15 DE SETEMBRO

A cidade esquecida

Olhei para meus tênis na escuridão. Sentia a umidade penetrando a lona, depois, minhas meias, até a pele estar dormente de frio. Estava de pé no meio da água. E a ouvia se movendo, não tanto correndo, mas sim se abrindo. Alguma coisa roçou minha canela e se afastou. Uma folha. Um galho.

Um rio.

Podia sentir o cheiro de podridão misturado com lama. Talvez estivesse no pântano perto de Wader’s Creek. A franja escura ao longe podia ser grama na margem do pântano, e as formas altas podiam ser ciprestes. Estendi uma das mãos à frente. Penas flutuantes, fazendo cócegas de leve. Musgo espanhol. Era o pântano, com certeza.

Eu me agachei e coloquei a mão na água. Era densa e pesada. Peguei um pouco com a mão em concha e levei até o nariz, deixando que escorresse entre meus dedos. Escutei com atenção.

O barulho não parecia certo.

Apesar de tudo que eu sabia sobre as condições da água e sobre as larvas e bactérias, enfiei um dos dedos na boca.

Conhecia o gosto. Eu o reconheceria em qualquer lugar. Era como chupar um punhado de moedas que roubei do chafariz do parque Forsyth quando tinha 9 anos.

Não era água.

Era sangue.

Em seguida, ouvi o sussurro familiar e senti a pressão de outro corpo se chocando contra o meu.

Era ele de novo. O eu que não era eu.

ESTOU ESPERANDO.

Ouvi as palavras enquanto caía. Tentei responder, mas quando abri a boca comecei a sufocar no rio. Assim, pensei as palavras, embora mal conseguisse pensar.

Está esperando o quê?

Senti que submergia até o fundo. Só que não havia fundo, e continuei a cair e a cair…

Acordei me debatendo. Ainda podia sentir as mãos dele ao redor do meu pescoço e a tontura, a terrível sensação de que o quarto estava me sufocando. Tentei respirar fundo, mas a sensação não desapareceu. Meu lençol estava manchado de sangue, e minha boca ainda estava com gosto de moedas sujas. Enrolei o lençol e o escondi debaixo da cama. Eu teria de jogá-lo fora. Não podia deixar Amma encontrar um lençol molhado de sangue no meu cesto de roupas sujas.

Lucille pulou na cama com a cabeça inclinada para o lado. Gatos siameses têm um jeito de olhar para você como se estivessem decepcionados. Lucille estava assim.

— Está olhando o quê? — Tirei o cabelo suado de cima dos olhos, e o sal do meu suor se misturou ao sal do sangue.

Eu não entendia os sonhos, mas não ia conseguir voltar a dormir.

Então, chamei a única pessoa que sabia que estaria acordada.

Link entrou pela minha janela 20 minutos depois. Ele ainda não tinha tido coragem de tentar Viajar, de desaparecer no espaço e se materializar onde quisesse, mas, ainda assim, conseguia ser bastante discreto.

— Cara, pra que tanto sal? — Uma linha de cristais brancos caiu da janela assim que Link passou a perna para entrar. Limpou uma mão na outra. — Isso deveria me machucar? Porque é muito irritante.

— Amma anda mais doida do que o normal.

E isso era pouco. A última vez que achei tantos punhados de ervas e pequenas bonecas feitas à mão pela casa, ela estava tentando manter Macon fora do meu quarto. Eu me perguntei quem estava tentando manter do lado de fora desta vez.

— Todo mundo está mais doido do que o normal. Minha mãe começou a falar sobre construir um bunker de novo. Está comprando todas as latas no Pare & Roube, como se fôssemos nos esconder no porão até o Demônio aparecer ou coisa do tipo. — Ele se sentou na cadeira giratória ao lado da minha escrivaninha. — Estou feliz de você ter ligado. Costumo ficar sem ter o que fazer lá pra uma ou duas da madrugada.

— O que você faz a noite toda? — Eu nunca tinha perguntado antes.

Link deu de ombros.

— Leio revistas em quadrinhos, vejo filmes no computador, fico no quarto de Savannah. Mas hoje fiquei ouvindo minha mãe conversar no telefone a noite toda com o pastor e a Sra. Snow.

— Sua mãe está mesmo chateada com o que aconteceu com Savannah?

Link balançou a cabeça.

— Não tão chateada quanto está pelo lago ter secado. Ela anda chorando e rezando e ocupando a linha telefônica pra dizer pra todo mundo que é um dos sete sinais. Vou ficar na igreja o dia inteiro depois disso.

