7 DE SETEMBRO
Garotas Mortais
Enquanto passávamos pela rua Dove, era difícil acreditar que nossa cidade tinha tido qualquer outra cor além de marrom. A grama parecia uma torrada queimada antes de você raspar as partes pretas. O Lata-Velha era a única coisa que não mudara. Pelo menos desta vez, Link estava dirigindo dentro do limite de velocidade, mesmo que fosse só porque queria ver o que tinha sobrado do jardim das casas dos vizinhos.
— Cara, olha as azaleias da Sra. Asher. O sol está tão quente que elas ficaram pretas.
Link estava certo quanto ao calor. De acordo com o Almanaque do Fazendeiro, e com as Irmãs, que eram o almanaque ambulante de Gatlin, o condado não passava por tamanha onda de calor desde 1942. Mas não tinha sido o sol que matara as azaleias da Sra. Asher.
— Não estão queimadas. Estão cobertas de gafanhotos pretos.
Link botou a cabeça para fora da janela para ver melhor.
— Não acredito.
Os gafanhotos tinham aparecido em grupos. Três semanas depois de Lena ter se Invocado e duas semanas depois da pior onda de calor em 70 anos. Não eram como os gafanhotos verdes comuns, como os que Amma encontrava na cozinha de vez em quando. Eram pretos, com uma linha amarela ameaçadora nas costas, e viajavam em grandes grupos. E se assemelhavam aos grilos, devorando cada centímetro de verde da cidade, o que incluía o General’s Green. A estátua do general Jubal A. Early estava no meio de um círculo marrom de grama morta, com a espada em riste e coberto com um exército preto todo seu.
Link acelerou um pouco.
— Que nojento. Minha mãe acha que são uma das pragas do apocalipse. Está esperando que os sapos apareçam e que a água fique vermelha.
Pela primeira vez, eu não podia criticar a Sra. Lincoln. Em uma cidade construída sobre partes iguais de religião e superstição, era difícil ignorar uma infestação inédita de gafanhotos que tinham caído sobre Gatlin como uma nuvem negra. Todo dia era no estilo Fim dos Dias. E eu não ia bater na porta da Sra. Lincoln para confessar que era mais provável que fosse a consequência de minha namorada Conjuradora ter partido a Lua e desestabilizado a Ordem das Coisas. Estávamos tendo dificuldade em convencer a mãe de Link de que o novo físico dele não era resultado de esteroides. Ele já tinha ido duas vezes ao consultório do Dr. Asher naquele mês.
Quando entramos no estacionamento, Lena já estava lá, e mais uma coisa tinha mudado. Ela não estava dirigindo o Fastback do primo Larkin. Estava parada ao lado do rabecão de Macon, com uma camiseta vintage do U2 com a palavra WAR escrita no alto, uma saia cinza e o All-Star velho. Estava recém-pintado com caneta permanente preta na ponta. Era uma loucura o quanto um rabecão e um par de tênis podiam alegrar um cara.
Um milhão de pensamentos passaram pela minha cabeça. Que quando ela me olhou parecia que não havia mais ninguém no mundo. Que quando olhei para ela, reparei em cada detalhe, enquanto todo o resto desapareceu. Que eu só era eu mesmo quando estávamos juntos.
Era impossível colocar em palavras, e mesmo que eu conseguisse, não teria certeza se as palavras seriam as certas. Mas eu não precisava tentar, porque Lena e eu nunca precisávamos dizer as coisas que sentíamos. Nós podíamos apenas pensá-las, e o Kelt cuidava do resto.
Oi.
Por que você demorou tanto?
Saí do banco do passageiro, e as costas da minha camiseta já estavam cobertas de suor. Link parecia imune ao calor, outra vantagem de ser parte Incubus. Eu me aproximei de Lena e inspirei seus perfumes.
Limão e alecrim. O aroma que segui pelos corredores da Jackson antes de vê-la pela primeira vez. O que nunca tinha desaparecido, mesmo quando ela foi para as trevas, para longe de mim.
Eu me inclinei com cuidado para beijá-la, sem encostar em nenhuma outra parte do seu corpo. Atualmente quanto mais nos tocávamos, menos eu conseguia respirar. Os efeitos físicos de tocá-la tinham se intensificado, e, embora eu tentasse esconder, Lena sabia.
Senti o choque assim que nossos lábios se encontraram. A doçura do beijo era tão perfeita, e o choque contra a pele era tão poderoso, que minha cabeça sempre ficava girando. Mas agora havia outra coisa: a sensação de que ela estava inspirando minha respiração sempre que nossos lábios se tocavam, puxando uma corda invisível que eu não podia controlar. Lena arqueou o pescoço e se afastou, antes que eu conseguisse me mexer.
Depois.
Suspirei, e ela me jogou um beijo.
Mas L, já faz…
Nove horas inteiras?
É.
Sorri para ela, e ela balançou a cabeça.
Não quero que você passe o primeiro dia de aula na enfermaria.
Lena estava mais preocupada comigo do que eu mesmo. Se alguma coisa me acontecesse (o que era uma possibilidade real, pois estava ficando mais difícil beijá-la e mais difícil ainda ficar longe), eu não me importaria. Não podia suportar a ideia de não a tocar. As coisas estavam mudando. Aquela sensação, a dor que não era dor, ainda estava presente quando estávamos longe. Deveria haver um nome para isso, a dor perfeita que eu sentia em lugares vazios que ela costumava preencher.
Existe uma palavra para descrever isso? Dor no coração, talvez? Foi assim que criaram essa expressão? Só que eu sentia na barriga, na cabeça, no corpo inteiro. Eu via Lena quando estava olhando através das janelas ou fitando as paredes.
Tentei me concentrar em uma coisa que não doesse.
— Gostei do carro novo.
— Você quer dizer do velho? Ridley deu um chilique porque não queria andar de rabecão.
— Onde está Rid? — Link já estava procurando no estacionamento.
Lena apontou para o rabecão atrás dela.
— Está lá dentro, mudando de roupa.
— Ela não pode mudar em casa, como uma pessoa normal? — perguntei.
— Eu ouvi isso, Palitinho — gritou Ridley de dentro do carro. — Não sou… — Uma bola de tecido amassado voou pela janela do motorista e caiu no asfalto quente. — Uma pessoa normal. — Ela falou como se normal fosse uma doença. — E não vou usar essa porcaria produzida em massa e comprada no shopping. — Ridley estava se contorcendo e o assento de couro gemia enquanto vislumbres de cabelo louro e rosa apareciam e sumiam. Um par de sapatos prateados saiu voando pela janela. — Pareço uma apresentadora do Disney Channel.
Eu me inclinei e peguei a peça ofensiva. Era um vestido curto e estampado de uma cadeia de lojas do shopping de Summerville. Era uma variação do mesmo vestido que Savannah Snow, Emily Asher, Eden Westerly e Charlotte Chase (as rainhas da equipe de líderes de torcida) e, portanto, metade das garotas de Jackson High usava.
Lena revirou os olhos.
— Vovó decidiu que Ridley precisava se vestir de maneira mais apropriada, agora que vai frequentar uma escola Mortal. — Lena baixou a voz. — Como Mortal, sabe.
— Eu ouvi! — Um top branco saiu voando pela janela. — Só porque sou uma Mortal nojenta, não quer dizer que tenho de me vestir como uma. — Lena olhou por cima do ombro e se afastou do carro. Ridley saiu do rabecão e ajustou a nova roupa, uma camiseta rosa-shocking e um pedaço de tecido preto que ela usava como saia. A camiseta era toda recortada e presa com alfinete em alguns pontos, e ficava caída de um dos lados, deixando os ombros à mostra.
— Acho que você nunca vai se parecer com uma Mortal, gata. — Desconfortável, Link puxou a própria camiseta, que parecia ter encolhido quando a mãe dele a lavou.
— Agradeço a Deus pelos pequenos favores. E não me chame de gata. — Ridley pegou o vestido entre dois dedos. — Devíamos dar isso pra caridade. Talvez possam vender como fantasia de Halloween.
Lena olhou para a fivela do cinto presa ao redor da cintura de Ridley.
— Falando em caridade, o que é isso?
— O quê? Essa coisa velha? — Era uma fivela enorme presa a um cinto preto de couro surrado, com uma espécie de inseto preso em uma pedra, ou um pedaço de plástico, algo assim. Acho que era um escorpião. Era apavorante e estranho, e a cara de Ridley. — Só estou tentando me encaixar no ambiente. — Ridley sorriu e estourou uma bola de chiclete. — Você sabe. Todos os adolescentes legais estão usando. — Sem o pirulito característico, ela ficava tão mal-humorada quanto meu pai quando Amma dava café descafeinado para ele.
Lena não respondeu.
— Você vai ter de mudar de roupa antes de voltarmos pra casa, senão vovó vai perceber o que você está fazendo.
Ridley a ignorou e largou o vestido emaranhado no asfalto quente e depois pisou nele com as sandálias de salto altíssimo.
Lena suspirou e esticou a mão. O vestido voou em direção aos dedos dela, mas antes de alcançá-los, começou a pegar fogo. Lena puxou a mão, e o vestido caiu no chão com as beiradas já queimadas.
