13 DE DEZEMBRO

O dia depois do sempre

— Aquilo foi real? — sussurrou Lena. Apontei para as portas, onde havia fumaça saindo de debaixo da madeira.

Segurei Marian e a abracei, na mesma hora em que Liv. Eu me afastei constrangido, e Lena tomou meu lugar.

— Obrigada — sussurrou Marian.

Macon colocou a mão no braço de John.

— Não consigo decidir se foi um ato brilhante de puro altruísmo lá dentro ou se foi simplesmente uma tentativa de conseguir todos os poderes para você.

John deu de ombros.

— Reparei que você não encostou em mim. — Eu me lembrei do punho da camisa de Macon puxado por cima da mão.

— Você não está pronto para compartilhar meu poder. Seja como for, estou em grande débito com você. Mostrou muita coragem lá. Não vou esquecer tão cedo.

— Ah, pare com isso. Aqueles caras eram uns babacas. Não foi nada. — Foi se afastando de Macon, mas vi o orgulho no rosto dele. E vi no rosto de Liv ainda mais claramente.

Marian segurou o braço de Macon, e ele começou a andar com ela pelo túnel. Na velocidade em que estavam caminhando, mesmo a pequena distância do túnel de terra seria uma longa jornada.

— Isso é ridículo — disse John, e todos sumimos no ar.

Em segundos, estávamos no escritório de Macon.

— Quais são os poderes de Angelus exatamente? — Eu ainda estava tentando entender o que tínhamos testemunhado.

— Não sei, mas ele não parecia querer que descobríssemos. — Macon estava pensativo.

— É. Ele nos tirou de lá bem rápido. Não cheguei a tocar nele — disse John.

— Me sinto péssima. Vocês acham que incendiei aquele salão antigo e lindo? — Lena estava perdida em um pensamento completamente diferente.

John riu.

— Não, fui eu.

— É um salão mau — disse Macon. — Só podemos torcer para que sim.

— Por que aquele cara, Angelus, se envolveria tanto com esse caso? O que isso poderia ser, uma página de As Crônicas Conjuradoras? — perguntou John.

Macon ajudou Marian a se sentar em uma cadeira.

— Ele odeia Mortais.

Ela ainda estava tremendo. Macon pegou um cobertor do pé da cama e o enrolou no corpo dela. Eu me lembrei de Marian fazendo a mesma coisa com as Irmãs, na noite do ataque de Tormentos. Os mundos, eles não eram mais dois universos separados, Conjurador e Mortal. Tudo estava desmoronando e se unindo agora.

As coisas não podiam ficar assim, não por muito tempo.

Liv puxou a cadeira para o lado de Marian e passou os braços ao redor dela. Lena mexeu o dedo na direção da lareira de Macon. Chamas surgiram na lenha, chegando a 3 metros. Pelo menos, não era chuva.

— Talvez não seja só ele. Talvez seja Abraham. — John suspirou. — Ele não desiste com facilidade.

Macon franziu a testa.

— Interessante. Angelus e Abraham. Um objetivo comum, talvez?

Liv falou.

— Você está sugerindo que os Guardiões estão de conluio com Abraham? Porque isso é muito errado, em vários níveis. Não pode ser verdade.

John esquentou as mãos na frente do fogo.

— Alguém reparou em quantos Conjuradores das Trevas havia naquele salão?

— Reparei no que você chutou na cabeça. — Sorri.

— Aquilo foi sem querer. — John deu de ombros.

Macon balançou a cabeça.

— Seja como for, o veredito foi dado. Temos uma semana pra achar um jeito, antes… — Todos olhamos para Marian. Ela estava em choque, isso era claro. Com os olhos fechados, ela apertou o cobertor em volta dos ombros e se balançou. Acho que estava revivendo tudo.

Macon balançou a cabeça.

— Hipócritas.

— Por quê? — perguntei.

— Tenho minhas próprias desconfianças sobre o que o Registro Distante está tramando e não posso dizer que tenha a ver com manter a paz. O poder muda as pessoas. Acho que talvez não sejam mais os líderes com princípios que eram antes. — Macon teve dificuldade em esconder a decepção no rosto.

