17 DE DEZEMBRO
Estranha passagem
Havia 16 corpos no necrotério do condado. De acordo com a música sinalizadora da minha mãe, deviam ter sido 18. Eu não sabia por que os terremotos tinham parado nem por que o exército de Tormentos de Abraham tinha desaparecido. Talvez destruir a cidade tenha perdido a graça por não estarmos lá e porque a cidade estava bem destruída. Mas se eu sabia alguma coisa sobre Abraham era que havia um motivo. Eu só sabia que esse tipo de matemática distorcida, o local onde o racional cruzava com o sobrenatural, era como minha vida estava agora.
E eu sabia, sem sombra de dúvida, que mais dois corpos se juntariam aos 16. Eu realmente acreditava nas músicas. O número 17 e o número 18. Esses eram os números que eu tinha no fundo da mente quando saí de carro para ir ao County Care. O poder também estava lá.
E eu tinha a terrível sensação de que sabia quem seria o número 17.
O gerador de reserva estava acendendo e apagando. Percebi pelo modo como as luzes de segurança estavam piscando. Bobby Murphy não estava na recepção; na verdade, não havia ninguém. Os eventos catastróficos de hoje no Jardim da Paz Perpétua não fariam muitas sobrancelhas serem erguidas no County Care, um local que a maior parte das pessoas não conhecia até uma tragédia acontecer. Dezesseis. Eu me perguntei se havia 16 mesas de autópsia no necrotério. Tinha certeza de que não.
Mas uma ida ao necrotério devia ser um evento comum ali. Havia mais do que uma porta giratória entre os mortos e os vivos, conforme você percorria esses corredores. Quando você passava pelas portas do County Care, seu universo encolhia, ficava cada vez menor, até o mundo todo ser o corredor, a enfermeira e o quarto antisséptico cor de pêssego de 2,5 metros por 3 metros.
Depois de entrar aqui, você parava de se importar com o que acontecia lá fora. Esse lugar era uma espécie de entremundos. Principalmente desde que, todas as vezes que segurava a mão de tia Prue, parecia que eu acabava em outro.
Nada mais parecia real, o que era irônico, porque do lado de fora dessas paredes as coisas estavam mais reais do que nunca. E se eu não descobrisse o que fazer com algumas delas, como uma poderosa Lilum do mundo Demônio, uma dívida de sangue não paga que estava destruindo Gatlin e alguns outros mundos maiores, não ia sobrar nenhum quarto cor de pêssego para chamar de lar.
Andei pelo corredor escuro em direção ao quarto de tia Prue. As luzes de segurança piscaram, e vi um vulto de camisola de hospital parado no final do corredor, segurando um saco de soro intravenoso. Em seguida, as luzes se apagaram, e não consegui ver nada. As luzes se acenderam de novo, e a pessoa tinha sumido.
O problema é que eu podia jurar que tinha sido minha tia.
— Tia Prue?
As luzes se apagaram de novo. Eu me senti muito sozinho, e não de um jeito tranquilo. Pensei ter visto alguma coisa se movendo na escuridão, e as luzes de segurança se acenderam de novo.
— Mas que…? — Dei um salto para trás, assustado.
Tia Prue estava de pé bem na minha frente, com o rosto a centímetros do meu. Eu conseguia ver cada ruga, cada marca de cada lágrima, como um mapa dos túneis Conjuradores. Ela me chamou com um dedo, como se quisesse que eu a seguisse. Em seguida, levou o dedo aos lábios.
— Shh.
As luzes se apagaram, e ela sumiu.
Corri, tateando pela escuridão até encontrar o quarto da minha tia. Empurrei a porta, mas ela não abriu.
— Leah, sou eu!
A porta se abriu, e vi Leah com o dedo na frente dos lábios. Era quase o mesmo gesto que tia Prue tinha feito no corredor. Fiquei confuso.
— Shh. — Leah trancou a porta atrás de mim. — Está na hora.
Amma e a mãe de Macon, Arelia, estavam sentadas ao lado da cama. Ela deve ter vindo para a cidade por causa de tia Prue. Os olhos delas estavam fechados, e estavam de mãos dadas acima do corpo de tia Prue. No pé da cama, eu mal conseguia perceber uma presença cintilante, o movimento de milhares de pequenas tranças e contas.
