Capítulo 9

Dou voltas na cama durante quase toda a noite e, quando finalmente consigo adormecer, tenho pesadelos em que algumas pessoas são enfileiradas, mesmo à porta da minha confeitaria, e obrigadas a marchar para dentro de comboios. No meu sonho, corro por entre a multidão, tentando encontrar a Mamie, mas ela não está lá. Acordo com suores frios, às duas e meia da manhã, e, apesar de normalmente sair para trabalhar apenas às três e quarenta e cinco, levanto-me da cama, visto-me apressadamente e saio para sentir o ar puro. Sei que não vou conseguir dormir nem mais um segundo.

A maré deve estar baixa pois, enquanto me encaminho para o carro, sinto o cheiro a sal e lodo proveniente da baía, a dois quarteirões de distância. Na quietude da madrugada, ouço o som longínquo das ondas a chegar à praia. Antes de entrar no carro, permaneço de pé por momentos, respirando fundo. Sempre adorei o cheiro da água salgada; faz-me lembrar a minha infância, quando o meu avô nos visitava após um dia de pesca e, ainda com o odor do mar na pele, me baloiçava no ar.

– Quem é a menina que mais adoro no mundo? – perguntava, enquanto me fazia voar, como a Supermulher, à volta da sala.

– Euuuuu! – gritava com um risinho, encantada, sempre como se fosse a primeira vez. Já tinha percebido, mesmo tão pequena, que a minha mãe era, por vezes, fria e instável, e a minha avó terrivelmente reservada.

Já o meu avó cobria-me de beijos, lia-me histórias para adormecer, ensinava-me a pescar e jogar basebol e chamava-me «a sua compincha».

Enquanto ligo o motor do carro, apercebo-me de que sinto muito a sua falta. Ele saberia o que fazer a respeito da Mamie. Pergunto-me repentinamente se ele conheceria os segredos que ela guardou. Se conhecia, nunca o deixou transparecer. Sempre julguei que eles tinham um bom casamento, mas poderá uma relação sobreviver verdadeiramente se houver mentiras a enfraquecer as suas raízes?

Passam poucos minutos das três quando entro na confeitaria. Maquinalmente, retiro do frigorífico os muffins, os biscoitos e os queques do dia anterior, que, mais tarde, vou colocar nos expositores. Em seguida, sento-me e navego na Internet. Só uma hora mais tarde terei de começar a preparação dos bolos do dia.

Inicio a sessão no meu e-mail e fico sobressaltada quando vejo uma mensagem do Gavin, enviada para o endereço das encomendas pela Internet pouco depois da meia-noite.

Olá, Hope,

Pareceu-me boa ideia enviar-te os links das organizações de que te falei. Os sites www.yadvashem.org e www.jewishgen.org são os melhores para começares a tua pesquisa. Depois, podes tentar o Mémorial de la Shoah, o Memorial do Holocausto, em Paris. Creio que possuem bons registos de vítimas francesas do Holocausto. Contacta-me se precisares de ajuda.

Boa sorte,

Gavin

Faço uma pausa e respiro fundo, preparando-me para o que aí vem, e, em seguida, clico no primeiro link, que me leva até uma base de dados composta por nomes de vítimas do Holocausto. Sob a caixa de pesquisa, explicam que a base de dados inclui registos sobre metade dos seis milhões de judeus assassinados durante a Segunda Guerra Mundial. Repentinamente, sinto o estômago às voltas; já conhecia este número, mas agora a questão é mais pessoal. Seis milhões. Meu Deus. Penso mais uma vez que, seja como for, o Gavin deve estar enganado no que respeita à Mamie. Tem de estar.

O texto da página principal explica também que milhões de vítimas permanecem por identificar. Interrogo-me como é isto possível sete décadas depois. Como pode haver tantas pessoas perdidas para sempre?

Volto a respirar fundo, escrevo Picard e Paris, e seleciono «Pesquisa». Surgem dezoito resultados e o meu coração dispara quando examino a lista. Nenhum dos nomes próprios corresponde aos que a Mamie me indicou, e eu não sei se me devo sentir aliviada ou desiludida. Contudo, há uma Annie na lista, o que subitamente me deixa agoniada. Seleciono o nome, sem me aperceber de que a minha mão treme. Leio o texto, muito curto; esta rapariga nasceu em dezembro de 1934, informam. Viveu em Paris e Marselha e morreu em 10 de julho de 1943, em Auschwitz. Faço rapidamente as contas. Não chegou a completar nove anos.