E a exaustão. Estava disfarçando bem, mas parecia não dormir havia dias. E agora que dormia, sempre ficava surpreso de ver que ele precisava de tanto sono quanto todos nós.

— Mas Marian voltou conosco, sã e salva. — Ele colocou a mão no ombro dela. Ela não olhou para cima.

— Por enquanto. — Eu queria voltar, derrubar a Temporis Porta e dar uma surra em todo mundo naquele salão. Não suportava ver Marian daquele jeito.

Macon se sentou na cadeira ao lado dela.

— Por enquanto. E isso é tudo que posso dizer de qualquer um de nós atualmente. Temos uma semana até a sentença, já que ela foi declarada culpada de traição. Deveria demorar mais para uma Declaração de Perfidia ter efeito. Não vou deixar mais nada acontecer a ela, Ethan. Isso é mais do que uma promessa.

Liv desmoronou à mesa do escritório, inconsolavelmente infeliz.

— Se alguém vai se certificar de que nada aconteça a Marian, sou eu. Se eu não tivesse ido com vocês… se tivesse ficado na biblioteca, como deveria…

— Agora quem é a garota Conjuradora emo? — Lena cutucou Liv no braço. — Isso é privilégio meu. Você tem de ser a loura inteligente e alegre, lembra?

— Que grosseria minha. Peço desculpas. — Liv sorriu, e Lena retribuiu o sorriso, passando o braço ao redor de Liv, como se as duas fossem amigas. Acho que, de certa forma, eram. Atualmente, estávamos unidos pela ameaça comum ao nosso destino. Porque a Décima Oitava Lua estava quase chegando, e nenhum de nós tinha respostas.

John se sentou ao lado de Liv com atitude protetora.

— Não é sua culpa. — Ele me lançou um olhar de reprovação. — É dele.

Amizade, que nada.

Fiquei de pé.

— Precisamos levar tia Marian pra casa.

Pela primeira vez, ela olhou para mim.

— Eu… não consigo.

Entendi. Ela não iria querer dormir sozinha tão cedo. Era a primeira noite que Liv e Marian estavam sob o mesmo teto novamente, só que desta vez era no quarto de Liv, e o teto era o dos túneis. Eu me perguntei se Conjuros de Disfarce funcionavam contra Guardiões também. Esperava que sim.

Só havia um lugar aonde podíamos ir, por mais que nossos mundos estivessem fugindo do controle. O lugar onde tudo tinha começado para mim e Lena. O lugar que era nosso.

Na manhã seguinte ao julgamento de Marian, fomos procurá-lo de novo.

O jardim decadente de Greenbrier ainda estava preto e queimado, mas dava para ver onde a grama estava começando a crescer. Mas os pequenos caules não eram verdes. Eram marrons, como tudo mais no Condado de Gatlin. As paredes invisíveis que protegiam Ravenwood de ser consumida não chegavam até ali.

Ainda assim, era nosso lugar. Caminhei com Lena pelo jardim até a pedra onde encontramos o medalhão de Genevieve. Tudo parecia ter acontecido anos atrás, e não no ano passado.

Lena se sentou na pedra e me puxou para o lado dela.

— Você lembra como era bonito aqui?

Olhei para ela, a garota mais bonita que já vi.

— Ainda é.

— Você pensa em como seria, se tudo isso sumisse? Se não conseguirmos resolver a situação, e não houver Nova Ordem?

Eu quase não pensava em mais nada, além do calor, de insetos e lagos secos. O que viria depois? Uma inundação?

— Não sei se faria diferença. Talvez nós também sumíssemos e nem percebêssemos nada.

— Acho que nós dois já vimos bastante do Outro Mundo para saber que isso não é verdade. — Ela sabia que eu estava tentando fazê-la se sentir melhor. — Quantas vezes você viu sua mãe? Ela sabe o que está acontecendo, talvez melhor do que ninguém.

Não havia nada que eu pudesse dizer. Lena estava certa, mas não podia deixá-la carregar o peso de tudo isso sozinha.