— Tia Twyla? É a senhora? — Vi um breve sorriso.
Amma me mandou fazer silêncio.
Percebi a mão retorcida de tia Prue agarrando a minha e batendo nela para me tranquilizar.
Shh.
Senti cheiro de queimado e percebi que um punhado de ervas estava soltando fumaça em uma tigela de cerâmica pintada na janela. A cama de tia Prue estava coberta com a colcha familiar, com pequenas bolas bordadas, em vez do lençol do hospital. O travesseiro de flores estava atrás da sua cabeça. Harlon James IV estava encolhido aos pés dela. Havia alguma coisa diferente em tia Prue. Não trazia nenhum tubo, nem monitor, nem mesmo pedaço de esparadrapo preso ao corpo. Ela estava com os chinelos de crochê e o roupão rosa florido, que tinha botões de pérola. Como se fosse dar uma saída para inspecionar os jardins das outras casas na rua e reclamar sobre quem precisava de uma mão de tinta na casa.
Eu estava certo. Ela era o número 17.
Fiquei entre Amma e Arelia e peguei a mão de tia Prue. Amma abriu um dos olhos e me fitou.
— Guarde suas mãos com você, Ethan Wate. Você não precisa ir para onde ela está indo.
Eu me empertiguei.
— Ela é minha tia, Amma. Quero me despedir.
Arelia balançou a cabeça sem abrir os olhos.
— Não temos tempo para isso agora. — A voz dela parecia estar entrando no quarto vinda de longe.
— Tia Prue veio me procurar. Acho que ela tem alguma coisa pra me dizer.
Amma abriu os olhos e ergueu uma sobrancelha.
— Existe o mundo dos vivos e existe o mundo dos que pararam de viver. Ela teve uma boa vida e está pronta. E, agora mesmo, já tenho bastante dificuldade em manter as pessoas que amo aqui entre os vivos. Então, se não se importa… — Ela fungou, como se estivesse tentando botar o jantar na mesa e eu estivesse atrapalhando.
Olhei para Amma de um jeito que nunca tinha olhado antes. Foi um olhar que dizia: eu me importo.
Ela suspirou e pegou minha mão com uma das dela e a mão da minha tia com a outra. Fechei os olhos e esperei.
— Tia Prue?
Nada aconteceu.
Tia Prue.
Abri um dos olhos.
— Qual é o problema? — sussurrei.
— Não posso dizer que eu saiba. Aquela confusão toda e aqueles demônios causando tanto problema devem tê-la assustado.
— Todos aqueles corpos — sussurrou Arelia.
Amma assentiu.
— Gente demais se movendo no Outro Mundo esta noite.
— Mas ainda não acabou. Vão ser 18. Era o que a música dizia.
Amma olhou para mim com expressão triste.
— Talvez a música esteja errada. Até as cartas e os Grandes erram às vezes. Talvez nem tudo desça pela colina tão rápido quanto você pensa.
— São as músicas da minha mãe, e ela disse 18. Ela nunca erra, e você sabe.
Eu sei, Ethan Wate. Ela não precisava falar. Podia ver nos olhos dela, no jeito como o maxilar estava tenso e o rosto cheio de linhas.
Estiquei a mão de novo.
— Por favor.
Amma olhou por cima do ombro.
— Leah, Arelia, Twyla, venham nos dar uma mãozinha aqui.
Demos as mãos e criamos um círculo, Mortal e Conjurador. Eu, o Obstinado perdido. Leah, a Succubus da Luz. Amma, a Vidente que estava perdida nas sombras. Arelia, a Adivinhadora que sabia mais do que gostaria. E Twyla, que uma vez chamou os espíritos dos mortos, um Espectro no Outro Mundo. A luz para mostrar o caminho de casa para tia Prue.
Elas eram parte da minha família agora.
Ali estávamos nós, de mãos dadas em um quarto de hospital, dando adeus a uma pessoa que, de muitas maneiras, já tinha ido embora muito tempo antes.