Penso na minha Annie. No seu nono aniversário, o Rob e eu levámo-la com três amigas a Boston para uma festa, durante a tarde, no Park Plaza. Disfarçadas de pequenas princesas, soltavam risinhos enquanto degustavam pequenas sanduíches preparadas com pão sem côdea. A fotografia que tirei à Annie, com o seu vestido rosa-claro e o seu cabelo comprido e solto, a soprar a vela que colocámos num queque da cor do vestido, ainda é uma das minhas preferidas.

Porém, a pequena Annie Picard de Paris não celebrou o nono aniversário. Não foi adolescente, não conversou sobre maquilhagem com a mãe, não se apoquentou com trabalhos de casa, não se apaixonou nem viveu tempo suficiente para perceber o que, na verdade, desejava ser.

Apercebo-me repentinamente de que estou a chorar. Não sei sequer quando me caíram as primeiras lágrimas. Fecho rapidamente a página, enxugo os olhos e afasto-me do computador. Preciso de quinze minutos a trabalhar freneticamente na cozinha para me recompor.

Dedico mais trinta minutos a explorar o primeiro site que o Gavin me indicou, e quase tudo o que encontro me horroriza. Recordo-me de ler o Diário de Anne Frank na escola e de estudar o Holocausto nas aulas de História, mas, por algum motivo, o contacto com estas informações na idade adulta tem um impacto totalmente diferente.

Sucedem-se números e factos perturbadores. Viviam em Paris, em 1939, quando a guerra rebentou, duzentos mil judeus. Cinquenta mil morreram. Os nazis começaram a deter judeus parisienses em maio de 1941, quando juntaram três mil e setecentos e os enviaram para campos de detenção. Em junho de 1942, todos os judeus de Paris foram forçados a usar estrelas-de-David amarelas com a palavra juif, que em francês significa judeu. Um mês depois, em 16 de julho de 1942, teve lugar uma rusga em grande escala e doze mil judeus – a maioria nascida no estrangeiro – foram levados para um estádio denominado Vélodrome d’Hiver e mais tarde deportados para Auschwitz. Até 1943, os nazis percorriam orfanatos, lares da terceira idade e hospitais, prendendo os mais vulneráveis. Esta imagem agonia-me.

Escrevo Picard na segunda base de dados que o Gavin me indicou. Encontro três Picard sobreviventes num jornal de Munique e mais três – incluindo uma outra Annie Picard – apresentados como sobreviventes e que residem em Itália. Existem mais três Picard no registo de óbitos do campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, e onze nos registos de Dachau, na Alemanha. Há trinta e sete Picard numa lista de sete mil trezentos e quarenta e seis deportados franceses que morreram. Encontro novamente Annie Picard, de oito anos, nesta lista, e regressam as lágrimas. Tenho os olhos de tal forma toldados que quase me passam despercebidos dois nomes familiares surgidos no ecrã. Cécile Picard – o segundo nome da lista da Mamie – e Danielle Picard – o último.

Com o coração agitado, leio os pormenores associados ao primeiro nome.

Cécile Picard. Nascida Cécile Pachcinski em 30 de maio de 1901, em Cracóvia, na Polónia. Residente em Paris, França. Deportada para Auschwitz, 1942. Faleceu no outono de 1942.

Engulo em seco algumas vezes. Cécile Picard teria quarenta e um anos na data da sua morte. Apenas mais cinco do que tenho agora. Sei que a Mamie nasceu em 1925 e, por conseguinte, teria dezassete anos em 1942. Poderia Cécile ser a sua mãe? A minha bisavó? Se assim for, porque nunca falámos sobre o assunto?

Pestanejo algumas vezes e, enquanto leio as informações sobre Danielle, sinto um nó na garganta.

Danielle Picard. Nascida em 4 de abril de 1937. Residente em Paris, França. Deportada para Auschwitz. Faleceu em 1942.

Tinha apenas cinco anos.

