21 DE DEZEMBRO

O último jogo

Era o último dia. Não havia nada mais a decidir. Amanhã era o solstício, e eu estava resolvido. Fiquei deitado na cama e olhei para o teto de gesso azul, pintado da cor do céu para afastar as abelhas carpinteiras. Mais uma manhã. Mais um teto pintado de azul.

Cheguei da casa de Lena e voltei a dormir. Deixei a janela aberta, caso alguém quisesse me ver, me assombrar ou me machucar. Ninguém veio.

Podia sentir o cheiro de café e ouvir meu pai andando lá embaixo. Amma estava no fogão. Waffles. Definitivamente, waffles. Ela devia estar esperando que eu acordasse.

Decidi não contar ao meu pai. Depois de tudo que ele passou com minha mãe, achei que ele não seria capaz de entender. Eu não conseguia pensar no que isso podia fazer a ele. O modo como ele enlouqueceu quando minha mãe morreu, agora eu entendia. Estava assustado demais para me permitir sentir essas coisas antes. E agora, quando não importava o que eu sentia, estava sentindo tudo. Às vezes, a vida era estranha assim.

Link e eu tentamos almoçar no Dar-ee Keen, mas acabamos desistindo. Ele não podia comer, e eu não consegui. Sabe quando os prisioneiros podem escolher a última refeição e fazem disso um grande evento? Não funcionou para mim dessa forma. Não queria camarão com canjica nem bolo de açúcar mascavo. Não conseguia manter nada no estômago.

E não podem dar a você a única coisa que você realmente quer.

Tempo.

*    *    *

Por fim, fomos para a quadra de basquete no pátio da escola fundamental e lançamos algumas bolas. Link me deixou ganhar, o que foi estranho porque era eu quem costumava deixá-lo ganhar. As coisas tinham mudado demais nos últimos seis meses.

Não conversamos muito. Uma vez, ele pegou a bola e a segurou depois que passei para ele. Estava me olhando do mesmo jeito de quando se sentou ao meu lado no velório da minha mãe, apesar de a área estar separada por cordas e só a família poder sentar lá.

— Não sou bom nessas coisas, sabe?

— Sei. Eu também não.

Peguei uma revista em quadrinhos velha que tinha enrolado e enfiado no bolso de trás.

— Uma coisa pra você se lembrar de mim.

Ele desenrolou a revista e riu.

— Aquaman? Tenho de me lembrar de você e de seus poderes patéticos com essa revistinha porcaria?

Dei de ombros.

— Nem todos podemos ser o Magneto.

— Ei, cara. — Ele jogou a bola de uma das mãos para a outra. — Tem certeza de que quer fazer isso?

— Não. Quero dizer, tenho certeza de que não quero fazer. Mas não tenho escolha. — Link entendia sobre não ter escolhas. A vida dele era toda baseada nisso

Ele quicou a bola com força.

— E não tem outro jeito?

— Só se você quiser ficar com sua mãe observando o Fim dos Dias. — Eu estava tentando fazer uma piada. Mas o momento era sempre inapropriado. Talvez minha Alma Fraturada estivesse controlando isso agora.

Link parou de quicar a bola e a prendeu debaixo do braço.

— Ei, Ethan.

— O quê?

— Se lembra do Twinkie no ônibus? O que dei pra você no segundo ano, no dia em que nos conhecemos?

— O que caiu no chão e você me deu sem me dizer? Legal.

Ele sorriu e lançou a bola.

— Não caiu no chão. Eu inventei isso.

A bola de basquete bateu no aro e quicou na rua.

Nós a deixamos quicar.

Encontrei Marian e Liv no arquivo, juntas onde era o lugar delas.

— Tia Marian! — Estava tão aliviado de vê-la que quase a derrubei quando a abracei. Quando a soltei, percebi que ela estava esperando que eu falasse. Alguma coisa, qualquer coisa, sobre o motivo de terem deixado ela ir.

Então comecei a falar, lentamente. Dando pedaços da história que não se encaixavam exatamente. A princípio, as duas ficaram aliviadas em ter boas notícias. Gatlin e o mundo Mortal não iam ser destruídos em um apocalipse sobrenatural. Os Conjuradores não iam perder os poderes e nem tacar fogo em si mesmos acidentalmente, apesar de no caso de Sarafine isso ter salvado nossas vidas. Elas ouviram o que queriam ouvir: tudo ia ficar bem.

Tinha de ficar.

Eu estava trocando minha vida por isso. Foi a parte que deixei de fora.

Mas elas eram inteligentes demais para deixar a história terminar ali. E quanto mais peças eu dava para elas, mais rápido as mentes delas as juntavam e criavam uma verdade distorcida de tudo. Soube exatamente quando a última peça se encaixou no lugar.

Houve um momento terrível em que vi os rostos delas mudarem e os sorrisos sumirem. Liv não olhava para mim. Estava girando o selenômetro compulsivamente e torcendo as tiras que sempre tinha ao redor do pulso.

— Vamos pensar em alguma coisa. Sempre pensamos. Tem de haver outro jeito.

— Não tem. — Eu não precisava dizer; ela já sabia.

Sem uma palavra, Liv desamarrou uma tira e amarrou no meu pulso. As lágrimas corriam pelas suas bochechas, mas ela não olhou para mim. Tentei me imaginar no lugar dela, mas não consegui. Era difícil demais.

Eu me lembrei de perder minha mãe, de olhar para meu terno na cadeira no canto do meu quarto esperando que eu o vestisse e admitisse que ela estava morta. E me lembrei de Lena se ajoelhando na lama soluçando no dia do enterro de Macon. Das Irmãs com olhar vidrado no caixão de tia Prue, com os lenços amassados nas mãos. Quem lhes daria ordens e cuidaria delas agora?

Isso é o que ninguém diz. É mais difícil ser aquele que fica para trás.

Pensei em tia Prue entrando pela Última Porta calmamente. Ela estava em paz. Onde estava a paz para o restante de nós?

*    *    *

Marian não disse nada. Ela olhou para mim como se estivesse tentando decorar meu rosto e congelar o momento para que nunca pudesse esquecê-lo. Marian sabia a verdade. Acho que ela sabia o que ia acontecer assim que o Conselho do Registro a deixou voltar.

Nada vinha sem um preço.

E, se fosse com ela, teria feito o mesmo para proteger as pessoas que amava.

Eu tinha certeza de que Liv também. Do jeito dela, fora exatamente o que havia feito por Macon. O que John tinha tentado fazer por ela na torre de água. Talvez ela sentisse culpa por ser eu e não ele.

Esperava que ela soubesse da verdade: que não era culpa dela, nem minha, nem mesmo dele. Independentemente de quantas vezes eu quisesse acreditar que era.

Essa era minha vida, e era assim que estava terminando.

Eu era o Obstinado. E esse era meu grande e terrível propósito.

Sempre esteve nas cartas, nas que Amma estava tão desesperada para mudar.

Sempre tinha sido eu.

Mas elas não me fizeram dizer nada disso. Marian me tomou nos braços, e Liv passou os braços ao redor de nós dois. Isso me fez lembrar do jeito como minha mãe sempre me abraçava, como se pudesse nunca soltar. Por fim, Marian sussurrou uma coisa baixinho. Era de Winston Churchill. E eu esperava lembrar, independentemente de para onde eu fosse.

— “Não é o fim. Nem é o começo do fim. Mas talvez seja o fim do começo.”