Amma assentiu para Twyla.
— Você se importa de fazer as honras?
Em segundos, o quarto desapareceu nas sombras em vez de luz. Senti o vento soprando, apesar de estarmos em um lugar fechado.
Ou era o que eu pensava.
A escuridão se solidificou, até estarmos de pé em uma sala enorme, de frente para uma porta de cofre. Reconheci imediatamente. Era o cofre nos fundos do Exílio, a boate dos túneis. Desta vez, a sala estava vazia. Eu estava sozinho.
Coloquei as duas mãos na porta e encostei na roda de prata que a abria. Puxei com o máximo de força que tinha, mas não consegui fazer a roda girar.
— Você vai ter de botar mais força nisso, Ethan. — Eu me virei, e tia Prue estava parada atrás de mim, com os chinelos de crochê e o roupão, apoiada no suporte do soro. Não estava nem preso ao corpo dela.
— Tia Prue! — Eu a abracei e senti os ossos por trás da pele fina. — Não vá.
— Chega de bagunça. Você é tão ruim quanto Amma. Ela veio aqui quase todas as noites essa semana para tentar me convencer a ficar. Fica colocando uma coisa que cheira como as fraldas velhas de Harlon James debaixo do meu travesseiro. — Ela torceu o nariz. — Estou cansada desse lugar. Nem passam minhas histórias na TV daqui.
— A senhora não pode ficar? Falta mapear tantas partes dos túneis. E não sei o que tia Mercy e tia Grace vão fazer sem a senhora.
— Era por isso que eu queria falar com você. É importante, então preste atenção, ouviu?
— Estou escutando. — Sabia que tinha uma coisa que ela precisava me contar, uma coisa que nenhuma das outras pessoas podia saber.
Tia Prue se apoiou no suporte do soro e sussurrou:
— Você precisa impedi-los.
— Impedir quem? — Os pelos na minha nuca se eriçaram.
Outro sussurro.
— Sei exatamente o que estão planejando fazer, que é convidar metade da cidade para minha festa.
A “festa” dela. Ela já tinha mencionado isso antes.
— A senhora está falando do seu velório?
Ela assentiu.
— Venho planejando desde que eu tinha 52 anos e quero que seja do jeito que decidi. Com louça e toalhas finas, com a tigela boa de ponche, e com Sissy Honeycutt cantando “Amazin’ Grace”. Deixei uma lista com os detalhes debaixo da minha penteadeira, se é que ela chegou à mansão.
Eu não podia acreditar que esse era o motivo de ela ter me levado até ali. Mas, por outro lado, era tia Prue.
— Sim, senhora.
— Tudo depende da lista de convidados, Ethan.
— Entendi. Você quer ter certeza de que as pessoas certas estarão lá.
Ela olhou para mim como se eu fosse um idiota.
— Não. Quero que se certifiquem de que as erradas não estejam. Quero ter certeza de que certas pessoas fiquem de fora. Não é a escolha do porco ser o mascote dos bombeiros.
Ela estava falando sério, mas vi um brilho no olho dela que fez parecer que ia começar a cantar uma das famosas versões dela imitando ópera de “Leaning on the Everlasting Arms”.
— Quero que você bata a porta antes que Eunice Honeycutt bote os pés no local. Não ligo de Sissy estar cantando e de aquela mulher levar o Deus, Todo-Poderoso, no braço. Ela não vai tomar meu ponche.
Dei um abraço de urso tão grande nela que ergui os pés protegidos do chão pelo crochê.
— Vou sentir saudades, tia Prue.
— Claro que vai. Mas é minha hora, e tenho coisas a fazer e maridos a ver. Sem mencionar alguns Harlon James. Você se importa de abrir a porta para uma senhora de idade? Não estou me sentindo muito bem hoje.
— Aquela porta? — Encostei no cofre de metal à nossa frente.
— Essa mesma. — Ela soltou o suporte de soro e assentiu para mim.
— Onde vai dar?
Ela deu de ombros.
— Não sei dizer. Só sei que é para onde devo ir.
— E se não for pra eu abrir, sei lá?