Fecho os olhos e tento voltar a respirar normalmente. Após breves instantes, procuro no Google a terceira organização sugerida pelo Gavin, o Mémorial de la Shoah. Sigo o link e introduzo o primeiro nome da lista da Mamie, Albert Picard, na caixa de pesquisa. Os meus olhos arregalam-se quando o encontro.

Monsieur Albert PICARD. Né le 26/03/1897. Déporté à Auschwitz par le convoi n.o 58 au départ de Drancy le 31/07/1942. De profession médecin.

Copio rapidamente o texto para um programa de tradução na Internet e leio atentamente o resultado. «Albert Picard. Nascido em 26 de março de 1897. Deportado para Auschwitz no comboio n.o 58, proveniente de Drancy, em 31 de julho de 1942. Era médico.»

Atordoada, escrevo os outros nomes da família. Não existem informações sobre o que lhes sucedeu, apenas constam as datas das deportações. Tinham sido todos deportados para Auschwitz nos comboios 57 ou 58, no final de julho de 1942.

Encontro todos os nomes exceto o de Alain, que, segundo a lista da Mamie, teria onze anos quando foi preso. Fito o ecrã, desconcertada.

Consulto o relógio. Nos Estados Unidos, são cinco e meia da manhã. Em França são mais seis horas, logo é provável que haja alguém disponível nas instalações do Mémorial de la Shoah. Respiro fundo, procurando não pensar na minha conta telefónica, e marco o número indicado no monitor.

Seis toques depois, ouço o atendedor de chamadas em França. Desligo e volto e ligar, mas o resultado é o mesmo. Consulto novamente o relógio. O Memorial deve estar aberto. Marco o número uma terceira vez e, após alguns instantes, atende uma mulher que me fala em francês.

– Olá – digo, suspirando de alívio. – Estou a telefonar dos Estados Unidos e, infelizmente, não falo francês.

A mulher passa de imediato a falar inglês, ainda que com uma pronúncia acentuada.

– O Memorial está fechado – diz. – É sábado. Fechamos sempre ao sábado. Respeitamos o Sabat. Estou aqui apenas a concluir uma pesquisa.

– Oh! – digo, de coração apertado. – Peço desculpa, não me tinha apercebido. – Faço uma pausa e pergunto, em voz baixa: – Poderá talvez responder-me rapidamente a uma pergunta?

– Isso é contrário às nossas regras. – O seu tom é firme.

– Por favor – digo timidamente. – Estou a tentar encontrar uma pessoa.

Ela permanece em silêncio por um momento e, em seguida, suspira.

– Está bem. Rapidamente.

Explico com a brevidade possível que procuro pessoas que podiam pertencer à família da minha avó e que encontrei todos os nomes menos um. Ela suspira novamente e informa-me de que o Memorial possui um dos melhores registos da Europa porque as deportações eram meticulosamente registadas pela polícia francesa, que era, aliás, quem as realizava.

– Em toda a Europa – diz –, desapareceu metade dos registos. Contudo, em França, conhecemos os nomes de quase todas as pessoas deportadas do nosso país.

– Mas como posso descobrir o que lhes aconteceu após as deportações? – pergunto.

– Em muitos casos, não pode, infelizmente – diz. – Mais, bom, em certos casos isso é possível. Conservamos nestas instalações os registos escritos, os documentos de recenseamento e outros recursos. Alguns dos registos de deportação incluem observações sobre o destino final das pessoas.

– E como descubro Alain Picard? O nome que não consta da vossa base de dados?

– Isso é mais difícil – assevera. – Se não foi deportado, não temos qualquer registo sobre ele. Contudo, pode visitar-nos e examinar os nossos registos. Temos um bibliotecário que a ajudará. Talvez encontre o nome que procura.

– Ir a Paris? – pergunto.

Oui – diz. – É a única solução.

– Obrigada – murmuro. – Merci beaucoup.

De rien – responde. – Talvez a veja em breve?

Hesito, mas apenas por breves momentos.

– Sim, talvez me veja em breve.

Fico de tal modo abalada pelos resultados da pesquisa, e pela conversa com a senhora do Memorial, que me atraso a colocar as tartes das estrelas no forno e a preparar as rosas de amêndoa. Nem parece meu; cumprir rigorosamente o horário da manhã é, na maior parte dos dias, o que assegura a minha sanidade mental. Por esse motivo, quando o despertador da cozinha dispara, alertando-me que são seis da manhã, hora de abrir a porta principal, impera na confeitaria uma desordem incaracterística.