— Puta merda! — Link pisou no tecido até não haver nada além de uma confusão preta e fumegante. Lena ficou vermelha.
Ridley estava impassível.
— Muito bem, prima. Eu não teria feito melhor.
Lena observou o último filete de fumaça desaparecer.
— Eu não queria…
— Sei. — Ridley parecia entediada.
Os poderes de Lena estavam fora de controle desde que ela tinha se Invocado, o que era perigoso, considerando que ela era tanto da Luz quanto das Trevas. Seus poderes sempre foram imprevisíveis, mas agora podiam provocar qualquer coisa, desde temporais e ventos com intensidade de furacão a incêndios florestais.
Lena suspirou, frustrada.
— Compro outro antes do fim do dia, Rid.
Ridley revirou os olhos e remexeu na bolsa.
— Não me faça nenhum favor. — E colocou os óculos de sol.
— Boa ideia. — Link colocou os óculos pretos e arranhados que tinham sido modernos durante uns dez minutos, quando estávamos no sexto ano. — Vamos curtir, doce de coco.
Elas se viraram em direção à escada, e vi minha chance. Estiquei a mão, peguei o braço de Lena e a puxei para perto de mim. Ela afastou o cabelo castanho, que estava sempre um pouco comprido demais, dos meus olhos e me fitou através dos cílios pretos e grossos. Um olho perfeitamente dourado e outro verde-escuro me encararam. Os olhos dela nunca voltaram a ser como eram antes da noite em que Sarafine chamou a Décima Sétima Lua fora de hora. Ela me fitou com o olho dourado de Conjuradora das Trevas e o verde de Conjuradora da Luz — um lembrete constante do momento em que se deu conta de que possuía os dois tipos de poder. Mas eram também um lembrete de que a escolha dela tinha mudado as coisas tanto no mundo Conjurador quanto no Mortal. E entre nós.
Ethan, não…
Shh. Você se preocupa demais.
Passei os braços ao seu redor, e a sensação daquele corpo queimou pelas minhas veias. Eu podia sentir a intensidade dela enquanto lutava para manter minha respiração regular. Ela mordeu delicadamente meu lábio inferior quando nos beijamos, e fiquei tonto e desorientado em segundos. Para mim, não estávamos de pé no meio do estacionamento. Imagens piscaram na minha mente, e eu só podia estar tendo alucinações, porque agora estávamos nos beijando na água, no lago Moultrie, na minha mesa da aula de inglês, nas mesas do almoço, atrás da arquibancada, no jardim de Greenbrier.
De repente, uma sombra passou por cima de mim, e senti uma coisa que não era provocada pelo beijo. Eu tinha tido a mesma sensação antes, em cima da torre de água, no meu sonho. Uma tontura sufocante tomou conta de mim, e Lena e eu não estávamos mais no jardim. Estávamos cercados de terra, nos beijando em um túmulo aberto.
Eu ia desmaiar.
Quando meus joelhos se dobraram, uma voz cortou o ar e interrompeu nosso beijo, e Lena se afastou.
— Oi, pessoal. Como vocês estão? — falou Savannah Snow.
Caí na lateral do rabecão e deslizei até o chão. Logo senti alguma coisa me puxando, e meus pés mal tocavam o asfalto.
— O que Ethan tem? — disse Savannah.
Abri os olhos.
— Acho que é o calor. — Link sorriu e me colocou no chão.
Lena parecia chocada, mas Ridley parecia pior. Porque Link estava sorrindo como se alguém tivesse acabado de oferecer um contrato com uma gravadora. E esse alguém era Savannah Snow, chefe das líderes de torcida, causadora de queimaduras de terceiro grau de tão gostosa, e o Cálice Sagrado dentre todas as garotas inatingíveis de Stonewall Jackson High.
Savannah ficou ali, apertando os livros contra o peito com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Estava usando um vestido quase idêntico ao que Ridley tinha jogado no chão segundos antes. Emily Asher estava atrás dela, usando sua própria versão da roupa de Savannah, com ar confuso. Savannah deu um passo para mais perto de Link, mantendo apenas os livros entre os dois.
— O que eu realmente quis dizer foi como você está.
Link passou a mão com nervosismo pelo cabelo e deu um passo para trás.
— Estou bem. E você?
Savannah balançou o rabo de cavalo louro e mordeu o lábio inferior de maneira sugestiva, com o gloss labial rosa grudento derretendo no sol.
— Nada de novo. Só queria saber se você vai ao Dar-ee Keen depois da aula. Quem sabe você pode me dar carona.