Pensei sobre o sonho e os lençóis com sangue.

— O que você quer dizer com o lago ter secado?

— O lago Moultrie. Dean Wilks foi lá pescar ontem à tarde, e o lago estava seco. Disse que parecia uma cratera e que andou até o meio.

Peguei uma camiseta.

— Lagos não secam simplesmente.

Estava piorando, o calor, os insetos e as ondas loucas de poder Conjurador. E agora, isso. O que viria depois?

— Eu sei, cara. Mas não posso dizer pra minha mãe que sua namorada rompeu todo o universo. — Ele pegou uma garrafa vazia de chá sem açúcar que estava na minha escrivaninha. — Desde quando você bebe chá? E onde conseguiu esse, sem açúcar?

Ele estava certo. Eu bebia o equivalente ao meu peso em achocolatado desde o sexto ano. Mas, nos últimos meses, tudo parecia doce demais, e eu mal conseguia suportar mais do que um gole de achocolatado.

— O Pare & Roube vende por causa da Sra. Honeycutt, que é diabética. Não consigo beber nada doce demais. Tem alguma coisa acontecendo com minhas papilas gustativas.

— Não é mentira. Primeiro, você come os sanduíches de carne moída da escola, e agora, está bebendo chá. Talvez o lago secar não seja tão doido.

— Não é…

Lucille pulou da cama, e Link girou a cadeira em direção à porta.

— Shh. Alguém está acordado.

Prestei atenção, mas não ouvi nada.

— Deve ser meu pai. Ele tem um projeto novo.

Link balançou a cabeça.

— Não. Vem do andar de baixo. Amma está acordada. — Incubus híbrido ou não, a audição dele era bem impressionante.

— Ela está na cozinha?

Link ergueu a mão para que eu ficasse em silêncio.

— É, tem barulho de coisas lá embaixo. — Fez uma pausa de um minuto. — Agora ela está na porta dos fundos. Consigo ouvir aquela dobradiça que faz barulho na porta de tela.

Que dobradiça?

Limpei o resto de sangue do braço e saí da cama. Na última vez em que Amma saiu de casa no meio da noite foi para se encontrar com Macon e conversar sobre mim e Lena. Será que iam se encontrar de novo?

— Preciso ver aonde ela vai.

Coloquei o jeans e peguei os tênis. Segui Link escada abaixo e pisei em todas as tábuas que rangiam. Ele não fez nenhum barulho.

As luzes da cozinha estavam apagadas, mas eu conseguia ver Amma parada na calçada à luz da Lua. Estava usando o vestido amarelo-claro de ir à igreja e luvas brancas. Definitivamente seguia para o pântano. Assim como no meu sonho.

— Ela vai pra Wader’s Creek. — Procurei a chave do Volvo, no prato da bancada. — Temos de segui-la.

— Podemos ir com o Lata-Velha.

— Precisamos ir com os faróis apagados. É mais difícil do que você pensa.

— Cara, eu praticamente tenho visão de raios X. Vamos nessa.

Esperamos que o Studebaker 1950 encostasse no meio-fio, como eu sabia que aconteceria. E, como previsto, cinco minutos depois, Carlton Eaton dirigiu sua picape pela Cotton Bend.

— Por que o Sr. Eaton veio pegar Amma? — Link colocou o Lata-Velha em ponto morto antes de girar a ignição.

— Ele a leva para Wader’s Creek no meio da noite, às vezes. É só o que sei. Talvez ela faça tortas pra ele, sei lá.

— É a única coisa que sinto falta de comer. As tortas de Amma.

Link não estava brincando sobre não precisar de faróis. Ele deixou um bom espaço entre o Lata-Velha e a picape, mas não era por estar se concentrando na estrada. Passou a maior parte do tempo reclamando sobre Ridley, de quem ele parecia não conseguir parar de falar ou botando músicas do novo demo da banda dele para eu ouvir. Os Holy Rollers soavam péssimos como sempre, mas mesmo ali, o barulho dos gafanhotos abafava o som da música. Eu não conseguia suportar o chiado.

Os Holy Rollers não tinham terminado a quarta música quando a picape chegou ao caminho escondido que levava a Wader’s Creek. Era o local onde o Sr. Eaton tinha deixado Amma da última vez em que os segui. Mas, esta noite, a picape não parou.

— Cara, pra onde ele vai?

Eu não fazia ideia, mas não levamos muito tempo para descobrir.