Precipito-me para a porta principal e surpreendo-me ao ver o Gavin aguardar na rua, pacientemente. Quando me vê através do vidro, sorri e ergue a mão para me cumprimentar. Destranco a porta.

– Porque não bateste? – pergunto, abrindo a porta para o lado de fora. – Eu ter-te-ia deixado entrar.

Ele entra e observa-me enquanto ligo as luzes do letreiro que diz «Aberto».

– Não estou aqui há muito tempo – afirma. – Além disso, abres a confeitaria às seis. Não me pareceu correto incomodar-te antes disso.

Com um gesto, convido-o a seguir-me.

– Tenho tartes no forno. Desculpa; esta manhã estou um pouco atrasada. Café?

– Claro – diz. Ele detém-se no balcão, mas eu faço novo gesto, convidando-o a entrar na cozinha.

– Posso ajudar em alguma coisa? – pergunta, arregaçando as mangas como se já estivesse preparado para se entregar ao trabalho. Eu abano a cabeça e sorrio.

– Não, eu dou conta disto – digo. – A não ser que consigas voltar atrás no tempo para eu deixar de estar atrasada.

Começo por moer uma chávena de grãos de café mas, quando me volto, é com surpresa que vejo o Gavin repor a água da máquina de café e colocar um filtro no respetivo cesto, parecendo sentir-se totalmente em casa.

– Obrigada – digo.

– A manhã está a ser difícil? – pergunta.

– Estranha. Recebi o teu e-mail. Obrigada.

– Ajudou?

– Passei algum tempo naquelas páginas – confirmo.

– E?

– E só não encontrei um nome da lista da minha avó. – Coloco o café moído no filtro, e o Gavin seleciona o botão de preparação. Por instantes, permanecemos em silêncio, enquanto o café começa a borbulhar e a cair na cafeteira. – Não consegui encontrar o Alain. Quanto aos outros, foram todos deportados. Em 1942. A mais jovem tinha cinco anos. A mãe não era muito mais velha do que sou hoje. – Inspiro profundamente e sinto um aperto no peito. – Ainda não estou convencida de que era a família da minha avó.

– E porquê?

Sinto um súbito embaraço e evito o seu olhar.

– Não sei. Isso muda tudo.

– O quê, concretamente?

– A identidade da minha avó – respondo.

– Nem por isso – diz ele.

– Muda a minha identidade – acrescento em voz baixa.

– Tens a certeza?

– Torna-me metade judia. Ou um quarto judia, suponho.

– Não – diz o Gavin. – Significa apenas que tiveste sempre contigo essa parte do seu passado. Significa que sempre foste um quarto judia. Não muda nada daquilo que realmente és.

Subitamente, sinto estar a falar com um terapeuta, e isso não me agrada.

– Não importa – concluo. A cafeteira apenas está meio cheia, mas eu retiro-a abruptamente e encho uma chávena para dar ao Gavin enquanto mudo de assunto. – Hoje chegaste mais cedo do que o habitual.

Mal profiro estas palavras, receio que ele pense que o estou a controlar. Sinto-me corar, mas o Gavin parece não se aperceber.

– Não conseguia dormir. E queria saber como estava a correr a tua pesquisa.

Aceno com a cabeça, assimilando a frase enquanto preparo a minha chávena de café.

– Vais a Paris? – pergunta ele.

– Não posso, Gavin.

O temporizador do forno dispara, e eu sinto o Gavin observar-me enquanto calço as luvas de cozinha e retiro dois tabuleiros de tartes das estrelas. Diminuo a temperatura cinquenta graus para os croissants que já enrolei e modelei e encaminho-me para a parte da frente da confeitaria para verificar se entrou alguém sem eu ouvir o carrilhão da porta. A sala está vazia. O Gavin aguarda que eu introduza os croissants no forno antes de voltar a falar.

– Porque não podes ir? – insiste.

Mordo o lábio.

– Não me posso dar ao luxo de fechar a confeitaria.

O Gavin está pensativo, e eu procuro censura nos seus olhos, mas sem a encontrar.