Emily pareceu tão surpresa quanto eu. Era mais fácil Savannah abrir mão do posto na equipe de líderes de torcida do que concordar em andar no carro enferrujado de Link. Como acompanhar Savannah era um dos requisitos de ser o braço direito dela, Emily se manifestou.
— Savannah, temos carona. Earl vai nos levar, lembra?
— Você vai com Earl. Acho que prefiro ir com Link. — Savannah ainda estava olhando para Link como se ele fosse um astro do rock.
Lena balançou a cabeça para mim.
Eu falei. É o efeito John Breed. Nada mau para alguém que é um quarto Incubus. Não podemos esperar que uma garota Mortal não sinta.
Isso era até pouco.
Só garotas Mortais, L?
Ela fingiu não entender o que eu quis dizer.
Nem todas as garotas Mortais. Olhe…
Ela estava certa. Link não parecia estar exercendo o mesmo efeito em Emily. Quanto mais Savannah lambia os lábios, mais enojada Emily parecia.
Ridley segurou o braço de Link e o puxou para longe de Savannah.
— Ele está ocupado hoje à tarde, querida. Você devia ouvir sua amiga. — Os olhos dela não eram mais amarelos, mas Ridley era tão intimidante quanto na época em que era Conjuradora das Trevas.
Savannah não pensava assim ou não ligava.
— Ah, desculpe. Vocês dois estão juntos? — Fez uma pausa por um segundo, parecendo pensativa. — Não. É isso, não estão.
Qualquer pessoa que tenha passado um tempo no Dar-ee Keen sabia que o relacionamento vai e volta de Ridley e Link estava rompido no momento. Savannah pegou o outro braço de Link. Um desafio.
— Acho que isso significa que Link pode decidir sozinho.
Link se soltou das duas e passou os braços por cima dos ombros de ambas.
— Senhoritas, senhoritas. Não precisam brigar. Tem o bastante aqui pra todo mundo. — Inflou o peito, embora já estivesse bem grande. Normalmente, eu riria com a ideia de duas garotas brigando por Link, só que não eram duas garotas quaisquer. Estávamos falando de Savannah Snow e Ridley Duchannes. Sobrenaturais ou não, eram as duas Sirenas mais poderosas que a humanidade já tivera a sorte (ou o azar) de encontrar, dependendo de como usavam seus poderes de persuasão.
— Savannah, venha. Assim vamos nos atrasar pra aula. — Emily parecia enojada. Eu me perguntei por que o magnetismo de Incubus de Link não funcionava com ela.
Savannah se aproximou mais dele.
— Você deveria encontrar um cara mais… — Ela olhou para Ridley e para a camiseta cheia de alfinetes. — Mais como você.
Ridley se soltou do braço de Link.
— E você deveria ver bem com quem fala assim, Barbie. — Savannah tinha sorte de Ridley não ter mais poderes.
Isso vai ficar feio, L.
Não se preocupe. Não vou deixar Rid ser expulsa no primeiro dia. Não vou dar essa satisfação ao diretor Harper.
— Ridley, vamos. — Lena andou até ela e parou ao lado da prima. — Ela não vale a pena. Acredite.
Savannah estava prestes a responder quando algo a distraiu. Ela torceu o nariz.
— Seus olhos… São de cores diferentes. Qual é o seu problema?
Emily chegou perto para ver melhor. Era uma questão de tempo até que alguém reparasse nos olhos de Lena. Era impossível não perceber. Mas eu tinha tido a esperança de que não seria no estacionamento que a fofoca começaria a se espalhar.
— Savannah, por que você não…
Lena me interrompeu antes que eu pudesse terminar.
— Eu te faria a mesma pergunta, mas todos sabemos a resposta.
Ridley cruzou os braços.
— Vou dar uma dica. Começa com V e rima com vaca.
Lena virou de costas para Savannah e Emily, e começou a andar em direção à escada quebrada da Jackson. Segurei a mão dela e senti a energia pulsando por meu braço. Imaginava que Lena ficaria abalada depois de encarar Savannah, mas estava calma. Alguma coisa tinha mudado, e era mais do que seus olhos. Acho que, depois de você encarar uma Conjuradora das Trevas que, por acaso, também é sua mãe, e um Incubus de Sangue de 150 anos tentando te matar, algumas líderes de torcida não são tão intimidantes.
Tudo bem?
Lena apertou minha mão.
Estou bem.
Eu podia ouvir os sapatos de Ridley estalando no concreto atrás de nós. Link correu até o meu lado.
— Cara, se isso é o que vem por aí, esse ano vai ser demais.
Tentei me convencer de que ele estava certo ao cruzarmos a grama marrom, com gafanhotos mortos estalando debaixo dos nossos pés.