A picape de Carlton Eaton praticamente deslizou para o trecho de terra de 1,5 quilômetro que tinha servido de estacionamento apenas alguns meses antes. A área ficava na frente de um campo enorme, provavelmente tão morta e queimada quanto a grama no resto do condado. Mas, mesmo sem a onda de calor, a grama ali ainda não teria se recuperado das carrocinhas e barracas, guimbas de cigarro e peso de estruturas de metal que tinham deixado cicatrizes negras na terra.

— A área da feira? Por que ele está trazendo Amma aqui? — Link parou perto de alguns arbustos mortos.

— Por que você acha? — Só havia uma coisa ali, agora que a feira tinha acabado. Uma porta externa para os túneis Conjuradores.

— Não entendo. Por que o Sr. Eaton levaria Amma para os túneis?

— Não sei.

O Sr. Eaton desligou o motor e andou até o lado do passageiro para abrir a porta para Amma. Ela deu um tapa nele quando ele tentou ajudá-la a descer. Ele deveria saber. Amma tinha 1,50 metro e uns 45 quilos, mas não havia nada de frágil nela. Ela o seguiu em direção ao campo e à porta exterior, com as luvas brancas se destacando na escuridão.

Abri a porta do Lata-Velha o mais rápido que consegui.

— Corre, senão vamos perdê-los.

— Está brincando? Consigo ouvi-los tagarelando daqui.

— Sério? — Eu sabia que Link tinha poderes, mas acho que não esperava que fossem tão poderosos.

— Não sou um desses super-heróis bobos como o Aquaman.

Link não se impressionava com minhas habilidades de Obstinado. Fora o fato de ser bom com um mapa e com o Arco Voltaico, não estava muito claro o que eu era capaz de fazer, nem o motivo. Então, é, Aquaman era a definição certa.

Link ainda estava falando.

— Estou pensando em Magneto ou Wolverine.

— Já conseguiu dobrar metal com a mente ou projetar as facas que tem dentro da mão?

— Não. Mas estou trabalhando nisso. — Link parou de andar. — Espere. Eles estão conversando.

— O que estão dizendo?

— O Sr. Eaton está procurando a chave Conjuradora para abrir a porta, e Amma está enchendo os ouvidos dele por perder as coisas. — Era a cara de Amma. — Espere. Ele encontrou a chave e está abrindo a porta. Agora, está ajudando Amma a descer. — Link fez uma pausa.

— O que está acontecendo?

Link deu alguns passos para a frente.

— O Sr. Eaton está indo embora. Amma desceu sozinha.

Eu não devia estar preocupado. Amma já tinha percorrido os túneis sozinha muitas vezes, normalmente para me encontrar. Mas eu tinha uma sensação ruim. Esperamos até o Sr. Eaton voltar para a picape e saímos correndo para a porta externa.

Link chegou primeiro, o que era difícil de não reparar, porque ele dava um novo significado à palavra velocidade. Eu me inclinei ao seu lado, observando o contorno da porta, um contorno que você jamais notaria se não estivesse procurando.

— E então, como entramos? Imagino que você não esteja com sua tesoura de jardinagem. — Na última vez em que estivemos ali, Link tinha aberto a porta com uma enorme tesoura de jardinagem que pegara do laboratório de biologia da Jackson.

— Não preciso. Tenho uma chave. — Olhei para a chave em forma de Lua crescente. Nem Lena tinha uma.

— Onde você roubou isso?

Link sacou meu ombro de leve. Caí para trás, na terra.

— Desculpa, cara. Não conheço minha própria força. — Ele me puxou para cima e colocou a chave na fechadura. — O tio de Lena me deu pra que pudesse me encontrar com ele naquele escritório arrepiante, pra aprender a ser um Incubus bom. — Era a cara de Macon, que passou anos aprendendo sozinho o controle necessário para se alimentar de sonhos mortais em vez de sangue.

Eu não conseguia evitar de pensar na alternativa: Hunting e sua gangue do Sangue e Abraham.

A chave funcionou, e Link abriu a porta com orgulho.

— Está vendo? Magneto. Eu falei.

Normalmente, eu faria uma piada, mas hoje não fiz. Link estava bem mais perto de ser Magneto do que eu.

Este túnel me lembrou de um calabouço em um velho castelo. O teto era baixo, e as paredes de pedra áspera estavam molhadas. O som de água pingando ecoava pelos corredores, embora não houvesse sinal da fonte. Eu já tinha estado neste túnel antes, mas ele parecia diferente hoje. Ou talvez eu é que tivesse mudado. Fosse como fosse, as paredes pareciam mais próximas, e eu queria chegar ao final.