— Você não fez isso de propósito, L.

— Não sei se isso me faz sentir melhor por destruir o mundo.

Puxei-a contra meu peito e senti o ritmo suave dos batimentos dela.

— O mundo não foi destruído. Ainda não.

Ela puxou a grama seca.

— Mas a vida de alguém vai ser. Aquele que É Dois tem de ser sacrificado para criar a Nova Ordem. — Nenhum de nós conseguia esquecer, apesar de não termos chegado nem perto de descobrir quem era.

E se a Décima Oitava Lua realmente fosse no aniversário de John, então teríamos cinco dias para encontrar essa pessoa. A vida de Marian, e de todos nós, estava em risco.

Ele.

Ela.

Podia ser qualquer pessoa.

Fosse quem fosse, eu me perguntei o que estava fazendo agora, se fazia ideia. Talvez não estivesse preocupado. Talvez fosse pego de surpresa.

— Não se preocupe. John conseguiu um tempo pra nós. Vamos pensar em alguma coisa. — Ela sorriu. — Foi legal vê-lo fazer uma coisa por nós em vez de contra nós.

— É. Se é que foi isso que ele fez. — Não sei por quê, mas ainda não conseguia parar de implicar com ele. Mesmo com Lena disposta a dar uma segunda chance a Liv.

— O que isso quer dizer? — Lena pareceu irritada.

— Você ouviu Macon. E se ele estava usando a oportunidade pra sugar todos os poderes dele?

— Não sei. Talvez tenhamos de ter fé.

Eu não queria fazer isso.

— Por que deveríamos?

— Porque as pessoas mudam. As coisas mudam. Tudo e todo mundo que conhecemos mudarem.

— E se eu não quiser? — Eu não queria.

— Não importa. A gente muda independentemente de querer.

— Algumas coisas não — falei. — Não decidimos como o mundo funciona. A chuva cai pra baixo, não pra cima. O sol nasce no leste e se põe no oeste. É assim que as coisas são. Por que esse conceito é tão difícil pra vocês Conjuradores entenderem?

— Acho que somos meio desesperados por controle.

— Você acha?

O cabelo de Lena se encaracolou.

— É difícil não fazer as coisas quando você pode fazê-las. E, na minha família, não há muito que não possamos fazer.

— É mesmo? — Eu a beijei.

Ela sorriu sob meus lábios.

— Cale a boca.

— É difícil não fazer isso? — Beijei o pescoço dela. A orelha. Os lábios.

— E isso? — Ela abriu a boca para reclamar, mas não saiu nada.

Nós nos beijamos até meu coração estar saltando. Mesmo então, não tenho certeza se teríamos parado, mas paramos.

Porque ouvi um barulho de coisa rasgando.

O tempo e o espaço se abriram. Vi a ponta da bengala quando Abraham Ravenwood saiu de um buraco no céu, com o ar se fechando depois que passou.

Estava usando um terno escuro e a cartola, o que o fazia parecer pai de Abraham Lincoln.

— Ouvi alguma coisa sobre a Nova Ordem? — Tirou o chapéu e bateu na ponta, limpando uma poeira inexistente. — Acontece que ela rompida é perfeita para mim. E tenho certeza de que meu garoto John vai pensar do mesmo jeito quando voltar para o lugar dele.

Antes de eu ter chance de responder, ouvi o som de passos na terra. Um segundo depois, vi as botas dela.

— Eu preciso concordar. — Sarafine estava do lado de fora do arco de pedra, com o cabelo preto tão encaracolado e selvagem quanto o de Lena. Embora estivesse fazendo 37 °C, ela estava usando um vestido preto longo com tiras cruzando o corpo. Parecia uma camisa de força.

Lena…

Ela não respondeu, mas eu conseguia sentir seu coração batendo.

Os olhos dourados de Sarafine se fixaram em mim.

— O mundo Mortal está em um estado de belo caos e destruição, que vai acabar levando a um final requintado. Nós não conseguiríamos ter planejado isso melhor. — Era fácil para ela falar, pois o plano original tinha falhado.

Havia alguma coisa de arrepiante em ver Sarafine aqui depois de observá-la incendiar o lar da infância de Lena com ela e o pai ainda dentro. Mas também era impossível afastar as imagens da garota, não muito mais velha do que Lena, lutando contra as Trevas dentro dela e perdendo.

Puxei Lena para que se levantase, e a mão dela queimou a minha no momento em que a pele dela tocou na minha palma.

Lena, estou bem aqui com você.

Eu sei.

A voz dela soou vazia.

Sarafine sorriu para Lena.

— Minha filha estragada e parcialmente nas sombras. Eu adoraria dizer que é ótimo ver você de novo, mas seria mentira. E posso não ser nada, mas sou honesta.

A cor tinha sumido do rosto de Lena, e ela estava tão parada que eu quase não tinha certeza se estava respirando.

— Então acho que você não é nada, mãe. Porque nós duas sabemos que você é uma mentirosa.

Sarafine flexionou os dedos.

— Você sabe o que dizem sobre telhados de vidro e pedras. Eu não jogaria nenhuma se fosse você, querida. Você está olhando pra mim com um olho dourado.

Lena fez uma careta, e o vento começou a soprar.

— Não é a mesma coisa — falei. — Lena tem Luz e Trevas dentro dela.

Sarafine balançou a mão como se eu fosse um inseto irritante, um gafanhoto tentando sair da luz do sol.

— Existe Luz e Trevas dentro de todos nós, Ethan. Você ainda não aprendeu isso?

Um arrepio subiu pela minha espinha.

Abraham se apoiou na bengala.

— Fale por você, querida. O coração desse velho Incubus é tão negro quanto o piche do inferno.

Lena não estava interessada no coração de Abraham e nem na ausência de um em Sarafine.

— Não sei o que vocês querem e não ligo. Deviam ir embora antes que tio Macon pressinta que estão aqui.

— Infelizmente, não podemos fazer isso. — Os olhos vazios e pretos de Abraham estavam fixos em Lena. — Temos negócios a resolver.

Cada vez que eu ouvia a voz dele, a fúria crescia dentro de mim. Eu o odiava pelo que tinha feito a tia Prue.

— Que tipo de negócios? Destruir a cidade toda?

— Não se preocupe, logo chego a essa parte. — Abraham tirou um relógio de bolso de ouro polido do casaco e olhou para ele. — Mas primeiro temos de matar Aquele que É Dois.

Como ele sabe quem é, L?

Não use Kelt. Ela consegue ouvir você.

Segurei a mão de Lena com força e senti minha pele formar uma bolha.

— Não sabemos do que você está falando.

— Não minta para mim, garoto! — Ele ergueu a bengala em uma das mãos e apontou para mim. — Você achou que não descobriríamos?

Sarafine estava olhando nos olhos de Lena. Ela não os tinha visto na noite em que chamou a Décima Sétima Lua. Estava trancada em uma espécie de estado de sonhos de Conjuradora das Trevas.

— Temos O Livro das Luas, afinal.

Um trovão ribombou no ar, mas mesmo com a raiva que sentia Lena não conseguiu fazer chover.

— Podem ficar com o Livro. Não precisamos dele para estabelecer a Nova Ordem.

Abraham não gostava de ser desafiado, principalmente por uma Conjuradora que era metade da Luz.

— Não. Você está certa, garotinha. Você precisa d’Aquele que É Dois. Mas não vamos deixar você se sacrificar. Vamos matar você primeiro.

Forcei meus pensamentos para a parte da minha mente que conseguia esconder de Lena, porque, se ela soubesse o que eu estava pensando, Sarafine também saberia. Mesmo naquela parte particular da minha mente, o mesmo pensamento ficava lutando para sair.

Eles achavam que Aquele que É Dois era Lena.

E iam matá-la.

Tentei colocá-la atrás de mim. Mas, assim que me mexi, Abraham esticou a mão e a elevou no ar. Meus pés se afastaram do chão, e fui jogado para trás, sentindo uma pressão forte ao redor do meu pescoço. Abraham começou a fechar a mão, e a luva invisível se apertou ainda mais.