— Ethan, você está me dizendo que está com medo de abrir uma portinha boba? Gire a maldita roda.
Coloquei as mãos na roda e puxei com o máximo de força que consegui. Não se mexeu.
— Você vai obrigar uma velha a fazer força? — Tia Prue me empurrou para o lado com a mão fraca e encostou na porta.
Ela se abriu sob a mão dela, espalhando luz, vento e gotas de água na sala. Consegui ver água azul mais além. Ofereci meu braço, e ela aceitou. Quando a ajudei a passar pela porta, ficamos ali parados por um segundo, em lados opostos.
Ela olhou por cima do ombro, para o azul atrás dela.
— Parece que este é meu caminho. Você quer me levar, como prometeu que faria?
Fiquei imóvel.
— Eu prometi levar a senhora até lá?
Ela assentiu.
— Prometeu, sim. Foi você quem me contou sobre a Última Porta. De que outra forma eu poderia saber?
— Não sei nada sobre uma Última Porta, tia Prue. Nunca passei por esta.
— Claro que passou. Você está aqui do outro lado agora mesmo.
Olhei para lá, e lá estava eu, o outro eu. Enevoado e cinzento, trêmulo como uma sombra.
Era o eu das lentes da velha câmera de vídeo.
O eu do sonho.
Minha Alma Fraturada.
Começou a andar em direção à porta do cofre. Tia Prue acenou na direção dele.
— Você vai me levar até o farol?
Assim que falou, consegui ver o caminho de degraus de pedra levando por uma ladeira gramada até um farol branco de pedra. Quadrado e velho, um simples retângulo de pedra em cima de outro, e uma torre branca que ia até o azul intenso do céu. A água além dele era ainda mais azul. A grama que balançava ao vento era verde e estava viva, e me fez desejar uma coisa que eu nunca tinha visto.
Mas acho que tinha visto sim, porque ali estava eu, chegando pelo caminho de pedra.
Uma sensação horrível revirou meu estômago, e, de repente, alguém torceu meu braço atrás de mim, como se Link estivesse treinando movimentos de luta comigo.
A voz, a mais alta do universo, da pessoa mais forte que eu conhecia, trovejou no meu ouvido.
— Vá em frente, Prudence. Você não precisa da ajuda de Ethan. Você tem Twyla agora, e vai ficar bem quando chegar no farol.
Amma assentiu com um sorriso, e, de repente, Twyla estava ao lado de tia Prue. Não uma Twyla feita de luz, mas a verdadeira, com a mesma aparência do dia em que morreu.
Tia Prue olhou nos meus olhos e me jogou um beijo. Em seguida, pegou o braço de Twyla e se virou em direção ao farol.
Tentei ver se a outra metade da minha alma ainda estava lá, mas a porta do cofre bateu com tanta força que ecoou pela boate atrás de mim.
Leah girou a roda com as duas mãos, com o máximo de força que conseguiu. Tentei ajudar, mas ela me afastou. Arelia também estava lá, murmurando alguma coisa que não consegui entender.
Amma ainda me segurava com tanta força que conseguiria vencer o campeonato estadual se estivéssemos em uma partida de luta livre.
Arelia abriu os olhos.
— Agora. Precisa ser agora.
Tudo ficou preto.
Abri os olhos, e estávamos parados ao redor do corpo sem vida de tia Prue. Ela tinha morrido, mas nós já sabíamos disso. Antes que eu pudesse dizer ou fazer alguma coisa, Amma me tirou do quarto e me levou pelo corredor.
— Você.
Ela mal conseguia falar, com o dedo magro apontando para mim. Cinco minutos depois, estávamos no meu carro, e ela só soltou do meu braço para que eu pudesse dirigir para casa. Levei uma eternidade para descobrir um jeito de voltar para lá. Metade das estradas da cidade tinha sido fechada por causa do terremoto que não era um terremoto de verdade.
Olhei para o volante e pensei sobre a roda na porta do cofre.
— O que era aquilo? A Última Porta?
Amma se virou e me deu um tapa na cara. Ela nunca tinha encostado um dedo em mim, em momento nenhum das nossas vidas.
— Nunca mais me assuste assim de novo!