— Anda logo, senão vamos perdê-la. — Na verdade, era eu quem estava fazendo com que fôssemos devagar, tropeçando na escuridão.

— Relaxe. Ela faz barulho como um cavalo andando sobre cascalho. Não tem jeito de a perdermos. — Não era uma analogia que Amma apreciaria.

— Você consegue mesmo ouvir os passos dela? — Eu não conseguia nem ouvir os dele.

— Consigo. Sinto o cheiro dela também. De grafite de lápis e balas de canela Red Hot.

Assim, Link seguiu o cheiro das palavras cruzadas e do doce favorito de Amma, e eu o acompanhei até ele parar na base de uma escadaria rudimentar que levava de volta ao mundo Mortal. Ele inspirou fundo, como costumava fazer quando uma das tortas de pêssego de Amma estava no forno.

— Ela subiu por ali.

— Tem certeza?

Link ergueu uma sobrancelha.

— Minha mãe dá sermão no pastor?

Link empurrou a pesada porta de pedra, e a luz invadiu o túnel. Estávamos atrás de algum prédio velho, e a porta ficava no meio dos tijolos lascados. O ar estava pesado e úmido, com o distinto aroma de cerveja e suor.

— Onde diabos estamos?

Nada parecia familiar.

— Não faço ideia.

Link andou até a frente do prédio. O cheiro de cerveja estava ainda mais forte. Ele olhou para dentro por uma janela.

— Parece uma espécie de bar.

Havia uma placa de ferro ao lado da porta: LOJA DO FERREIRO LAFITTE.

— Não parece uma loja de ferreiro.

— Porque não é. — Um homem idoso de chapéu panamá, como o que o último marido de tia Prue costumava usar, chegou por trás de Link. Ele se apoiava pesadamente na bengala. — Você está em frente a um dos prédios mais famosos de Bourbon Street, e a história deste lugar é tão famosa quanto a do próprio Quarter.

Bourbon Street. O French Quarter.

— Estamos em Nova Orleans.

— Certo. É claro que estamos. — Depois do verão, Link e eu sabíamos que os túneis podiam levar a qualquer lugar, e o tempo e a distância não funcionavam do mesmo jeito dentro deles. Amma também sabia.

O homem ainda estava falando.

— Dizem que Jean e Pierre Lafitte abriram uma oficina de ferreiro aqui, no final do século XVIII, como fachada para uma operação de contrabando. Eram piratas, que pilhavam galeões espanhóis e contrabandeavam o que roubavam para N’awlins, vendendo de tudo, de especiarias e móveis a carne e sangue. Mas, atualmente, quase todo mundo vem pela cerveja.

Eu me encolhi. O homem sorriu e inclinou o chapéu.

— Divirtam-se na Cidade Esquecida.

Não apostaria nisso.

O homem se apoiou ainda mais na bengala. Agora, estava segurando o chapéu na nossa frente, sacudindo-o com expectativa.

— Ah, claro. Certo. — Remexi no bolso, mas só tinha uma moeda de 25 centavos. Olhei para Link, que deu de ombros.

Cheguei mais perto para colocar a moeda no chapéu, e uma mão ossuda segurou meu pulso.

— Um menino inteligente como você. Eu sairia desta cidade e voltaria praquele túnel.

Soltei meu braço. Ele deu um grande sorriso, arreganhando os lábios sobre dentes amarelos e irregulares.

— Até a próxima.

Esfreguei o pulso e, quando voltei a olhar, ele tinha ido embora.

*    *    *

Não demorou muito para Link encontrar a trilha de Amma. Ele parecia um cão de caça. Agora eu entendia por que tinha sido tão fácil para Hunting e sua gangue nos encontrar quando estávamos procurando Lena e a Grande Barreira. Andamos pelo French Quarter até o rio. Eu sentia o cheiro da água turva misturada com suor e o cheiro de especiarias de restaurantes próximos. Mesmo à noite, a umidade pesava no ar, densa e intensa, como um casaco que você não conseguia tirar por mais que quisesse.

— Tem certeza de que estamos indo na direção certa…?

Link esticou o braço à minha frente, e eu parei.

— Shh. Balinhas de canela Red Hot.