– Pois – diz ele lentamente. Reparo que não pede qualquer justificação, e isso deixa-me satisfeita. Não quero ter de explicar a minha situação a ninguém. – Mas não podes pedir a alguém que tome o teu lugar durante alguns dias? – pergunta pouco depois. Sem intenção, solto uma risada amarga.

– Quem? A Annie não tem, oficialmente, idade suficiente para trabalhar aqui. Não tenho dinheiro para contratar outra pessoa.

O Gavin observa-me, pensativo.

– Tens certamente amigos que te podem ajudar.

– Não, não tenho – digo, acrescentando interiormente Eis mais um dos meus muitos insucessos na vida.

Somos interrompidos pelo carrilhão da porta principal, e eu saio da cozinha para atender o meu primeiro cliente do dia. É Marcie Golgoski, que dirige a biblioteca da cidade desde que eu era criança. Enquanto lhe sirvo café num copo para levar e lhe embrulho um muffin de mirtilo – como habitualmente – espero que o Gavin permaneça na cozinha. Sei o que ela pensaria se soubesse que ele estava comigo nas traseiras, e não gosto que ninguém na cidade faça conjeturas sobre a minha vida pessoal. Por muito que goste desta cidade, reconheço que tem demasiados boatos.

O temporizador do forno dispara novamente quando acabo de atender Marcie, e eu apresso-me a regressar à cozinha depois de ela sair, receando ter deixado os croissants no forno alguns segundos a mais. Surpreendo-me ao ver o Gavin colocar os croissants numa grelha metálica.

– Obrigada – digo.

Ele acena com a cabeça e retira as pegas.

– Tenho de ir – declara. – Mas estás enganada.

– Em relação a quê? – pergunto. Tenho de reconhecer que devo estar enganada em relação a muitas coisas.

– Ao facto de não teres amigos – diz. – Tens-me a mim.

Sem saber o que responder, permaneço em silêncio. Contudo, de um momento para o outro, o meu coração acelera e eu sinto-me corar.

– Sei que pensas que sou só o tipo que repara canos e coisas assim – acrescenta, instantes depois.

Sinto-me corar ainda mais.

– Sou uma desgraça – digo finalmente. – Porque haverias de querer ser meu amigo?

– Respondo-te como a qualquer outro amigo – afirma o Gavin. – Porque gosto de ti.

Fico a vê-lo desaparecer pela porta principal.

A Annie está milagrosamente amável quando regressa à confeitaria de tarde; parece tão bem-disposta que eu não menciono a pesquisa que fiz na Internet nem os meus pensamentos contraditórios sobre Paris; não suporto a ideia de termos mais uma discussão. Ela vai regressar a casa do pai, para lá passar a noite e, enquanto lavamos os pratos lado a lado na cozinha depois de fechada a confeitaria, ela quebra o nosso silêncio amistoso fazendo uma pergunta.

– Então tu, tipo, namoras com o Matt Hines ou assim? – pergunta.

Abano vigorosamente a cabeça.

– Não. De todo.

A Annie parece cética.

– Acho que ele não pensa o mesmo.

– Porque dizes isso?

– A forma como olha para ti – diz. – E fala contigo. Tudo muito, tipo, possessivo. Como se fosses namorada dele.

Reviro os olhos.

– Bom, ele vai perceber de certeza que não sou.

– Porque é que nunca, tipo, namoras? – pergunta a Annie após uma pausa; pela forma como fita o lava-louça em vez de olhar para mim, fico com a sensação de que a conversa a deixa desconfortável. Pergunto-me porque a terá iniciado.

– O teu pai e eu não nos divorciámos há muito tempo – respondo, segundos depois.

A Annie lança-me um olhar estranho.

– E então, queres voltar para o pai ou assim?

– Não! – digo de imediato, com grande convicção. – Não. Só não esperava ficar solteira novamente. Além disso, neste momento, tu és a minha prioridade, Annie. – Faço uma pausa e pergunto: – Porquê?

– Por nada – apressa-se a dizer a Annie. Permanece depois em silêncio alguns instantes. Conheço-a o suficiente para saber que, se eu não insistir, ela acaba por dizer o que pensa. Ou, pelo menos, uma versão aproximada do que pensa. – É estranho, apenas isso.

– O que é estranho?

– Que não tenhas namorado ou assim.

– Não me parece estranho, Annie – discordo. – Nem todas as pessoas têm de estar comprometidas. – Não quero que a Annie se transforme, mais tarde, numa daquelas raparigas que se sentem incompletas sem uma relação. Não me ocorreu, até este momento, que ela podia estar perdida em pensamentos deste tipo.

– O pai tem uma relação – murmura. Fita novamente o lava-louça, e eu não consigo perceber o que me magoa mais nas suas palavras: a perceção súbita de que o Rob me esqueceu muito rapidamente ou o facto de isso incomodar claramente a Annie. De qualquer modo, sinto que levei um murro no estômago.

– Tem? – pergunto com a serenidade possível. – E o que pensas sobre isso?

– Não me importo.

Não intervenho, aguardando apenas que continue. Ela quebra novamente o silêncio.

– Ela está sempre presente, sabes? A namorada dele. Ou lá o que é.

– Nunca me falaste sobre ela.

– Pensei que isso te faria sentir mal – murmura a Annie, encolhendo os ombros.

Pestanejo algumas vezes.

– Não tens de te preocupar com isso, Annie. Podes contar-me o que quiseres.

Ela assente, mas eu noto que me observa, receosa. Finjo estar concentrada na louça.

– Como se chama? – pergunto descontraidamente.

– Sunshine – murmura.

Sunshine? – interrompo o que estou a fazer e arregalo os olhos. – O teu pai tem uma relação com uma mulher chamada Sunshine1?

Pela primeira vez, a Annie deixa fugir um sorriso.

– É um nome bastante idiota – concorda. Eu solto um grunhido e volto ao tabuleiro que estou a lavar.

– E tu gostas dela? – pergunto, após uma pausa.

A Annie encolhe os ombros. Fecha a torneira, pega num pano e começa a limpar uma tigela de aço inoxidável.

– Acho que sim – diz.

– Ela é simpática contigo? – insisto, convicta de que me está a escapar alguma coisa.

– Acho que sim – repete. – Seja como for, ainda bem que não tens namorado, mãe.

Aquiesço e tento introduzir algum humor.

– Pois, os homens disponíveis não fazem propriamente fila à minha porta.

A Annie parece confusa, como se não tivesse entendido a minha provocação autodepreciativa.

– De qualquer forma – diz –, estávamos melhor quando éramos uma família. Sem estranhos.

Resisto à tentação de concordar, pois seria uma atitude egoísta. Devo fazer sempre o mais correto, não é? E o mais correto, neste momento, é ajudá-la a entender que, mais cedo ou mais tarde, o pai e eu temos de seguir em frente.

– Podemos continuar a ser uma família, Annie – afirmo. – A circunstância de o teu pai ter uma namorada não muda o que ele sente por ti.

A Annie olha-me com indiferença.

– Tanto faz.

– Querida, o teu pai e eu amamos-te muito – asseguro. – Isso nunca mudará.

– Tanto faz – repete. Coloca a tigela no escorredor. – Posso ir agora? Tenho muitos trabalhos de casa para fazer.

Aceno lentamente com a cabeça e vejo-a tirar o avental e pendurá-lo cuidadosamente no cabide junto ao frigorífico maior.

– Querida? – arrisco. – Estás bem?

Ela assente, pega na mochila e atravessa a cozinha para me dar um beijo esquivo e inesperado no rosto.

– Adoro-te, mãe – diz.

– Eu também te adoro, querida. Estás bem, de certeza?

– Sim, mãe. – O tom enfadado está de volta, e ela revira os olhos. Sai da cozinha sem me deixar dizer mais nada.

Visito a Mamie à noite, logo após o fecho da confeitaria. Durante a viagem, invadem-me sensações de agitação, melancolia e pavor que não consigo entender totalmente. No espaço de um ano, tornei-me numa mulher divorciada e proprietária de uma confeitaria e que é odiada pela filha. Agora, existe também a possibilidade de ser judia. Sinto-me como se já não soubesse quem sou.

A minha avó está sentada junto à janela da sala, a olhar para leste, e eu entro sem avisar.

– Oh, querida – diz, virando-se na cadeira. – Não te ouvi bater à porta!

– Olá, Mamie – digo. Atravesso a sala, beijo-a no rosto e sento-me a seu lado. – Sabes quem sou? – pergunto, hesitante, pois todo o nosso diálogo vai depender do seu grau de lucidez.