— Você me deu problemas suficientes para duas vidas. Isso acaba aqui.

— Ethan! — gritou Lena. — Deixe-o em paz!

Mas a mão só apertou mais. Eu a sentia começando a esmagar minha traqueia. Meu corpo estava se debatendo e tremendo, e me lembrei de John quando ele estava nos túneis com Lena. Das estranhas contorções e tremores que ele parecia incapaz de controlar.

Era assim estar sob o controle de Abraham Ravenwood?

Lena começou a correr em minha direção, mas Sarafine mexeu os dedos, e um círculo perfeito de fogo surgiu ao redor de Lena. Isso me fez lembrar do pai dela, parado em meio às chamas enquanto Sarafine o via queimar até a morte.

Lena abriu a mão e esticou a palma para a frente, e Sarafine voou para trás. Bateu no chão com força e escorregou pela terra com mais rapidez do que era humanamente possível.

Ela ficou de pé e limpou o vestido sujo com as mãos sangrentas.

— Alguém andou praticando. — Sarafine sorriu. — Eu também.

Ela girou a mão em círculo à frente do corpo, e um segundo anel de fogo cercou o primeiro.

Lena! Saia daí!

Não consegui dizer as palavras. Não tinha ar suficiente.

Sarafine avançou.

— Não vai haver Nova Ordem. O universo já trouxe as Trevas para o mundo Mortal. Mas as coisas vão piorar. — Um relâmpago partiu o céu azul da Carolina e caiu no velho arco de pedra, reduzindo-o a escombros.

Os olhos amarelo-dourados de Sarafine estavam brilhando, e os olhos dourado e verde de Lena começaram a brilhar também. As chamas do círculo externo ao redor de Lena estavam se espalhando, chegando ao círculo interno.

— Sarafine! — gritou Abraham. — Chega dessas brincadeiras. Mate-a, senão eu mato.

Sarafine andou na direção de Lena, com o vestido voando ao redor dos tornozelos. Os Quatro Cavaleiros não perdiam em nada para ela. Ela era fúria e vingança, ira e malícia, em uma forma humana lindamente distorcida.

— Você me envergonhou pela última vez.

O céu começou a escurecer acima de nós, formando uma nuvem preta densa.

Tentei me afastar do toque sobrenatural, mas cada vez que eu me mexia, Abraham apertava mais a mão, e a força ao redor do meu pescoço aumentava. Era difícil forçar meus olhos a ficarem abertos. Eu ficava piscando, tentando não desmaiar.

Lena abriu as mãos em cima do fogo, e o círculo se afastou dela. As chamas não diminuíram, mas se afastaram sob o comando de Lena.

A nuvem preta seguiu Sarafine e se revirou acima dela. Pisquei com mais força e tentei me concentrar. Percebi que não era uma nuvem de tempestade atrás dela.

Era um enxame de Tormentos.

Sarafine gritou acima do som do fogo:

— No primeiro dia, havia Matéria Negra. No segundo, o Abismo do qual, no terceiro dia, o Fogo Negro surgiu. No quarto dia, da fumaça e das chamas, todo o Poder nasceu. — Ela parou bem do lado de fora do círculo ardente. — No quinto, a Lilum, a Rainha Demônio, emergiu das cinzas. E no sexto, veio a Ordem para equilibrar a energia que não conhecia limites.

O cabelo de Sarafine começou a queimar no fogo.

— No sétimo, havia um livro.

O Livro das Luas apareceu no chão na frente dela, com as páginas virando sozinhas. Elas pararam abruptamente, e o livro ficou aberto aos pés de Sarafine, imune às chamas.

Sarafine começou a recitar de memória.

DAS VOZES DAS TREVAS EU VENHO.
DOS FERIMENTOS DOS MORTOS EU NASCI.
DO DESESPERO QUE EU TRAGO, SOU INVOCADA.
DO CORAÇÃO DO LIVRO, OUÇO O CHAMADO.
QUANDO EU PROCURAR A VINGANÇA DELE,

ELA SERÁ ATENDIDA.”