Procurei na calçada à nossa frente. Amma estava de pé debaixo de um poste de luz, em frente a uma mulher creole sentada em um engradado plástico de leite. Andamos até a beirada do prédio com a cabeça baixa, torcendo para que Amma não reparasse em nós. Ficamos no meio das sombras próximas à parede, onde o poste lançava um pálido círculo de luz.

A mulher creole estava vendendo beignets na calçada, com o cabelo arrumado em centenas de pequenas tranças. Ela lembrava Twyla.

Te te beignets? Vai comprar? — A mulher esticou um embrulho de tecido vermelho. — Você compra. Lagniappe.

— Lan-yap o quê? — murmurou Link, confuso.

Apontei para o embrulho e sussurrei em resposta:

— Acho que a mulher está oferecendo alguma coisa para Amma, se ela comprar beignets.

— Comprar o quê?

— É tipo um donut.

Amma entregou alguns dólares para a mulher e pegou os beignets e o embrulho vermelho com as mãos enluvadas. A mulher olhou ao redor, com as tranças balançando sobre os ombros. Quando pareceu segura de que ninguém estava ouvindo, sussurrou alguma coisa rapidamente no que pareceu francês creole. Amma assentiu e colocou o embrulho na bolsinha.

Dei uma cotovelada em Link.

— O que elas disseram?

— Como eu poderia saber? Posso ter audição supersônica, mas não falo francês.

Não importava. Amma já estava andando na direção oposta, com expressão indecifrável. Mas alguma coisa estava errada.

Esta noite estava errada. Eu não estava seguindo Amma até o pântano de Wader’s Creek para encontrar Macon. O que a mandaria para 1.500 quilômetros de casa no meio da noite? Quem ela conhecia em Nova Orleans?

Link tinha uma pergunta diferente.

— Aonde ela está indo?

Também não tinha resposta para essa pergunta.

Quando conseguimos alcançar Amma na rua St. Louis, ela estava deserta. E isso fazia sentido, considerando onde estávamos. Olhei para os altos portões de ferro do cemitério de St. Louis nº. 1.

— É mau sinal quando há tantos cemitérios a ponto de precisarem numerá-los. — Embora fosse parte Incubus, Link não parecia disposto a andar no cemitério à noite. Dezessete anos como batista sulista temente a Deus fizeram o serviço.

Abri o portão.

— Vamos resolver logo isso.

O cemitério de St. Louis nº. 1 era diferente de qualquer outro cemitério que eu já tinha visto. Não havia gramado cheio de lápides, nem carvalhos retorcidos. Esse lugar era uma cidade dos mortos. As passagens estreitas eram ladeadas por decorados mausoléus em vários estágios de degradação, alguns do tamanho de casas de dois andares. Os mais impressionantes tinham cercas de ferro preto forjado ao redor, com enormes estátuas de santos e anjos olhando para baixo dos topos dos telhados. Era um local onde as pessoas homenageavam seus mortos. A prova estava entalhada no rosto de cada estátua e em cada nome gasto que tinha sido tocado centenas de vezes.

— Este lugar faz o Jardim da Paz Perpétua parecer um lixão. — Por um minuto, pensei em minha mãe. E entendi a vontade de construir uma casa de mármore para alguém que você amava, que era exatamente o que este lugar parecia ser.

Link não estava impressionado.

— Não faz diferença. Quando eu morrer, jogue um pouco de terra por cima de mim. Poupe seu dinheiro.

— Certo. Me lembre disso em algumas centenas de anos, quando eu estiver no seu enterro.

— Bem, então acho que sou eu quem vai jogar terra no seu…

— Shh! Ouviu isso? — Era o som de cascalho estalando. Não éramos os únicos ali.

— É claro…

A voz de Link sumiu quando uma sombra passou por mim. Tinha a mesma característica nebulosa de um Espectro, mas era mais escura e não tinha os traços que faziam os Espectros parecerem quase humanos. Conforme se movia ao meu redor, e até através de mim, senti o pânico familiar dos meus sonhos me esmagando. Estava encurralado em meu próprio corpo, incapaz de me mexer.

Quem é você?

Tentei me concentrar na sombra para ver alguma coisa além do ar escuro e nebuloso, mas não consegui.

O que você quer?

— Ei, cara. Você está bem? — Ouvi a voz de Link, e a pressão se dissipou, como se alguém estivesse ajoelhado no meu peito e se levantasse de repente. Link estava olhando para mim. Eu me perguntei há quanto tempo estava falando.