– Claro, querida – declara, pestanejando. – És a minha neta. A Hope.

– Exatamente – confirmo, aliviada.

– Que pergunta tonta – censura.

Respiro fundo.

– Tens razão. Que pergunta tonta.

– E como estás, minha querida? – pergunta.

– Estou bem, obrigada – digo. Faço uma pausa, procurando a melhor forma de averiguar o que preciso de saber. – Estava só a pensar no que me disseste naquela noite e tenho algumas perguntas para te fazer.

– Aquela noite? – questiona a Mamie. Inclina a cabeça para o lado e olha-me fixamente.

– A respeito da tua família – digo delicadamente.

Entrevejo um brilho vacilante nos seus olhos, e os seus dedos ligeiramente deformados movem-se subitamente, remexendo as borlas das extremidades do seu cachecol.

– Na praia, naquela noite – continuo.

– Não fomos à praia. Estamos no outono – corrige, encarando-me.

Faço uma pausa antes de responder.

– Pediste-nos, à Annie e a mim, para te levarmos. Contaste-nos algumas coisas.

A Mamie parece ainda mais confusa.

– Annie?

– A minha filha – recordo. – Tua bisneta.

– Claro que sei quem é a Annie! – dispara, desviando o olhar.

– Tenho de te perguntar uma coisa, Mamie – digo, alguns segundos depois. – É muito importante.

Ela volta a olhar pela janela, e eu convenço-me de que não me ouviu. Contudo, acaba por me dar uma resposta lacónica.

– Sim.

– Mamie – digo lentamente, articulando cada sílaba para que não haja mal-entendidos. – Preciso de saber se és judia.

Ela volta-se tão abruptamente para mim que recuo na cadeira, sobressaltada. O seu olhar fulmina-me e ela abana a cabeça violentamente.

– Quem te disse tal coisa? – pergunta com uma voz aguda e frágil.

É com surpresa que sinto o meu coração apertar-se ligeiramente. Percebo agora que, por muita dificuldade que tenha em acreditar na teoria do Gavin, não a posso pôr de parte.

– N-ninguém – digo. – Pensei apenas…

– Se eu fosse judia, teria de usar a estrela – prossegue a minha avó, exasperada. – É o que diz a lei. Não vês aqui a estrela amarela, pois não? Não faças acusações que não possas provar. Vou para os Estados Unidos para visitar o meu tio.

Olho-a com atenção. O seu rosto está ruborizado e os seus olhos lançam fogo.

– Mamie, sou eu – digo suavemente. – A Hope.

Contudo, ela parece não me ouvir.

– Se continuar a importunar-me, vou denunciá-la – diz. – Estou sozinha, mas isso não lhe dá o direito de se aproveitar de mim.

Abano a cabeça.

– Não, Mamie, eu nunca…

Ela interrompe-me.

– Agora, se me dá licença… – Observo-a, boquiaberta, levantar-se com surpreendente agilidade e caminhar diligentemente para o quarto. Fecha a porta com estrondo.

Levanto-me e começo a segui-la, mas acabo por ficar paralisada. Não sei o que dizer nem fazer. Sinto-me mal por tê-la perturbado. A violência da sua resposta confunde-me.

Momentos depois, bato tenuemente à sua porta. Consigo ouvi-la levantar-se da cama e escuto ainda o queixume das molas do seu velho colchão. Ela abre a porta e sorri.

– Olá, querida – diz. – Não te ouvi chegar. Peço desculpa. Estava só a corrigir o bâton .

De facto, tem uma nova camada cor de vinho nos lábios. Fito-a durante alguns segundos.

– Sentes-te bem? – pergunto, hesitante.

– Claro, querida – responde animadamente.

Respiro fundo. Parece não se lembrar, de todo, da explosão que teve momentos antes. Desta vez, agarro-lhe as mãos. Preciso de uma resposta.

– Mamie, olha para mim – digo. – Sou a tua neta, Hope. Lembras-te?

– Claro que sim. Não digas tolices.

Aperto-lhe as mãos com firmeza.

– Ouve, Mamie, não te vou magoar. Gosto mesmo muito de ti. Mas preciso de saber se a tua família é judia.

