14 DE DEZEMBRO
Porta Demoníaca
Abraham ergueu O Livro das Luas, e as páginas começaram a virar de novo, tão rápido que tive certeza de que iam rasgar. Quando pararam, ele passou os dedos por elas com reverência. Essa era a bíblia dele. Cercado pela fumaça preta, Abraham começou a ler:
“NOS DIAS MAIS SOMBRIOS, QUANDO SANGUE
FOR DERRAMADO,
UMA LEGIÃO DE DEMÔNIOS VAI VINGAR OS MORTOS.
SE UMA PORTA MARCADA NÃO PUDER SER ENCONTRADA,
A TERRA VAI SE ABRIR PARA OFERECER UMA DO CHÃO.
SANGUINE EFFUSO, ATRIS DIEBUS,
ORIETUR DAEMONUM LEGIO UT INTERFECTOS
ULCISCATUR.
SI IANUA NOTATA INVENIRI NON POTUERIT,
TELLUS HISCAT UT DE TERRA IPSA IANUAM
OFFERAT.”
Eu não queria ficar por perto para ver a legião de Demônios que Abraham estava chamando para acabar conosco. Os Tormentos eram o bastante para mim. Segurei a mão de Lena e a puxei, e saí correndo para longe do fogo e da mãe morta, de Abraham e d’O Livro das Luas, e de qualquer mal que ele estivesse convocando.
— Ethan! Estamos indo pro lado errado.
Lena estava certa. Devíamos ter saído correndo em direção a Ravenwood, em vez de pelos campos de algodão que eram parte de Blackwell, a fazenda que ficava do outro lado de Greenbrier. Mas não havia para onde ir. Abraham estava entre Ravenwood e nós, com o sorriso sádico revelando a verdade. Isso era um jogo, e ele estava adorando.
— Não temos escolha. Temos de…
Lena me interrompeu antes que eu conseguisse terminar.
— Tem alguma coisa errada. Consigo sentir.
O céu escureceu acima de nós, e ouvi um estrondo baixo. Mas não era um trovão nem os inconfundíveis gritos dos Tormentos.
— O que é isso? — Eu estava arrastando Lena pela colina que costumava levar à fazenda Blackwell.
Antes que ela pudesse responder, o chão começou a se mexer debaixo de nós. Parecia que estava rolando sob meus pés, e lutei para manter o equilíbrio. O som estava ficando mais alto, e havia outros barulhos: árvores rachando e caindo, a sinfonia estrangulada de milhares de gafanhotos e um leve estalar vindo de trás de nós.
Ou de debaixo de nós.
Lena viu primeiro.
— Ah, meu Deus.
O chão estava se partindo no meio da estrada de terra, e a rachadura estava à nossa frente. Quando aumentou, o chão se abriu e a terra caiu na fissura como areia movediça sendo sugada para dentro de um buraco.
Era um terremoto.
Parecia impossível, porque não aconteciam terremotos no sul. Eles aconteciam em lugares no oeste, como na Califórnia. Mas eu tinha visto filmes suficientes para reconhecer.
O som era tão apavorante quanto a visão do chão se consumindo. A fileira negra de Tormentos acima de nós saltou e veio em nossa direção.
O chão atrás de nós estava se dividindo mais rapidamente, como uma costura se abrindo.
— Não vamos conseguir ir mais rápido do que isso! Nem do que eles! — A voz de Lena estava rouca. — Estamos presos!
— Talvez, não. — Olhei para o outro lado da colina e vi o Lata-Velha na estrada abaixo de nós. Link estava dirigindo como se a mãe dele tivesse acabado de pegá-lo bebendo na igreja. Tinha uma coisa na frente do Lata-Velha se deslocando mais rápido até do que o carro.
Era Boo. Não aquele cachorro preto preguiçoso que dormia no pé da cama de Lena. Esse era um cachorro Conjurador que parecia um lobo e corria mais rápido do que um.
Lena olhou para trás.
— Nunca vamos conseguir!
Abraham ainda estava de pé ao longe, intocado pelos ventos que sopravam ao redor dele. Ele se virou para olhar para a lateral da colina, onde o Lata-Velha corria pela estrada.
Também olhei para baixo. Link estava pendurado na janela gritando para mim. Não consegui ouvi-lo, mas fosse lá o que ele estivesse nos mandando fazer, pular, correr, eu não sabia, não havia tempo.
Balancei a cabeça em silêncio e olhei para Abraham uma última vez. Os olhos de Link acompanharam os meus.
E então ele sumiu.
O Lata-Velha ainda estava em movimento, mas o banco do motorista estava vazio. Boo pulou para sair da frente quando o carro passou correndo por ele, ignorando a curva na estrada. O Lata-Velha capotou e continuou virando pela estrada.
Vi o teto afundar na mesma hora em que ouvi o som de rasgo…
A mão de alguém procurou meu braço. Fui lançado no vazio negro que transportava os Incubus de um lugar ao outro, mas não precisei olhar para saber que era a mão de Link afundando na minha pele.
Eu ainda estava rodopiando pelo vazio quando senti os dedos dele escorregarem. Em seguida, comecei a cair, e o mundo voltou a aparecer. Pedaços de céu escuro e lampejos de marrom…
Minhas costas bateram em uma coisa dura, e mais de uma vez.
Vi o céu se afastar mais e mais, conforme me aproximei do chão. Mas meu corpo caiu contra uma coisa sólida, e de repente eu não estava mais caindo.
Ethan!
Meu braço prendeu, e uma dor explodiu no ombro. Pisquei. Eu estava preso em um mar longo e marrom de… galhos?
— Cara, você está bem? — Eu me virei devagar em direção ao som da voz dele. Link estava de pé na base da árvore, olhando para mim. Lena estava ao lado dele, completamente em pânico.
— Estou preso em uma árvore. O que você acha?
O alívio se espalhou no rosto de Lena.
— Acho que acabei de salvar você com meus superpoderes. — Link estava sorrindo.
— Ethan, você consegue descer? — perguntou Lena.
— Consigo. Acho que não quebrei nada. — Desprendi minhas pernas dos galhos com cuidado.
— Posso fazer você Viajar até aqui embaixo — ofereceu Link.
— Não, obrigado. Pode deixar. — Eu estava com medo de onde poderia acabar se ele tentasse de novo.
Doía cada vez que eu me mexia, então demorei alguns minutos para descer. Assim que cheguei ao chão, Lena lançou os braços ao meu redor.
— Você está bem!
Não quis dizer que, se ela me apertasse com mais força, eu não ficaria bem. Eu já conseguia sentir a pouca energia que estava se esvaindo.
— Acho que sim.
— Ei, vocês dois são mais pesados do que parecem. E foi minha primeira vez. Me deem um desconto. — Link ainda estava sorrindo. — Eu salvei as vidas de vocês.
Levantei o punho.
— Você conseguiu, cara. Estaríamos mortos, se não fosse por você.
Ele bateu os dedos fechados contra os meus.
— Acho que isso me torna um herói.
— Que ótimo. Agora você vai ficar ainda mais metido, se é que isso é possível. — Ele sabia o que eu estava realmente dizendo: obrigado por me salvar e salvar a garota que amo.
Lena o abraçou.
— Você é meu herói.
— Eu sacrifiquei o Lata-Velha. — Link olhou para mim. — Ficou muito ruim?
— Bem ruim.
Ele deu de ombros.
— Nada que um pouco de fita adesiva não conserte.
— Espero que você tenha bastante. Como nos encontrou, afinal?
— Sabe aquela história de que animais conseguem sentir tornados e terremotos, e coisas assim? Acho que com Incubus é igual.
— O terremoto — sussurrou Lena. — Vocês acham que chegou à cidade?
— Já chegou, sim — disse Link. — A rua Main se partiu bem no meio.
— Está todo mundo bem? — Eu queria saber de Amma, meu pai e minhas tias centenárias.
— Não sei. Minha mãe levou um bando de gente pra igreja, e estão todas enfiadas lá dentro. Ela falou alguma coisa sobre a fundação e o aço nas vigas, e um programa que ela viu no Nature Channel. — A Sra. Lincoln adorava a ideia de salvar todo mundo da rua dela com programas educativos e um talento para dar ordens às pessoas. — Quando saí, ela estava gritando sobre o apocalipse e os sete sinais.
— Temos de ir pra minha casa. — Não morávamos tão perto da igreja quanto Link, e eu tinha certeza de que a Propriedade Wate não tinha sido construída para suportar terremotos.
— Não tem como. A estrada se partiu atrás de mim assim que entrei na autoestrada 9. Vamos precisar passar pelo Jardim da Paz Perpétua. — Era difícil acreditar que Link estava se voluntariando para ir ao cemitério à noite, no meio de um terremoto sobrenatural.
Lena colocou a mão no meu ombro.
— Tenho uma sensação ruim quanto a isso.
— É? Bem, estou com uma sensação ruim desde que voltei da Terra do Nunca e virei um Demônio.
Quando passamos pelo portão do Jardim da Paz Perpétua, ele aparentava qualquer coisa, menos paz. Mesmo com as cruzes iluminadas, estava tão escuro que eu mal conseguia enxergar. Os gafanhotos zumbiam enlouquecidos, tão alto que parecia que estávamos no meio de um vespeiro. Um relâmpago cruzou a escuridão, cortando o céu do jeito que o terremoto tinha cortado o chão.
Link foi na frente, pois ele era o único que conseguia enxergar.
— Sabe, minha mãe está certa sobre uma coisa. Na Bíblia está escrito sobre terremotos no final.
Olhei para ele como se estivesse louco.
— Quando foi a última vez em que você leu a Bíblia? Na escola dominical, quando tinha 9 anos?
Ele deu de ombros.
— Eu só estava comentando.
Lena mordeu o lábio inferior.
— Link pode estar certo. E se Abraham não provocou isso e for o resultado da Ordem ter sido rompida? Como o calor e os insetos, e o lago seco?
Eu sabia que ela se sentia responsável, mas isso não tinha sido causado por um Fim dos Dias Mortal. Era um apocalipse sobrenatural.
— E foi coincidência Abraham estar lendo sobre abrir a terra para deixar todos os demônios saírem?
Link olhou para mim.
— O que você quer dizer com deixar todos os demônios saírem? Saírem de onde?
O chão começou a tremer de novo. Link parou para ouvir. Parecia que ele estava tentando determinar de onde o tremor vinha ou para onde iria depois. O barulho mudou para um de rachadura, como se estivéssemos de pé em uma varanda prestes a despencar. Parecia uma tempestade subterrânea.
— Tem outro chegando? — Eu não conseguia decidir se era melhor correr ou ficar parado.
Link olhou ao redor.
— Acho que devíamos…
O chão abaixo de nós mexeu, e ouvi o asfalto rachando. Não tínhamos para onde ir, e nem tempo suficiente para chegar a lugar algum. O asfalto estava desmoronando ao meu redor, mas eu não estava caindo. Pedaços da rua estavam voando para o céu.
Eles se encostaram uns nos outros, formando um triângulo torto de concreto, até pararem. As cruzes iluminadas começaram a piscar e apagar.
— Diga que isso não é o que penso que é. — Link estava se afastando da grama morta, salpicada de flores de plástico e lápides. Parecia que as lápides estavam se mexendo. Talvez outro tremor adicional estivesse chegando ou pior.
— Do que você está falando? — A primeira lápide saiu da terra, antes que ele tivesse tempo de responder. Era outro terremoto, ou, pelo menos, era o que eu pensava.
Mas estava errado.
As lápides não estavam caindo.
Estavam sendo empurradas de dentro para fora.
Pedras e terra estavam voando e caindo como bombas jogadas do céu. Caixões podres saíram do chão. Caixas de pinho de cem anos e caixões pretos laqueados estavam rolando pela colina, abrindo-se e deixando corpos em decomposição no caminho. O cheiro era nojento. Link estava começando a vomitar.
— Ethan! — gritou Lena.
Segurei a mão dela.
— Corra!
Link não precisou ouvir isso duas vezes. Ossos e tábuas estavam voando como projéteis, mas ele estava recebendo o ataque por nós, como um linebacker de futebol americano.
— Lena, o que está acontecendo? — Não soltei a mão dela.
— Acho que Abraham abriu alguma espécie de porta para o Subterrâneo. — Ela tropeçou, e eu a puxei de volta.
Chegamos à colina que levava à parte mais antiga do cemitério, por onde eu tinha empurrado a cadeira de rodas de tia Mercy mais vezes do que era capaz de contar. A colina estava escura, e tentei evitar os buracos enormes que mal conseguia ver.
— Por aqui! — Link já estava no alto. Ele parou, e achei que estivesse esperando por nós. Mas quando chegamos ao topo, percebi que estava olhando para o cemitério.
Os mausoléus e túmulos tinham explodido, cobrindo o chão com pedaços de pedra entalhada, ossos e partes de corpos. Havia um fauno de plástico no meio dos escombros. Parecia que alguém tinha cavado todos os túmulos da colina.
Havia um cadáver de pé na extremidade do que era o lado bom da colina. Dava para perceber que tinha ficado enterrado por bastante tempo, por causa do estado de decomposição. O cadáver nos observava, mas não tinha olhos. As órbitas estavam completamente vazias. Tinha alguma coisa dentro dele, animando o que havia sobrado do corpo, do mesmo jeito que a Lilum tinha ocupado o corpo da Sra. English.
Link levantou o braço para que ficássemos atrás dele.
O cadáver inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse escutando. Em seguida, uma névoa escura saiu dos olhos, do nariz e da boca dele. O corpo ficou inerte e caiu no chão. A névoa se espiralou como um Tormento e voou para o céu, para fora do cemitério.
— Era um Espectro? — perguntei.
Link respondeu antes de Lena.
— Não. Era algum tipo de Demônio.
— Como você sabe? — sussurrou Lena, como se estivesse com medo de despertar mais mortos.
Link olhou para o outro lado.
— Do mesmo jeito que um cachorro reconhece quando vê outro cachorro.
— Não me pareceu ser um cachorro. — Eu estava tentando fazer com que ele se sentisse melhor, mas estávamos bem além disso.
Link olhou para o corpo caído no chão, onde o Demônio estava momentos atrás.
— Talvez minha mãe esteja certa, e o Fim dos Dias tenha chegado. Talvez ela tenha a chance de usar o moedor de trigo, a máscara de gás e aquele bote inflável, afinal.
— Um bote? É isso que está preso ao teto da sua garagem?
Link assentiu.
— É. Para quando as águas subirem e as partes baixas forem inundadas, e Deus se vingar de nós, pecadores.
Balancei a cabeça.
— Deus, não. Abraham Ravenwood.
O chão finalmente parou de tremer, mas não reparamos.
Nós três estávamos tremendo tanto que era impossível perceber.