— Estou bem. — Não estava, mas não queria dizer para ele que estava… o quê? Vendo coisas? Tendo pesadelos com rios de sangue e quedas de torres de água?

Conforme penetramos no cemitério, os túmulos com detalhes complexos e aqueles em ruínas deram lugar a passagens alinhadas de mausoléus completamente destroçados. Alguns eram feitos de madeira, como as cabanas destruídas em partes do pântano de Wader’s Creek. Li os sobrenomes que ainda estavam visíveis: Delassixe, Labasiliere, Rousseau, Navarro. Eram nomes creole. O último da fileira ficava separado do resto; era uma estrutura de pedra estreita, com não mais que alguns metros de largura. Era em estilo neoclássico grego, como Ravenwood. Mas, enquanto a casa de Macon era como uma imagem que você poderia encontrar em um livro de fotografia da Carolina do Sul, esse túmulo não era nada de mais. Até eu chegar mais perto.

Cordões de contas, repletos de cruzes e rosas vermelhas de seda, estavam pendurados ao lado da porta, e a pedra estava entalhada com centenas de X rudimentares de várias formas e tamanhos. Havia outros desenhos estranhos, claramente feitos por visitantes. O chão estava coberto de presentes e lembranças: bonecas de Mardi Gras e velas religiosas com rostos de santos pintados no vidro, garrafas vazias de rum e fotos apagadas, cartas de tarô e mais cordões de contas coloridas.

Link se inclinou e girou uma das cartas sujas entre os dedos. A Torre. Eu não sabia o que significava, mas qualquer carta com pessoas caindo de janelas não podia ser boa.

— Chegamos. É aqui.

Olhei ao redor.

— Do que você está falando? Não tem nada aqui.

— Eu não diria isso. — Ele apontou para a porta do mausoléu com a carta manchada pela água. — Amma entrou ali.

— Está brincando, né?

— Cara, eu brincaria sobre entrar em um túmulo apavorante à noite, na cidade mais assombrada do sul? — Link balançou a cabeça. — Porque sei que é isso que você vai me dizer que vamos fazer.

Eu também não queria entrar lá.

Link jogou a carta de volta sobre a pilha, e reparei em uma placa de latão na base da porta. Eu me inclinei e li o que consegui à luz da Lua:

MARIE LAVEAU. ESTE TÚMULO NEOCLÁSSICO GREGO TEM A FAMA DE SER O LOCAL ONDE FOI ENTERRADA ESSA CONHECIDA “RAINHA VODU”.

Link deu um passo para trás.

— Uma rainha vodu? Como se não tivéssemos problemas suficientes.

Eu não estava prestando muita atenção.

— O que Amma estaria fazendo aqui?

— Não sei, cara. As bonecas de Amma são uma coisa, mas não sei se meus poderes de Incubus funcionam em rainhas vodu mortas. Vamos embora.

— Não seja idiota. Não tem nada pra ter medo. Vodu é apenas mais uma religião.

Link olhou em volta, nervoso.

— É, uma religião na qual as pessoas fazem bonecas e as perfuram com alfinetes. — Devia ser o que ele ouviu da mãe.

Mas eu tinha passado tempo suficiente com Amma para saber. O vodu era parte da herança dela, a mistura de religiões e misticismo que era tão única quanto sua comida.

— Essas são as pessoas que tentam usar o poder do mal. Não é disso que se trata.

— Espero que você esteja certo. Porque não gosto de alfinetes.

Coloquei a mão na porta e empurrei. Nada.

— Talvez esteja Enfeitiçada, como uma porta Conjuradora.

Link bateu com o ombro nela, e a porta deslizou pelo piso de pedra ao abrir para dentro do mausoléu.

— Ou talvez não.

Entrei com cuidado, na esperança de ver Amma inclinada sobre ossos de galinha. Mas o mausoléu estava escuro e vazio, exceto pelo recipiente de cimento que guardava o caixão, pela poeira e pelas teias de aranha.

— Não tem nada aqui.

Link andou até o fundo da pequena cripta.

— Não tenho tanta certeza disso. — Passou os dedos pelo chão. Havia um quadrado entalhado na pedra, com um aro de metal no meio. — Olha isso. Parece uma espécie de alçapão.

Era um alçapão que levava para debaixo de um cemitério, que ficava no mausoléu de uma rainha vodu. Era mais do que escurecer, até mesmo para Amma.

Link estava com a mão no aro de metal.

— Vamos fazer isso ou não?

Eu assenti, e ele abriu a porta.