Capítulo 11

No regresso a casa, conduzo em silêncio, dando voltas à cabeça. Vou a Paris.

No semáforo da Main Street, pego no telemóvel e, sem me conseguir conter, marco o número do Gavin.

Deixo-o tocar uma vez, mas acabo por sentir que a chamada não faz sentido. Desligo rapidamente. Porque quereria o Gavin saber que vou para Paris? Ajudou-me bastante, mas é pretensioso achar que os meus planos lhe dizem alguma coisa.

O semáforo fica verde e, quando carrego no acelerador, o telefone toca, assustando-me. Olho para o ecrã e sinto-me corar quando leio o nome do Gavin Keyes.

– Estou?… – digo timidamente.

– Hope? – A sua voz é profunda e calorosa. Irrito-me comigo mesma por me sentir imediatamente mais tranquila.

– Sim… Olá.

– Telefonaste-me agora mesmo?

– Não era nada. – Sinto-me ainda mais corada. – Nem sei porque telefonei – murmuro.

Ele permanece em silêncio por momentos.

– Foste visitar a tua avó?

– Como é que sabes?

– Não sabia. – Faz uma pausa e acrescenta: – Vais a Paris?

– Creio que sim – respondo em voz baixa.

– Ótimo – diz de imediato, como se já soubesse a resposta. – Ouve, se precisares de alguém para te ajudar a manter a confeitaria aberta durante a tua ausência…

Corto-lhe a palavra.

– Gavin, és muito simpático, mas isso nunca funcionaria.

– Porque não?

– Bom, por um lado, nunca geriste uma confeitaria, pois não?

– Aprendo depressa.

Sorrio ligeiramente.

– Além disso, tens o teu trabalho.

– Posso perfeitamente tirar alguns dias. Se houver reparações urgentes, posso sempre fazê-las depois da hora de fecho da confeitaria.

Não estou habituada a que as pessoas se preocupem comigo, que me ajudem. Sinto-me embaraçada e não sei exatamente como responder.

– Obrigada – acabo por dizer. – Mas nunca te poderia pedir que o fizesses.

– Hope, sentes-te bem? – pergunta o Gavin.

– Sim – digo, quase certa de que estou a mentir.

Uma semana depois, questionando a minha sanidade mental pelo que estou prestes a fazer, embarco num voo da Aer Lingus, de Boston para Paris, via Dublin, o mais económico que encontrei tão em cima da hora.

A Annie ficara tão entusiasmada com a minha decisão que nem me importunou por ter de passar mais uns dias em casa do pai. Pediu-me para viajar comigo, naturalmente, mas mostrou-se compreensiva quando lhe disse que apenas podia comprar um bilhete.

– Além disso, a Mamie só te pediu a ti – murmurou, fitando os pés.

– Porque precisa que fiques com ela – disse -lhe.

Decidi partir num sábado à noite para ter de fechar a confeitaria apenas três dias; de qualquer modo, segunda-feira é sempre o dia de descanso. Ainda assim, parece-me uma eternidade, sobretudo tendo em conta a tempestade financeira que se avizinha. Não sei se e quando os investidores vão examinar a confeitaria, pois não conversei com o Matt desde que recusei a sua proposta de empréstimo. Sei que o magoei, mas não posso enfrentar esse problema agora. É possível que esteja a cometer um erro enorme, mas sei que não podia dizer não a esta viagem.

Temos duas encomendas para tratar durante a minha ausência – ambas encomendas regulares de dois hotéis junto à praia – e eu, a contragosto, aceitei a oferta do Gavin, que se disponibilizou para fazer as entregas de carro com a Annie. Levariam muffins que eu confecionei previamente e depois congelei. Na segunda-feira, ela teria de os descongelar antes de ir para a escola, de manhã, e, após as aulas, o Gavin faria as entregas com ela e levá-la-ia a casa do Rob.

Onze horas depois da partida de Boston, e após a ligação em Dublin, olho pela janela enquanto atravessamos o manto de nuvens que cobre o céu de Paris e descemos em direção à cidade. Não vislumbro os locais emblemáticos – suponho que os verei em terra daqui a nada –, mas vejo a faixa cor de safira do rio Sena, a serpentear no solo, bem como as parcelas alternadas de terreno, ora com relva verde, ora com árvores de folhas rubras, que se estendem pela paisagem rural a caminho da zona urbana.

Esta foi em tempos a cidade da Mamie, penso, quando estamos prestes a aterrar. Deve ter sido muito estranho abandonar tudo isto e nunca mais regressar.

Depois de aterrar, percorro rapidamente os corredores tubulares em vidro do Charles de Gaulle, passo pela alfândega e aguardo na fila um táxi, apercebendo-me, surpreendida, de que, em França, os táxis são, na sua maioria, carros de luxo. Aguardo a minha vez, entro num Mercedes e entrego ao taxista a morada do hotel que escolhi no Travelocity. Não confio o suficiente no meu francês para pronunciar as instruções em voz alta.

Demoramos trinta minutos a percorrer uma série de subúrbios industriais a caminho da periferia de Paris. Atravessamos um enorme complexo desportivo e eu recordo-me subitamente do que lera na Internet sobre a rusga em grande escala de 1942, na qual milhares de judeus foram reunidos num estádio e depois deportados para campos de concentração. Duvido que seja este o estádio – parece demasiado moderno –, mas essa imagem sombria permanece comigo, enquanto o taxista serpenteia habilmente por entre o trânsito, e de repente vira à esquerda, a uma velocidade aflitiva, para a rue de la Verrerie, travando bruscamente em frente de um edifício branco com letras grandes e simples, que o identificam como o Hôtel aux Mille Étoiles. Ergo os olhos para as varandas de ferro forjado que circundam as portas envidraçadas no segundo andar e sorrio. De algum modo, Paris é exatamente como a imaginei. Tenho sempre a sensação de que, pelo menos nesta zona, não mudou muito no último século. Pergunto-me, pois, se a Mamie alguma vez caminhou junto a este prédio, se se maravilhou com as mesmas varandas, desejou poder ver através das cortinas delicadas que adornam as mesmas portas envidraçadas. É estranho para mim imaginá-la aqui, como uma criança não muito mais velha do que a Annie.

Uma vez chegada ao quarto do hotel, tomo um duche rápido, visto rapidamente umas calças de ganga e uma camisola e calço um par de botas. Munida de indicações facultadas pelo porteiro, caminho alguns quarteirões até à rue Geoffroy l’Asnier, onde sei poder encontrar o Mémorial de la Shoah.

Apercebo-me de que Paris é, em outubro, uma cidade fresca e bela. Nunca a visitei noutros meses, naturalmente, mas as ruas parecem-me silenciosas e calmas. Fascina-me a forma como o antigo se mistura com o moderno; em algumas esquinas, os pavimentos em pedra coexistem com o cimento e, noutras, as lojas de produtos eletrónicos ou de alta-costura ocupam edifícios que parecem ter centenas de anos. Tendo passado a maior parte da minha vida no Massachusetts, reconheço esta intimidade natural entre a história e a vida moderna, mas aqui a sensação é diferente, porventura porque a história é muito mais antiga ou está mais presente.

Enquanto caminho, sinto o aroma da cozedura do pão e da mudança das folhas no outono, mas também um ligeiro odor a lenha queimada. Inspiro fundo, pois é uma combinação a que não estou habituada. As pequenas portas abobadadas, as bicicletas apoiadas em muros de pedra e os portões de jardins quase escondidos recordam-me que estou num lugar estranho, mas há algo em Paris que me parece muito familiar. Interrogo-me pela primeira vez se o sentimento de pertença acompanha os laços de sangue. Rejeito a ideia, mas, apesar das ruas desconhecidas e sinuosas, encontro com facilidade o Museu do Holocausto.

Depois de passar por um detetor de metais à entrada do edifício austero, sombrio, atravesso um pátio em cimento, ao ar livre, passo junto a um monumento com os nomes dos campos de concentração nazis encimados por uma estrela-de-david de metal, e entro no museu através das portas que se erguem mais à frente. No balcão de atendimento, a funcionária fala, felizmente, inglês e sugere que eu tente primeiro os computadores do outro lado da sala, a primeira paragem de qualquer visitante que procure familiares. Encontro nos computadores, como previa, as mesmas informações que recolhera na Internet: os nomes da lista da minha avó, com exceção do de Alain.

Insisto junto da funcionária, explicando que procuro uma pessoa cujo nome não consta dos registos e necessito de informações sobre o que realmente aconteceu às pessoas cujos nomes encontrei. Ela assente e indica-me o elevador, ao fundo da galeria.

– Suba até ao quarto andar – diz. – Encontrará uma sala de leitura. Peça ajuda à minha colega.

Aceno afirmativamente, agradeço-lhe, e sigo as suas indicações.

A sala de leitura inclui computadores e mesas compridas no primeiro nível e fileiras de livros e arquivos no segundo nível, sob um teto alto e envidraçado que irradia claridade. Aproximo-me do balcão, onde uma mulher me saúda em francês mas responde em inglês quando lhe pergunto:

– Importa-se de me ajudar a procurar algumas pessoas?

– Claro que não, minha senhora – afirma. – Em que lhe posso ser útil?

Mostro-lhe os nomes da lista da Mamie, bem como os anos de nascimento, e explico que não consigo localizar Alain Picard. Ela assente e desaparece durante alguns minutos. Regressa com várias páginas de diferentes registos.

– Eis tudo o que temos sobre estas pessoas – diz. – Como referiu, não conseguimos encontrar o Alain que procura em nenhuma lista de pessoas deportadas.

– O que pode isso significar? – pergunto.

– Pode haver várias justificações. Por muito completos que sejam os nossos dados, existem algumas pessoas que não foram devidamente registadas, sobretudo crianças. Perderam-se no caos.

Entrega-me os documentos de que dispõe, e eu sento-me para os examinar. Nos primeiros minutos, tento ler as anotações, algumas datilografadas, mas sempre em francês. Os meus olhos arregalam-se quando chego ao terceiro documento que ela me deu, uma página de um recenseamento.

Ali, numa lista carimbada com a palavra recensement, surge uma listagem de 1936, escrita numa caligrafia inclinada, relativa à família Picard, de Paris, que inclui uma filha, Rose, nascida em 1925.

Embora estivesse empenhada em descobrir o destino dos nomes da lista da Mamie e começasse a acreditar que se tratava, de facto, da sua família, só caio verdadeiramente em mim quando vejo o primeiro nome da minha avó e o ano do seu nascimento escrevinhados a tinta permanente.

O meu coração bate velozmente enquanto examino a página.

Leio os escassos pormenores. O documento indica, tal como as informações sobre deportações que encontrei na Internet, que o possível pai da Mamie, Albert, era médico. Junto ao nome da sua femme, Cécile, lê-se sans profession. Ela permaneceria certamente em casa, com os filhos. Os fils e as filles, incluindo Rose, constam todos da lista, à exceção de Danielle, a mais jovem, nascida apenas em 1937, um ano após o recenseamento. O nome Alain também surge na lista. Era tão real como todos os outros.

Estudo todos os documentos, mas o processo é demorado: lacrimejo constantemente e tenho de consultar com muita frequência o dicionário francês-inglês que trouxe comigo. No final, não estou mais próxima de descobrir o que aconteceu ao Alain nem de perceber o que se seguiu à deportação da família. Nenhuma das cópias dos documentos relativos às deportações tem anotações adicionais. O último registo da família completa – com exceção de Rose e Alain, que não constam destas cópias – indica que todos os seus membros foram deportados em comboios com destino a Auschwitz.

Devolvo os documentos à funcionária que me ajudara pouco antes. Ela ergue o olhar e sorri.

– Encontrou o que pretendia?

Confirmo com um aceno e os meus olhos enchem-se de lágrimas.

– Penso que é a família da minha avó – digo em voz branda. – Mas não sei o que lhes aconteceu após a deportação.

Ela assume uma expressão solene.

– Dos setenta e seis mil detidos em França, apenas dois mil sobreviveram. É muito provável que tenham morrido, madame. Lamento muito.

Agradeço com um gesto e, quando respiro fundo, percebo que estou a tremer.

– Encontrou o nome que procurava? – pergunta, alguns segundos depois.

Abano a cabeça.

– Apenas o formulário do recenseamento. Não existe qualquer registo de detenção ou deportação de Alain Picard.

Ela morde os lábios por um instante.

Alors. Há outra pessoa que talvez consiga ajudá-la. É investigadora aqui e fala um pouco de inglês. Vou verificar se está disponível.

Após algumas breves conversas ao telefone, em francês, indica-me que Carole, do departamento de investigação, me receberá dentro de trinta minutos. Sugere que eu aguarde no museu propriamente dito, onde posso percorrer a exposição permanente.

Desço as escadas até chegar à sala da exposição, quase deserta, e surpreendo-me, desde logo, com o número de fotografias e documentos alinhados num espaço comprido e estreito. No centro da sala, um ecrã gigante apresenta um filme em francês e, enquanto ouço a voz do narrador a falar, presumivelmente, sobre o Holocausto, encaminho-me para a primeira parede à esquerda e sinto-me encorajada pelo facto de todas as legendas da exposição estarem disponíveis em inglês e em francês. Na outra extremidade da sala, existe uma imagem sinistra de uma linha férrea sem destino visível projetada numa grande parede branca, e eu recordo-me do sonho que tive logo depois da Mamie me ter entregado a lista.

Durante meia hora, permaneço absorta na leitura de sucessivos testemunhos sobre o início da guerra, a perda de direitos dos judeus em França e em toda a Europa e as primeiras deportações para fora do país.

Tudo isto, além de ter tido lugar depois do nascimento da minha avó, pode muito bem ter acontecido às pessoas que ela mais amava no mundo. Fecho os olhos e apercebo-me de que estou ofegante. O meu coração continua a bater descontroladamente quando ouço a voz de uma mulher à minha frente.

– Madame McKenna-Smith?

Abro os olhos de imediato. Trata-se de uma mulher sensivelmente da minha idade, com cabelo castanho apanhado num rolo e olhos azuis rodeados de rugas de expressão. Veste calças de ganga e uma blusa branca.

– Sim, sou eu – digo, apressando-me a acrescentar: – Peço desculpa, queria dizer oui, madame.

Ela sorri.

– Não tem importância. Falo um pouco de inglês. Chamo-me Carole Didot. Não se importa de vir comigo?

Sigo-a por entre o resto da exposição, onde passamos velozmente por outra série de vídeos e por mais paredes cobertas de documentos e informações. Continuo a segui-la por um corredor repleto de fotografias de crianças que parece não ter fim.

Paro e leio uma das legendas colocadas ao nível dos olhos.

Rachel Fournier, 1937-1942. Na fotografia, uma menina de cabelo escuro, preso em duas tranças com fitas, tem um sorriso rasgado. Abraça uma grande bola de borracha e sorri diretamente para a câmara.

– São crianças francesas que perderam a vida – diz Carole, em voz baixa.

– Meu Deus – murmuro. Este corredor fere-me mais do que as fotografias arrepiantes de morte que vi na outra sala. Enquanto fito, aturdida, as fotografias, não consigo deixar de pensar na minha filha. Se o destino nos tivesse colocado noutro país, noutro período, ela poderia ser uma destas meninas.

– Morreram quase onze mil crianças francesas na Shoah – diz Carole, lendo a minha expressão. – Este corredor recorda-me sempre tudo o que poderia ter sido e nunca foi.

As suas palavras ecoam nos meus ouvidos enquanto a sigo até um elevador, onde carrega no botão do quarto andar. Subimos em silêncio, e eu reflito sobre a família da Mamie e sobre tudo o que se perdeu.

Carole conduz-me a um escritório moderno com duas cadeiras voltadas para uma secretária repleta de livros e documentos. Pela janela, vejo a torre de uma igreja acima de uma série de apartamentos e, na parede, encontram-se desenhos infantis com a palavra Maman. Carole aponta para uma das cadeiras e senta-se atrás do seu computador.

– Então o que motivou esta longa viagem até Paris? – pergunta, agitando o rato e carregando nalgumas teclas.

Conto-lhe sucintamente a história da Mamie e digo estar convencida de que os nomes correspondem a familiares de quem ela perdeu o rasto durante o Holocausto. Explico que descobri todos os nomes menos o de Alain, que parece não constar de qualquer registo. Digo ainda que não consigo entender o que aconteceu à minha avó; também não há registo de qualquer Rose Picard nos documentos das deportações.

– Mas disse-me que a sua avó fugiu de França antes da rusga, não é verdade? – pergunta Carole.

– Sim – confirmo. – Melhor dizendo, creio que sim. Ela nunca me explicou o que aconteceu. E agora sofre da doença de Alzheimer.

Carole abana a cabeça.

– Está, portanto, prestes a esquecer o passado.

Aceno afirmativamente.

– Queria apenas perceber o que se passou. Ela pediu-me que procurasse descobrir o destino da sua família. Se voltar a casa sem uma resposta sobre Alain Picard, receio desgostá-la imenso.

– Lamento não podermos ser mais úteis, mas, se o nome não consta dos registos, nada há a fazer.

Sinto uma profunda deceção.

– Nada? – pergunto em voz baixa. – Posso nunca vir a descobrir o que lhe aconteceu?

Carole hesita.

– Existe mais uma possibilidade – diz.

– Sim?

– Há um homem… – começa. A sua voz desvanece-se e ela interrompe a sua explicação. Em vez disso, vira as páginas de uma antiquada agenda rotativa, faz uma pausa e pega no telefone para marcar um número. Após um momento, fala rapidamente em francês, fita-me, fala de novo e, em seguida, desliga.

Voilà – diz, anotando algo num pedaço de papel. – Aqui tem.

Pego no pedaço de papel e leio um nome, uma morada e uma série de quatro números seguidos da letra A.

– Trata-se de Olivier Berr – diz. Sorri ligeiramente. – É uma lenda.

Olho-a com curiosidade.

– Ele tem noventa e três anos – prossegue. – Sobreviveu à Shoah e dedica a sua vida a compilar uma lista de todos os judeus de Paris que se perderam e outra de todos aqueles que regressaram.

Mostro-me incrédula.

– As listas dele são diferentes das suas?

Oui – responde. – São construídas pelas próprias pessoas, as pessoas que estiveram nos campos de concentração, as pessoas que frequentavam as sinagogas após a guerra, as pessoas que vivem entre nós, ainda com as cicatrizes da perda. Os nossos registos são oficiais. Os dele são verbais e, por vezes, mais reveladores.

– Olivier Berr – repito quase num sussurro.

– Ele diz que pode ir visitá-lo. O número que aí vê é o código da porta principal. Pode entrar diretamente.

Aceno nervosamente com a cabeça.

– Importa-se de me indicar o caminho?

Ela dá-me instruções para o caminho a pé, explicando que posso demorar menos tempo a fazer o percurso a pé do que a encontrar um táxi.

– Além disso, verá o Louvre e atravessará o Sena na Pont des Arts – diz. – Aproveite para ver um pouco de Paris durante a sua missão.

Sorrio ao pensar nisso, apercebendo-me subitamente de que ainda não procurei ver a Torre Eiffel.

– Obrigada – digo. Mantenho-me de pé, sem saber se me devo sentir dececionada com a ausência de registos no museu ou otimista com a possibilidade de Olivier Berr me conseguir ajudar.

Bonne chance – diz Carole com um sorriso. Estende o braço e aperta a minha mão. – Boa sorte – diz, olhando-me nos olhos.

As indicações de Carole Didot levam-me a atravessar várias ruas secundárias até chegar à movimentada rue de Rivoli. Vejo à minha esquerda a fachada renascentista do Hôtel de Ville e prossigo junto às fachadas de uma sequência de lojas – H&M, Zara, Celio, Etam – que ficariam a matar na Newbury Street, em Boston. Um ligeiro vento anima várias bandeiras francesas, com as suas garridas faixas vermelhas, brancas e azuis, que me saúdam enquanto caminho. As poucas árvores que se erguem ao longo do passeio adquiriram uma tonalidade vermelha profunda com a chegada do outono e começaram a deixar cair as suas folhas, pisadas nos passeios por uma torrente regular de pessoas.

Sigo as instruções de Carole e viro à esquerda no momento em que o enorme Museu do Louvre começa a surgir ao meu lado. Vou ter a uma praça ampla, formada pelas paredes do próprio museu e, por breves momentos, suspendo a caminhada, ofegante. Não sou muito versada em história de França, mas recordo-me de ler que o Louvre fora um palácio real e, olhando em volta, quase imagino um monarca do século XVII a percorrer majestosamente a praça, seguido pela sua corte.

Do outro lado, deparo-me com a ponte pedonal sugerida por Carole. Ela explicara que as grades da ponte estão repletas de cadeados, ali postos por pessoas enamoradas para firmar simbolicamente as suas relações. É uma ideia romântica, mas sei que, com ou sem cadeados, as relações são temporárias, ainda que acreditemos nelas de todo o coração.

Ao atravessar a ponte, olho para a direita e sorrio ao ver a Torre Eiffel elevar-se sobre telhados que se veem à distância, do outro lado do rio. Já a conheço através de milhares de fotografias, mas vê-la pessoalmente pela primeira vez recorda-me que estou mesmo aqui, a milhares de quilómetros de casa, a um oceano de distância. Sinto terrivelmente a falta da Annie nesse momento.

Depois de percorrer metade da ponte, tenho uma sensação súbita de déjà vu, como se já tivesse aqui estado. Demoro algum tempo a perceber porquê e, quando por fim isso acontece, paro tão abruptamente que sofro o embate da mulher que caminhava diretamente atrás de mim. Ela resmunga qualquer coisa em francês, lança-me um olhar fulminante e contorna-me num movimento exagerado e amplo. Ignoro-a e volto-me lentamente, de olhos arregalados. À direita, para lá do brilho do Sena, o ponto mais alto da Torre Eiffel rasga, à distância, o azul do céu. Atrás de mim, agiganta-se o Museu do Louvre, palaciano e enorme, na margem do rio. À minha esquerda, avisto uma ilha ligada por duas pontes. Conto rapidamente os arcos. Sete na ponte à esquerda; cinco na ponte à direita. E, mais adiante, o edifício a que Carole chamou Institut de France assemelha-se bastante a um segundo palácio, como se ele e o Louvre tivessem governado outrora duas partes de um mesmo reino.

O meu coração dispara, e eu ouço a voz da Mamie, partilhando comigo o conto de fadas que, por tantas vezes ter ouvido, decorei quando tinha a idade da Annie.

Todos os dias, o príncipe percorria a ponte de madeira, a ponte do amor, para ver a sua princesa. Abandonava o grande palácio e aproximava-se do castelo com uma grande abóboda, à entrada do outro reino. Precisava de atravessar um fosso enorme para chegar até ao seu único amor e, à esquerda, existiam duas pontes que conduziam ao coração da cidade, uma com sete arcos, outra com cinco. À sua direita, uma espada gigante rasgava o céu, alertando-o para os perigos que o esperavam. Porém, ele vinha dia após dia, enfrentando as ameaças, pois amava a princesa. Declarou que nenhum perigo do mundo o manteria afastado dela. Dia após dia, a princesa sentava-se à sua janela e procurava ouvir os seus passos, pois sabia que ele nunca a desapontaria. Amava-a e, quando prometia vir buscá-la, cumpria sempre a palavra.

Sempre pensei que as histórias da Mamie eram simplesmente contos de fadas que ela ouvira na infância mas, pela primeira vez, admito a possibilidade de ela as ter criado, escolhendo como cenário a Paris que amava. Abano a cabeça e tento retomar a caminhada, mas sinto os joelhos a tremerem. Imagino a minha avó, na adolescência, a atravessar esta mesma ponte, a apreciar os mesmos edifícios, com o mesmo rio por baixo de si, imaginando que, um dia, um príncipe viria buscá-la. Teria dado os mesmos passos que eu, até este exato local, há uns setenta anos? Teria permanecido de pé nesta ponte a observar as estrelas que surgem a leste, sobre a ilha situada a meio do Sena, e que ainda agora espera à sua janela todas as noites? Teria sofrido quando abandonou tudo isto para sempre?

Enquanto caminho, penso nas histórias que me contava e, sobretudo, na minha preferida, aquela em que o príncipe diz à princesa que, enquanto houver estrelas no céu, ele a amará.

– Um dia – disse o príncipe à princesa – levar-te-ei, atravessando um grande oceano, a ver uma rainha cujo archote ilumina o mundo, mantendo todos os seus súbditos protegidos e livres.

Quando era pequena, agarrava-me àquelas palavras, imaginando que, um dia, também eu encontraria um príncipe que me resgatasse da frieza da minha mãe. Sonhava montar o cavalo branco, atrás do príncipe – pois, nas minhas fantasias, o príncipe tinha sempre um cavalo branco –, e partir, para não mais voltar, a caminho daquele reino do conto de fadas em que a rainha zelava pela proteção de todos.

Contudo, tenho agora trinta e seis anos e já aprendi a lição. Não há príncipes impetuosos, heroicos, prontos para me salvar. Não há rainhas mágicas para me proteger. No final, conto apenas comigo mesma. Interrogo-me sobre a idade que a Mamie teria quando percebeu a verdade.

Subitamente, apesar de me sentir, de algum modo, embalada pelo passado da minha avó, vejo-me mais só do que nunca.

A rue Visconti é escura e estreita, porventura mais uma viela comprida do que uma rua de pleno direito. Os passeios são pequenas faixas de um e outro lado, e uma bicicleta solitária encostada a uma porta negra faz lembrar um postal antiquado. Volto a observar as fachadas de várias lojas e sigo o caminho previsto, quase até ao final da rua, onde encontro finalmente o número 24, com uma porta dupla enorme, negra, sob um arco. Introduzo o código que Carole me forneceu – 48A51 – no teclado à direita e, quando a porta emite um zumbido moderno, abro-a para o interior. Depois de atravessar a escuridão fria do pátio, rodeado de arcos, e chegar ao segundo andar do edifício, a porta já está aberta. Ainda assim, bato levemente à porta e, das profundezas do apartamento, uma voz grave e áspera grita:

Entrez-vous! Entrez-vous, madame!

Entro, fecho a porta silenciosamente e percorro uma entrada estreita, ladeada por estantes, todas apinhadas de volumes antigos, encadernados em pele. Vou ter a uma sala iluminada pelo sol, onde vejo um homem de cabelos brancos e ombros caídos sentado junto à janela, observando a rua lá em baixo.

Volta-se para me receber, surpreendendo-me com as rugas abundantes e profundas do seu rosto; parece ter vivido centenas de anos e não os noventa e três que Carole Didot me indicara. Aproximo-me para o cumprimentar, e ele lança-me um olhar estranho.

– Ah, uma americana. – São estas as suas primeiras palavras. Em seguida, sorri, impressionando-me com o brilho que parece iluminar os seus olhos verdes; são olhos de um jovem, em aparente desarmonia com as suas feições encovadas. – Madame Didot não me contou que era americana. Em Paris, cumprimentamo-nos com deux bisous, dois beijos nas faces, minha querida. – Demonstra o ritual, inclinando-se e beijando-me delicadamente nas duas faces. Sinto-me corar.

– Peço desculpa – murmuro.

– Não tem de pedir desculpa – diz. – Os costumes americanos são encantadores. – Aponta para uma mesa pequena com duas cadeiras de madeira, situada junto à janela. – