13 DE OUTUBRO

Bilhete dourado

Naquela noite, depois da visita do Registro Distante, Marian foi para casa e não saiu mais, pelo que eu soube. No dia seguinte, passei lá para ver se estava bem. Ela não atendeu a porta e nem estava na biblioteca. No dia depois desse, levei a correspondência dela para a varanda. Tentei olhar pela janela, mas estava fechada e as cortinas também.

Toquei a campainha de novo, mas ela não atendeu. Eu me sentei nos degraus da frente e dei uma olhada nas cartas. Nada fora do normal: contas. Uma carta da Universidade de Duke, provavelmente sobre fundos de pesquisa. E uma espécie de carta devolvida ao remetente, mas não reconheci o endereço: Kings Langley.

Por que isso era familiar? Minha cabeça parecia enevoada, como se houvesse uma coisa no fundo da memória que eu não conseguia alcançar.

— Essa deve ser pra mim. — Liv se sentou no degrau ao meu lado. O cabelo estava trançado, e ela estava usando uma calça jeans cortada e uma camiseta com a tabela periódica.

Por fora, Liv parecia a mesma. Mas eu sabia que o verão tinha mudado as coisas para ela.

— Nunca perguntei se você ficou bem depois daquela cena na biblioteca com o Conselho. Você está… bem?

— Acho que sim. Mas o que aconteceu na Temporis Porta me assustou mais. — Ela parecia com medo e distante.

— A mim também.

— Ethan, acho que era o futuro. Você passou pela porta e foi transportado para outro espaço físico. É assim que funciona um portal do tempo.

O Registro Distante não pareceu um sonho e nem uma visão. Foi como entrar em outro mundo. Eu só desejava que esse mundo não fosse o futuro.

O rosto de Liv se enevoou. Alguma outra coisa a estava incomodando.

— O que foi?

— Andei pensando. — Liv mexeu no selenômetro com nervosismo. — A Temporis Porta só se abriu pra você. Por que ela não me deixou passar?

Porque coisas ruins vivem acontecendo comigo. Era o que eu estava pensando, mas não falei. Também não mencionei que tinha visto minha professora de inglês no futuro.

— Não sei. O que faremos então?

— A única coisa que podemos. Vamos impedir que Marian vá pro Registro Distante.

Olhei para a porta.

— Talvez devêssemos ficar felizes de ela não sair de casa. Acho que devíamos saber que nada de bom resultaria de xeretar na despensa de Amma.

— Fora as conservas. — Liv sorriu sem graça. Ela estava tentando me distrair da única coisa da qual eu jamais conseguiria escapar: eu mesmo.

— Cereja?

— Morango. — Ela falou a palavra lentamente. — Uma colherada tirada direto do vidro.

— Você fala como Ridley. Açúcar o tempo todo. — Ela sorriu quando falei isso.

— Eu queria perguntar mesmo. Como estão Ridley, Link e Lena?

— Ah, você sabe. Ridley está detonando a escola. Agora ela é líder de torcida.

Liv riu.

— Sirena, líder de torcida. Não conheço tão bem a cultura americana, mas até eu aprecio as semelhanças.

— Pois é. Link é o cara mais popular da escola. As garotas vivem penduradas nele. Virou ímã de gatinhas.

— Como está Lena? Feliz de ter o tio de volta, aposto. E você.

Ela não olhou para mim, e não olhei para ela. Quando falou, olhou para o sol intenso em vez de para mim, de tanto que ela não queria falar na minha cara.

— É difícil pra mim, sabe? Eu me pego pensando em você, nas coisas que quero te contar, nas coisas que acho engraçadas e estranhas, mas você não está por perto.

Eu queria largar a correspondência de Marian e sair correndo pela escada.

Mas, em vez de fazer isso, respirei fundo.

— Eu sei. O resto de nós ainda está junto, mas você está sozinha. Depois de tudo que passamos nos afastamos de você. É uma droga. — Enfim, falei. Isso me incomodava desde o dia em que retornamos a Gatlin, o dia em que Liv desapareceu nos túneis com Macon.

— Tenho Macon. Ele tem sido maravilhoso comigo, quase como um pai. — Ela puxou os cordões que sempre trazia amarrados no pulso. — Mas sinto falta de você e de Marian, e não poder conversar com nenhum dos dois é horrível. Não quero arrumar mais confusão pra ela. Mas é como dizerem que você precisa parar de gostar de sorvete, ou camarão frito, ou Ovomaltine.

— Eu sei. Sinto muito pelo fato de as coisas estarem tão estranhas. — O que era estranho era essa conversa. Era Liv ter coragem bastante para falar tudo aquilo.

Ela me olhou de lado e deu um meio sorriso.

— Fiquei pensando depois que vi você ontem. Consigo conversar com você sem tentar beijá-lo. Você não é tão irresistível assim.

— Nem me fale.

— Eu queria poder imprimir um cartaz e colar na testa. OFICIALMENTE, NÃO QUERO BEIJAR ETHAN WATE. AGORA ME DEIXEM SER AMIGA DELE.

— Talvez pudéssemos fazer camisetas com o dizer PLATÔNICO.

— Ou NÃO NAMORANDO.

NÃO ATRAÍDOS.

Liv devolveu a carta à pilha com um suspiro.

— Essa era eu sentindo pena de mim mesma algumas semanas atrás. Escrevi pra casa e perguntei se me aceitariam de volta.

Eu me dei conta de que não sabia quase nada sobre a família de Liv.

— Para casa, casa? Para sua família?

— Só minha mãe. Meu pai foi embora faz tempo. Para a glamourosa vida de um físico teórico. Mas não, foi uma tentativa patética de fazer com que ela me mandasse para Oxford, na verdade. Desisti da universidade pra vir pra cá. E pareceu que era hora de partir, pelo menos na época.

— E agora? — Eu não queria que ela fosse embora.

— Agora, sinto que não posso deixar Marian até que essa confusão toda esteja resolvida.

Assenti, puxando os cadarços dos tênis.

— Ficaria satisfeito se ela apenas saísse de casa. — Mas não queria pensar no futuro que ela podia ter de encarar, se saísse.

— Eu sei. Ela também não está na biblioteca. Talvez precise de um tempo. — Obviamente, Liv estava fazendo as mesmas visitas do que eu. Éramos tão parecidos, de mais de um jeito. Mais do que sermos os únicos Mortais da equação.

— Sabe, você foi bem corajosa na biblioteca.

Ela sorriu.

— Não foi incrível? Fiquei orgulhosa. Depois, fui pra cama e chorei umas dez horas seguidas.

— Não culpo você. Foi pesado. — E ela só tinha visto metade. O Registro Distante era bem pior.

— Ontem à noite… — comecei, mas ela disse na mesma hora:

— Sabe, preciso ir…

Meu momento tinha passado, como sempre, e nossas frases atropelaram uma à outra. Ficamos sentados por um minuto, em meio ao constrangimento. Eu não conseguia levantar para ir embora.

Ela ficou de pé e limpou o short.

— Fico feliz de termos tido chance de conversar.

— Eu também.

Quando andávamos pelo caminho bem cuidado que levava ao portão de Marian, tive uma ideia. Não era uma ideia perfeita, mas era boa.

— Espere. — Tirei um folheto laranja dobrado do bolso. — Tome.

Liv o desdobrou.

— O que é isso?

— Um convite para a festa de Savannah Snow depois do jogo de basquete contra Summerville na noite de sábado. É o convite mais quente da cidade. — Era difícil dizer isso com expressão séria.

— Como você e Lena foram convidados pra uma festa na casa de Savannah?

— Você subestima os poderes combinados de uma ex-Sirena e um Linkubus.

Ela guardou o papel no bolso.

— Então você quer acrescentar uma Guardiã em treinamento expulsa à mistura?

— Não sei se vamos, mas Link e Ridley vão com certeza. Você também deveria ir e passar um tempo com eles, como antigamente.

Ela hesitou.

— Vou pensar.

— Pensar?

— Não vai ser um pouco constrangedor se você e Lena estiverem lá?

É claro que sim.

— Por que seria constrangedor? — Tentei ser convincente.

— Por que as pessoas dizem coisas assim? Não sei se Lena vai ficar à vontade perto de mim. — Ela olhou para o céu, como se a resposta estivesse escondida no universo azul ininterrupto. — E é por isso que precisamos daquelas camisetas, acho.

Coloquei as mãos nos bolsos e tentei pensar em uma resposta.

— Você trouxe Macon de volta. Apoiou Marian. Lena respeita você e o que fez para ajudar nós dois. Você praticamente mora em Ravenwood ou, ao menos, debaixo da casa. É como se fosse da família.

Ela apertou os olhos e examinou meu rosto como se não acreditasse em mim. E fazia sentido, pois parte do que falei não era verdade.

— Talvez. Possivelmente. É o melhor que posso fazer, dadas as circunstâncias.

— Vou interpretar isso como um sim.

— Tenho de voltar. Macon está me esperando. Mas vou pensar na festa.

Ela tirou uma chave do bolso e a ergueu. Era uma chave em forma de lua crescente, como a que Marian possuía. Agora, Liv podia abrir as portas externas que ligavam os mundos Mortal e Conjurador. Por alguma razão, isso parecia ser o certo. Ela acenou e desapareceu na esquina ao mesmo tempo que me virava para a casa escura. As janelas ainda estavam fechadas.

Deixei a correspondência em uma cadeira de balanço ao lado da porta de Marian e torci para não estar mais lá de manhã. Esperava que minhas lembranças da Temporis Porta desaparecessem mais rápido ainda.

— Você fez o quê? Por favor, me diga que está brincando.

Estávamos no Cineplex, na fila da pipoca. Lena não estava tão feliz com a amizade com Liv quanto eu tinha esperado. Na verdade, estava tão insatisfeita quanto eu previra. Mas, se Liv decidisse ir à festa, Lena iria descobrir que tinha sido eu quem a convidou. Era melhor levar o golpe agora. Uma namorada furiosa era uma coisa. Uma namorada Conjuradora furiosa significava que você podia perder um membro ou pular de um precipício.

Eu tinha planejado contar a Lena sobre ter encontrado a Temporis Porta com Liv na noite anterior. Mas, considerando a reação dela ao convite para a festa, pareceu melhor esperar.

Assim, fui sincero sobre o resto.

Suspirei e repeti meu argumento, embora não fosse me levar a lugar algum.

— Se você tivesse alguma coisa com que se preocupar, acha que eu teria convidado Liv pra ir a um lugar aonde talvez vá com você? Você não acha que faria planos secretos?

— Que tipo de planos secretos?

Dei de ombros.

— Não sei. Não tenho nenhum.

— Mas vamos dizer que tivesse.

— Mas não tenho. — A conversa estava indo morro abaixo muito rápido.

— Ethan, isso é hipotético.

— É uma armadilha. — Eu sabia muito bem que não devia entrar no jogo de perguntas hipotéticas com uma garota.

Chegamos ao balcão, e peguei minha carteira.

— E então?

Lena olhou para mim como se eu fosse louco.

— O de sempre.

O de sempre? O que era o de sempre? Minha mente estava completamente vazia.

— O de sempre — repeti estupidamente.

Ela me deu uma olhada e se virou para o caixa.

— Pipoca e caramelos de chocolate, por favor.

Você está bem?

Estou, apenas tive um branco. Não sei.

O caixa colocou a pipoca de Lena no balcão e olhou para mim. Olhei para a lista na parede.

— E que tal… pipoca e bala de canela Hot Tamales?

Hot Tamales?

Aqui não tem a marca Red Hot, L.

Está pensando em alguém que conheço?

Dei de ombros. É claro que estava. Amma não estava fazendo rolinhos primavera com o cutelo, nem recheando tortas com a Ameaça de Um Olho. Os lápis no. 2 apontados estavam na gaveta, e eu não via uma palavra-cruzada na mesa da cozinha havia semanas.

Ethan, não se preocupe com Amma. Ela vai melhorar.

Amma nunca escureceu por tanto tempo. Temos uma árvore com garrafas penduradas em nosso jardim.

Desde que Abraham apareceu na sua casa?

É mais pra desde que as aulas começaram.

Lena colocou os caramelos de chocolate no pote de pipoca.

Se você está tão preocupado, por que não pergunta a ela?

Já tentou perguntar alguma coisa a Amma?

Sim. Não. Talvez precisemos ir ver esse bokor.

Não se ofenda, L, mas ele não é o tipo de cara que se leva a namorada pra ver. E não tenho certeza se uma Conjuradora de verdade estaria em segurança lá.

A equipe inteira de líderes de torcida passou por nós. Ridley estava andando com um cara que eu não conhecia, que estava com a mão no bolso de trás da saia colada dela. Não era da Jackson; meu palpite era Summerville. Savannah estava pendurada em Link, que estava olhando para Ridley enquanto ela fingia não reparar nele. Emily estava andando atrás deles com Charlotte e Eden, e dava para ver a ira no rosto de Savannah. Ela não era mais a base da pirâmide.

— Vão sentar com a gente? — gritou Link, quando passou.

Savannah sorriu e acenou. Lena olhou para os dois como se estivessem andando pela rua só de roupa íntima.

— Nunca vou me acostumar com isso — disse ela.

— Nem eu.

— Você explicou pra Rid sobre as quatro fileiras de trás do Cineplex?

— Ah, não…

Assim, acabamos entre Link e Savannah, e Ridley e o cara de Summerville, nas últimas quatro fileiras. Os créditos mal tinham começado quando Savannah começou a sussurrar e rir no pescoço de Link, o que era, pelo que eu podia perceber, uma desculpa para colocar a boca perto da dele. Dei uma cotovelada nele com o máximo de força que consegui.

— Ai!

— Ridley está sentada bem aqui, cara.

— É. Com esse retardado.

— Você quer que ela fique em cima dele assim? — Ridley não era o tipo de garota que ficava furiosa. Ela ficava quite.

Link se inclinou para a frente e olhou além de Lena e de mim, para onde Ridley estava sentada. O Retardado de Summerville já estava com a mão na perna dela. Quando ela viu Link olhando, passou o braço pelo do sujeito e jogou o cabelo louro e rosa para trás. Em seguida, pegou um pirulito e começou a desembrulhá-lo.

Link se mexeu na cadeira.

— É. Você está certo. Vou ter de chutar…

Lena pegou a manga da camisa de Link, antes que ele se levantasse.

— Você não vai fazer nada. Apenas se comporte, e ela também vai se comportar, e depois talvez vocês possam começar a namorar como pessoas normais e parem com esse joguinho idiota.

— Shh! — O Retardado de Summerville olhou para nós. — Calem a boca. Tem gente aqui tentando ver o filme.

— Ah, tá — gritou Link para ele. — Sei o que você está tentando ver.

Link me lançou um olhar de súplica.

— Por favor, me deixe ir pra fora pra dar uma surra nele, antes que eu perca as partes boas. Você sabe que vou acabar fazendo isso mesmo.

Ele tinha razão. Mas ele era um Linkubus, e as regras eram diferentes agora.

— Está pronto para Ridley dar uma surra em Savannah? Porque você sabe que ela vai fazer isso.

Ele balançou a cabeça.

— Não sei quanto tempo consigo suportar isso. Rid está me deixando doido. — Por um segundo, o velho Link estava de volta, fixado na garota que sempre seria boa demais para ele. Talvez fosse isso. Talvez ele sempre fosse ver Ridley como fora do alcance, embora o alcance dele tivesse mudado.

— Você precisa convidá-la pra festa de Savannah, pra ir como sua acompanhante. — Era o único jeito de desarmar essa bomba em particular.

— Você está de brincadeira? É como declarar guerra contra a equipe toda. Savannah já me mandou fazer um monte de coisa, ir mais cedo pra arrumar e montar tudo.

— Só estou falando o que vejo. — Comi pipoca com bala de canela Hot Tamales. Minha boca estava queimando, o que me pareceu um sinal. Hora de calar a boca.

Eu não ia mais dar conselho algum.

No fim da noite, Link deu uma surra no Retardado de Summerville no estacionamento. Ridley chamou Link de todos os palavrões que não estão no dicionário, e Savannah se meteu. Por um minuto, pareceu que ia haver uma briga de garotas, das sérias, até que Savannah lembrou que o braço ainda estava na tipoia e fingiu que tudo fora um mal-entendido.

Quando cheguei em casa, havia um bilhete preso na porta da minha casa. Era de Liv.

Mudei de ideia. Vejo você na festa. Bj Liv

Bj.

Era só uma coisa que as meninas escrevem no final de bilhetes, né?

É.

Eu estava morto.