Os seus olhos fulminam-me novamente mas, desta vez, mostro-me irredutível e não a deixo desviar o olhar.

– Mamie, sou eu – digo. Sinto-a cerrar os punhos sob as minhas mãos. – Não te vou fazer mal. Mas preciso de uma resposta.

Ela observa-me por instantes e, em seguida, afasta-se. Sigo-a enquanto caminha ansiosamente para junto da janela da sala. Quando começo a pensar que se esqueceu da pergunta, ela fala, por fim, numa voz tão suave como um murmúrio.

– Deus está em toda a parte, querida – declara. – Não o conseguirás definir em nenhuma religião. Não sabes isso?

Coloco a mão nas suas costas e encoraja-me perceber que ela não se retrai. Olha fixamente o céu, enquanto o azul se esbate no mar ao longo do horizonte.

– Independentemente do que pensarmos sobre Deus – continua, no mesmo tom suave, sereno –, todos vivemos debaixo deste mesmo céu.

– Os nomes que me deste, Mamie – digo hesitante e delicadamente. – Os Picard. Eram a tua família? Desapareceram na Segunda Guerra Mundial?

Ela não responde. Continua a olhar pela janela. Após um momento, insisto.

– Mamie, a tua família era judia? Tu és judia?

– Sim, claro – diz. A rapidez da resposta sobressalta-me a tal ponto que dou um passo atrás.

– És?

Ela acena afirmativamente. Por fim, volta-se e olha para mim.

– Sim, sou judia – diz. – Mas também católica. – Faz uma pausa e acrescenta: – E muçulmana. – Sinto o meu coração apertar-se. Por momentos, julguei-a lúcida.

– Mamie, o que queres dizer com isso? – pergunto, procurando manter a voz firme. – Não és muçulmana.

– É tudo igual, não é? São os homens que criam as diferenças. Isso não significa que o Deus não seja o mesmo. – Volta a olhar pela janela. – A estrela – murmura, pouco depois, incitando-me a seguir o seu olhar até ao primeiro ponto de luz que coexiste com o pôr do sol. Observo-o com ela por momentos, tentando ver o mesmo que ela, tentando compreender o que a faz sentar-se junto a esta janela, todas as noites, em busca de alguma coisa que parece nunca encontrar. Bastante tempo depois, volta-se para mim e sorri.

– A minha filha Josephine virá visitar-me em breve – diz. – Devia conhecê-la. Iria gostar dela.

Abano a cabeça e baixo o olhar. Decido não lhe dizer que a minha mãe morreu há muito tempo.

– Imagino que sim – murmuro.

– Creio que vou descansar – diz. Observa-me sem exibir o mais pequeno sinal de reconhecimento. – Obrigada por ter vindo. Foi uma visita muito agradável. Eu acompanho-a até à saída.

– Mamie… – tento.

– Não, não – responde. – A minha Mamie não vive aqui. Vive em Paris. Junto à Torre Eiffel. Mas eu transmito-lhe os seus cumprimentos.

Preparo-me para retorquir, mas não sou capaz de articular as palavras. A Mamie conduz-me até à porta. Depois de eu sair, quando a porta está quase fechada, ela volta a abri-la repentinamente, fitando-me com uma expressão carregada.

– Tens de ir a Paris, Hope – diz solenemente. – Tens mesmo. Estou muito cansada e está quase na hora de me deitar. – Em seguida, fecha a porta, deixando-me a olhar para uma paleta incaracterística de azuis-claros.

Ali permaneço longos minutos, atordoada, sem me aperceber sequer de que a enfermeira, Karen, se aproxima de mim.

– Miss McKenna-Smith? – chama.

Dirijo-lhe um olhar inexpressivo.

– Sente-se bem, minha senhora? – pergunta.

Aceno lentamente com a cabeça.

– Penso que vou a Paris.

– Bom… isso é uma boa notícia – diz Karen, hesitante. Está claramente convencida de que eu perdi o juízo, e é impossível censurá-la por isso. – E… quando parte?

– O mais depressa possível – respondo. Abro depois um sorriso. – Tenho de ir.

– Muito bem – diz, ainda um tanto desorientada.

– Vou a Paris – repito para mim mesma.

1 Luz do sol ou, em sentido figurado, alegria, felicidade.