Eu não conseguia ver quem era. Estava longe demais. Mas a janela começou a tremer, cada vez com mais força, até que a veneziana de madeira se soltou da dobradiça e deslizou completamente para baixo da janela. Como se alguém estivesse querendo muito abri-la, mesmo se isso significasse botar a casa abaixo. Por um segundo, pensei que fosse um terremoto, mas o chão não estava se movendo. Só a casa.

Estranho.

Ethan?

— Você viu isso? — Olhei para Link, mas ele estava observando a chaminé agora.

— Olhe. Os tijolos estão caindo — disse.

O tremor ficou mais forte, e uma espécie de energia percorreu a casa toda. A porta da frente balançou.

Lena!

Saí correndo até a porta. Podia ouvir coisas batendo e quebrando lá dentro. Estiquei a mão e empurrei o entalhe Conjurador escondido acima da porta. Nada aconteceu.

Espere, Ethan. Tem alguma coisa errada.

Você está bem?

Estamos ótimos. Tio Macon acha que tem alguma coisa tentando entrar.

Daqui de fora parecia mais que alguém estava tentando sair.

A porta se abriu, e Lena me puxou para dentro. Senti a grossa cortina de poder quando passei pelo umbral. Link entrou depois de mim, e a porta se fechou em seguida. Depois do que vivenciei do lado de fora fiquei aliviado por estar lá dentro. Até olhar ao redor.

Àquela altura, eu estava acostumado ao interior de mudanças constantes de Ravenwood. Eu tinha visto de tudo, de antiguidades de fazendas históricas ao estilo gótico de filmes clássicos de terror nesta sala, mas estava completamente despreparado para isto.

Era uma espécie de bunker sobrenatural, o equivalente Conjurador do porão da Sra. Lincoln, onde ela armazenava suprimentos para tudo, desde furacões até o apocalipse. As paredes estavam cobertas do que parecia uma espécie de armadura, chapas de metal escovado do chão ao teto, e a mobília tinha sumido. Pilhas de livros e poltronas de veludo tinham sido substituídas por enormes barris de plástico e caixas de velas e uísque. Havia um saco de ração de cachorro que era obviamente para Boo, embora eu jamais o tivesse visto comer qualquer outra coisa além de bifes.

Uma fileira de jarros brancos parecia estranhamente com o suprimento de água sanitária que a mãe de Link tinha para “impedir que infecções se espalhem”. Andei até lá e peguei um dos jarros.

— O que é isso? Alguma espécie de desinfetante Conjurador?

Lena pegou o jarro da minha mão e o colocou ao lado dos outros.

— É, se chama água sanitária.

Link batucou em um dos barris de plástico.

— Minha mãe iria amar este lugar. Seu tio marcaria alguns pontos com ela. Esqueça os kits para 36 horas e os para 72 horas. São para amadores. Isto aqui é preparação séria pra catástrofes. Eu diria que você tem o bastante pra umas três semanas. Só que vocês não têm um pé de cabra.

Olhei para ele sem entender.

— Pé de cabra?

— Para procurar corpos nos entulhos.

— Corpos? — A Sra. Lincoln era mais maluca do que eu pensava.

Link olhou para Lena.

— E vocês não têm comida nenhuma.

— É aí que os Conjuradores são diferentes, Sr. Lincoln. — Macon estava na porta da sala de jantar, parecendo perfeitamente relaxado. — A Cozinha é capaz de fornecer o que precisarmos. Mas é importante estar preparado. Esta tarde é prova disso.

Fez um gesto em direção à sala de jantar, e fomos atrás dele. A mesa preta com pés em forma de garra tinha sido substituída por uma reluzente, de alumínio, que parecia coisa de laboratório de pesquisas médicas. Link e eu devíamos ter sido os últimos a chegar, porque só havia dois assentos vazios à mesa.

Se eu ignorasse a mesa de laboratório e as chapas de metal nas paredes, a situação me lembraria da Reunião quando conheci a família de Lena. Ridley ainda era das Trevas e tinha me enganado para trazê-la para dentro de Ravenwood. Quase parecia engraçado agora. Um mundo onde Ridley era a maior ameaça.

— Por favor, sentem-se, Sr. Wate e Sr. Lincoln. Vamos tentar determinar a origem dos tremores.

Eu me sentei em uma das duas cadeiras vazias ao lado de Lena, e Link se sentou na outra. A julgar pelo número de pessoas ao redor da mesa, eu não era o único com alguma coisa em mente, mas não falei nada. Não para Macon.

Eu sei. É como se ele estivesse nos esperando. Quando falei que você estava vindo, ele não pareceu surpreso. E todo mundo começou a chegar.

Marian se inclinou para a frente, no círculo de luz que banhava a mesa, vindo da vela mais próxima.

— O que aconteceu lá fora? Deu pra sentir aqui dentro.

Ouvi uma voz atrás de mim.

— Não sei, mas deu pra sentir lá fora também.

Nas sombras, pude ver Macon apontar para a mesa.

— Leah, por que você não se senta à esquerda de Ethan?

Quando me virei, uma cadeira vazia tinha aparecido entre mim e Link, e Leah Ravenwood estava nela.

— Oi, Leah — cumprimentou Link. Os olhos dela se arregalaram quando reparou nas mudanças nele. Eu me perguntei se ela conseguia identificar a própria espécie.

— Bem-vindo, irmão. — O cabelo preto caía do rabo de cavalo sobre o pescoço, e, por um segundo, eu me lembrei da enfermeira no County Care.

— Leah. Era você com tia Prue.

— Shh. Temos coisas mais importantes para discutir. — Ela apertou minha mão e piscou, que foi sua maneira de responder à pergunta. Fora Leah que tomara conta da minha tia por mim.

— Obrigado.

— Não é nada. Só faço o que me mandam. — Era mentira. Leah era tão independente quanto Lena.

— Você nunca faz o que mandam.

Ela riu.

— Tudo bem, eu faço o que quero. E gosto de ficar de olho na minha família. Minha família, sua família, dá tudo no mesmo.

Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, Ridley entrou na sala, usando uma coisa que parecia mais lingerie do que roupa. As chamas das velas aumentaram por um segundo; Ridley ainda conseguia causar impacto neste aposento.

— Não vejo meu nome em lugar algum. Mas sei que fui convidada pra festa. Certo, tio M?

— Você é mais do que bem-vinda a se juntar a nós. — Macon parecia calmo. Já devia estar acostumado com as explosões de Ridley.

— O que exatamente você está vestindo, querida? — Tia Del levou uma das mãos aos olhos, como se estivesse tendo dificuldades em enxergar qualquer peça de roupa no corpo de Ridley.

Ridley abriu um chiclete e jogou a embalagem sobre a mesa.

— O que sou então? Bem-vinda ou convidada? Gosto de saber o tamanho do desprezo. Faço cara feia melhor quando sei.

— Ravenwood é seu lar agora, Ridley. — Macon batucou impaciente com os dedos, mas sorriu como se tivesse todo o tempo do mundo.

— Na verdade, Ravenwood pertence à minha prima, tio M. Pois você a deu pra ela e deixou o resto de nós de lado. — Ela estava tendo um ataque sério esta noite. — O quê, nada de boia? Ah, é verdade. A Cozinha não anda a mesma. Nenhum de vocês sobrenaturais é o mesmo. Irônico, não é? Estou em uma sala cheia de todas essas pessoas superpoderosas, e vocês não conseguem colocar o jantar na mesa.

— A boca dessa garota… — Tia Del balançou a cabeça.

Macon fez sinal para Ridley se sentar.

— Eu apreciaria que você tivesse respeito pelos pequenos… problemas que todos parecemos ter.

— Não tô nem aí. — Ridley descartou Macon com um gesto das unhas rosa-shocking. — Vamos começar a festa.

Puxou a alça da roupa que estava vestindo. Mesmo pelos padrões de Ridley, ela não estava usando muita coisa.

— Você não está com frio? — sussurrou tia Del.

— É vintage — respondeu Ridley.

— De quê? Do Moulin Rouge? — Liv estava na porta com os braços cheios de livros.

Ridley puxou trança de Liv ao passar por ela em direção à cadeira vazia mais próxima.

— Na verdade, Pippi…

— Por favor. — Macon silenciou as duas com um olhar. — Estou impressionado com a atuação, Ridley. Um pouco menos com a fantasia. Agora, pode ir se sentar. — Macon suspirou. — Olivia, obrigado por se juntar a nós.

Ridley se espremeu na cadeira que apareceu ao lado de Link, ignorando-o com o máximo de atenção que conseguiu. Ele piscou.

— Não sei que tipo de loja Moo Landrews é, mas se tiver uma no shopping de Summerville vou comprar seu presente de aniversário lá. — Ridley manteve o olhar fixo à frente, fingindo não reparar nele reparando nela.

Macon começou.

— Olivia, você sentiu os tremores?