Assim que ela falou a última palavra, o fogo se abriu e criou um caminho pelo centro das chamas.

Vi Sarafine levantar as mãos à frente do corpo e fechar os olhos. Mexeu os dedos abertos das duas mãos, e o fogo brilhou nas pontas. Mas o rosto dela se contorceu em confusão. Alguma coisa não estava certa.

Os poderes dela não estavam funcionando.

As chamas nunca saíram dos dedos dela, e as fagulhas caíram e lhe queimaram o vestido.

Lutei com o resto de força que tinha em mim. Eu ia perder a consciência. Ouvi uma voz em um canto remoto da mente. Não era Lena nem a Lilum, nem mesmo Sarafine. Era um sussurro repetido e tão baixo que não conseguia ouvir.

O toque da morte ao redor do meu pescoço afrouxou, mas, quando olhei para Abraham, a posição da mão dele não tinha mudado. Ofeguei e inspirei tão rápido que engasguei. As palavras na minha cabeça estavam ficando mais altas.

Duas palavras.

ESTOU ESPERANDO.

Vi o rosto dele, meu rosto, por uma fração de segundo. Era minha outra metade, minha Alma Fraturada. Estava tentando me ajudar.

A mão invisível foi arrancada do meu pescoço, e o ar invadiu meus pulmões. A expressão de Abraham era uma mistura de choque, confusão e fúria.

Cambaleei quando saí correndo em direção a Lena, ainda tentando recuperar o fôlego. Quando cheguei perto do círculo em chamas, Sarafine estava presa dentro de outro, segurando a barra do vestido queimado.

Parei a alguns metros de distância. O calor estava tão intenso que não consegui chegar mais perto. Lena estava de pé na frente de Sarafine, do outro lado do círculo de chamas. O cabelo dela estava queimado do calor, e o rosto, preto de fuligem.

A nuvem de Tormentos estava se afastando dela e indo em direção a Abraham. Ele observava, mas não estava ajudando Sarafine.

— Lena! Me ajude! — gritou Sarafine, ficando de joelhos. Ela parecia tanto com Izabel na noite em que foi Invocada, aos pés da mãe. — Eu nunca quis machucar você. Nunca quis nada disso.

O rosto preto de Lena estava cheio de ira.

— Não. Você me queria morta.

Os olhos de Sarafine estavam lacrimejando por causa da fumaça, o que quase fez parecer que ela estava chorando.

— Minha vida nunca aconteceu de acordo com o que eu queria. Minhas escolhas foram feitas por mim. Tentei muito lutar contra as Trevas, mas não fui forte o bastante. — Ela tossiu, tentando afastar a fumaça. Com o rosto manchado e os olhos inchados e vermelhos, o dourado deles era difícil de ver. — Você sempre foi a forte, mesmo quando bebê. Foi assim que sobreviveu.

Reconheci a confusão nos olhos de Lena. Sarafine era vítima da maldição que Lena temeu a vida toda, a maldição que a tinha poupado. Era essa pessoa quem a mãe dela podia ter sido?

— O que você quer dizer, como sobrevivi?

Sarafine tossiu, e a fumaça negra rodopiou ao redor dela.

— Houve uma tempestade terrível, e a chuva apagou o fogo. Você se salvou. — Ela pareceu aliviada, como se não tivesse deixado Lena para morrer.

Lena olhou para a mãe.

— E hoje você ia terminar o que começou.

Uma brasa caiu no vestido de Sarafine, e ele pegou fogo de novo. Ela bateu no tecido queimado com a mão nua até apagar. Ergueu os olhos para se concentrar nos de Lena.

— Por favor. — A voz dela estava tão rouca que foi difícil ouvir. Ela esticou a mão na direção de Lena. — Eu não ia machucar você. Só precisava fazer com que ele acreditasse que iria.

Ela estava falando de Abraham, aquele que atraíra a mãe de Lena para as Trevas, e que estava ali de pé a vendo queimar.

Lena estava balançando a cabeça com lágrimas descendo pelo rosto.