Mantive os olhos no rosto de Macon. Mas ouvi Liv se sentar, jogar o que imaginei ser o caderno vermelho dela sobre a mesa e começar a mexer nas engrenagens do selenômetro. Eu conhecia todos os sons dela, assim como conhecia os de Link, de Amma e de Lena.

— Se não se importar, Sr. Macon. — Liv empurrou uma pilha de livros e papéis por cima da mesa na direção dele. — Com aquele último, queria ter certeza de que tirei as medidas certas.

— Vá em frente, Olivia. — Lena ficou tensa quando Macon falou o nome de Liv. Consegui sentir, vindo em ondas na minha direção.

Liv continuou a falar, sem perceber.

— Basicamente, está piorando. Se os números forem precisos, há uma energia singular sendo atraída para esta casa. — Que ótimo. Tudo que eu precisava era que Liv começasse a falar sobre atração.

— Interessante. — Macon assentiu. — Então está ficando mais forte, como nós suspeitamos?

O “nós” deve ter afetado Lena.

Estou tão cansada dela.

— Liv? — Droga. Eu disse o nome em voz alta sem querer. Qual era meu problema? Não conseguia nem continuar a me comunicar por Kelt, nem conversar direito. Lena olhou para mim, estupefata.

— Sim, Ethan? — Liv estava esperando que eu lhe fizesse uma pergunta.

A mesa toda se virou em minha direção. Eu tinha de pensar em alguma coisa. Do que estávamos falando?

De atração.

— Eu queria saber…

— Sim? — Liv olhou para mim com expectativa. Estava feliz por Reece não estar na sala, mesmo com os poderes estando meio fora de controle. Uma Sibila veria o que eu estava sentindo.

E não precisava de um selenômetro para provar ou medir para mim. Embora jamais fôssemos nos tornar nada além de amigos, Liv e eu sempre representaríamos alguma coisa um para o outro.

Meu estômago se contraiu. Dessa vez, não eram abelhas assassinas. Pareciam Tormentos mastigando meus órgãos internos.

— Tormentos — falei, do nada. Todo mundo ainda estava olhando para mim.

Liv assentiu com paciência, esperando que eu dissesse alguma coisa que fizesse sentido.

— Sim. Tem havido bem mais do que a quantidade habitual de atividade ultimamente.

— Não. Quero dizer, e se estivermos supondo que alguma coisa esteja tentando entrar em Ravenwood por causa de tudo que Abraham tem lançado contra nós?

Marian olhou para mim sem entender.

— Minha biblioteca quase se incendiou por completo. A casa das suas tias foi destruída. É uma suposição bem segura, você não acha?

Todas as pessoas na sala olharam para mim como se eu fosse um idiota, mas fui em frente.

— E se estivermos errados? E se alguém estiver fazendo isso daqui de dentro?

Liv ergueu uma sobrancelha.

Ridley lançou as mãos para o alto.

— É a coisa mais burra…

— É brilhante, na verdade — disse Liv.

— É claro que você acha isso, Mary Poppins. — Ridley revirou os olhos.

— Acho. E, a não ser que você tenha uma ideia mais convincente, vai ter de calar a boca e me ouvir, pra variar. — Liv se virou para Macon. — Ethan pode estar certo. Tem uma anomalia nos números que não consigo explicar. Mas, se eu invertesse tudo, faria sentido.

— Por que alguém estaria fazendo isso daqui de dentro? — perguntou Lena.

Mantive os olhos no caderno vermelho sobre a mesa, nas fileiras de números, nas coisas que eram seguras e conhecidas.

— A pergunta não é por quê. — A voz de Macon soou estranha. — É quem.

Lena olhou para Ridley. Estávamos pensando a mesma coisa.

Ridley deu um pulo da cadeira.

— Vocês acham que sou eu? Sou sempre quem leva a culpa por tudo que dá errado por aqui!

— Ridley, se acalme — disse Macon. — Ninguém…

Mas ela o interrompeu.

— Vocês já consideraram que os números na porcaria de relógio da Srta. Perfeita podem estar errados? Não, isso seria impossível, porque ela tem todos comendo na mão dela!

Lena sorriu.

Não é engraçado, L.

Não estou rindo.

Macon levantou o braço.

— Chega. É bem possível que alguma coisa não esteja mesmo tentando entrar em Ravenwood. Essa coisa já pode estar aqui.

— Você não acha que repararíamos se uma das criaturas das Trevas de Abraham tivesse penetrado pelos Feitiços? — Lena não parecia convencida.

Macon se levantou da cadeira com os olhos fixos em mim. Estava olhando para mim do mesmo jeito que na noite em que nos conhecemos, quando mostrei a ele o medalhão de Genevieve sobre a mesa.

— Um ponto válido, Lena. Supondo que estamos lidando com uma falha.

Leah Ravenwood observou o irmão.

— Macon, no que está pensando?

Macon andou ao redor da mesa até parar do outro lado, bem à minha frente.

— Estou mais interessado no que Ethan está pensando. — Os olhos verdes de Macon começaram a brilhar. Eles me lembravam da cor luminescente do Arco Voltaico.

— O que está acontecendo? — sussurrei para Leah, que parecia chocada.

— Eu sabia que os poderes de Macon tinham mudado quando ele virou Conjurador. Mas não tinha ideia de que ele podia Caçar na Mente.

— O que isso significa exatamente? — Não parecia bom, considerando que Macon estava completamente concentrado em mim.

— A mente é um labirinto, e Macon consegue encontrar um caminho através dela.

Parecia uma das respostas de Amma, do tipo que não diz realmente nada.

— Você quer dizer que ele consegue ler mentes?

— Não do jeito que você está pensando. Ele consegue sentir perturbações e anomalias, coisas que não estão no lugar certo. — Leah estava olhando para Macon.

As pupilas verdes estavam brilhando e era impossível vê-las agora, mas sabia que ele estava me observando. Era perturbador ser visto sem ser visto. Macon olhou para mim por um longo minuto.

— Você, dentre todas as pessoas.

— Eu o quê?

— Parece que você trouxe alguma coisa… não, alguém, aqui pra dentro esta noite. Um hóspede que não foi convidado.

— Ethan jamais faria isso! — Lena parecia tão surpresa quanto eu.

Macon a ignorou, ainda me observando.

— Não consigo identificar exatamente, mas alguma coisa mudou.

— Do que você está falando? — Uma sensação nauseante crescia dentro de mim.

Marian ficou de pé lentamente, como se não quisesse assustá-lo.

— Macon, você sabe que a Ordem está afetando os poderes de todo mundo. Você não é imune. É possível que esteja detectando uma coisa que não está aí?

A luz verde se apagou nos olhos de Macon.

— Tudo é possível, Marian.

Meu coração estava disparado no peito. Um segundo atrás, ele estava me acusando de levar alguém para dentro de Ravenwood e agora ele tinha o quê? Mudado de ideia?

— Sr. Wate, parece que você não é você mesmo. Alguma coisa significativa está faltando. E isso explica por que senti a presença de um estranho na minha casa, mesmo esse estranho sendo você.

Todo mundo estava olhando para mim. Senti meu estômago revirar, como se o chão ainda estivesse se mexendo sob meus pés.

— Faltando? O que o senhor quer dizer?

— Eu diria, se soubesse. — Macon começou a relaxar. — Infelizmente, não estou totalmente certo.

Não sabia do que Macon estava falando, e não ligava mais. Não ia ficar sentado ali sendo acusado de coisas que não fiz, porque os poderes dele estavam falhando, e ele era arrogante demais para aceitar. Meu mundo estava desmoronando ao meu redor, e eu precisava de respostas.

— Espero que tenha se divertido caçando ou seja lá como o senhor chama. Mas não foi disso que vim falar.

— Você veio falar de quê? — Macon se sentou à cabeceira da mesa. Falou como se eu estivesse fazendo todo mundo perder tempo, o que só me deixou com mais raiva.

— A Décima Oitava Lua não tem relação com Ravenwood e nem com Lena. Tem relação com John Breed. Mas não sabemos onde ele está, nem o que vai acontecer.

— Acho que ele está certo. — Liv mordeu a ponta da caneta.

— Achei que vocês poderiam querer saber para podermos encontrá-lo. — Fiquei de pé. — E lamento se não pareço mais ser eu mesmo. Talvez tenha alguma coisa a ver com o fato de que o mundo está desabando.

Ethan, pra onde você vai?

Isso é bobagem.

— Ethan, se acalme. Por favor. — Marian começou a se levantar.

— Diga isso para os Tormentos que destruíram a cidade toda. Ou para Abraham e Sarafine, e Hunting. — Olhei diretamente para Macon. — Por que não vira sua visão de raios X para eles?

Ethan!

Pra mim, já chega.

Ele não quer dizer…

Não quero saber o que ele quer dizer, L.

Macon estava me observando.

— Não existem coincidências, certo? Quando o universo me avisa sobre alguma coisa, costuma ser minha mãe falando. Então, vou escutar.

Saí andando, antes que alguém pudesse dizer alguma coisa. Não precisava ser um Obstinado para ver quem estava perdido.