— Como posso confiar em você? — Mas quando falou, as chamas começaram a morrer no espaço entre elas.

Lena começou a esticar a mão.

As pontas dos dedos dela estavam a alguns centímetros.

Pude ver as queimaduras no braço de Sarafine quando ela esticou a mão para Lena.

— Sempre amei você, Lena. Você é minha garotinha.

Lena fechou os olhos. Era difícil olhar para Sarafine, com o cabelo queimado e a pele com bolhas. Devia ser ainda mais difícil se ela era sua mãe.

— Eu queria poder acreditar em você…

— Lena, olhe pra mim. — Sarafine pareceu estar desmoronando. — Vou amar você até o dia depois do sempre.

Eu me lembrei das palavras da visão. A última coisa que Sarafine disse para o pai de Lena antes de abandoná-lo à morte. “Vou amar você até o dia depois do sempre.”

Lena também lembrou.

Vi o rosto dela se contorcer de agonia quando puxou a mão.

— Você não me ama. Você não é capaz de amar.

O fogo aumentou onde tinha baixado um minuto antes, prendendo Sarafine. Ela estava sendo consumida pelas chamas que havia controlado, com os poderes imprevisíveis como os de qualquer Conjurador.

— Não! — gritou Sarafine.

— Sinto muito, Izabel — sussurrou Lena.

Sarafine deu um pulo para a frente e encostou a manga do vestido no fogo.

— Sua putinha! Eu queria que você tivesse morrido queimada como seu pai infeliz! Vou encontrar você na próxima vida…

Mas os gritos foram aumentando quando as chamas tomaram o corpo de Sarafine em questão de segundos. Foi pior do que os berros apavorantes dos Tormentos. Era o som de dor, morte e infelicidade.

O corpo dela caiu, e as chamas se deslocaram para cima dele como um bando de gafanhotos, não deixando nada além de um fogo furioso. No mesmo momento, Lena ficou de joelhos e olhou para o local onde a mão da mãe estivera um minuto antes.

Lena!

Diminuí a distância entre nós e a arrastei para longe do fogo. Ela estava tossindo, tentando recuperar o fôlego.

Abraham chegou mais perto com a nuvem negra de espíritos demoníacos acima. Puxei Lena para perto de mim enquanto víamos Greenbrier queimar pela segunda vez.

Ele estava de pé à nossa frente, com a ponta da bengala praticamente tocando na ponta derretida do meu tênis.

— Bem, você sabe o que dizem. Se quer que uma coisa seja feita direito, faça você mesmo.

— Você não a ajudou. — Não sei por que falei isso. Eu não me importava de Sarafine estar morta. Mas por que ele não ajudou?

Abraham riu.

— Me poupou o trabalho de matá-la eu mesmo. Ela não valia mais o próprio peso em sal.

Eu me perguntei se Sarafine tinha percebido o quanto era dispensável. O quanto era inútil aos olhos do mestre que servia.

— Mas ela era uma das suas.

— Conjuradores das Trevas não têm nada a ver com a minha espécie, garoto. São como ratos. Tem muitos outros no lugar de onde Sarafine veio. — Ele olhou para Lena, e seu rosto escureceu para acompanhar os olhos vazios. — Quando sua namoradinha estiver morta, me livrar deles vai ser minha próxima tarefa.

Não escute o que ele diz, L.

Mas ela não estava prestando atenção em Abraham. Não estava prestando atenção em ninguém. Soube porque consegui ouvi-la repetindo as mesmas palavras na mente sem parar.

Deixei minha mãe morrer.

Deixei minha mãe morrer.

Deixei minha mãe morrer.

Empurrei Lena para trás de mim, embora ela tivesse uma chance melhor de lutar contra Abraham do que eu.

— Minha tia estava certa. Você é o Diabo.

— Ela é muito gentil. Mas eu queria ser. — Ele pegou o relógio de ouro e olhou a hora. — Mas conheço alguns demônios. E eles estão esperando para fazer uma visita a este mundo há muito tempo. — Abraham colocou o relógio de volta no paletó. — Parece que o tempo de vocês acabou.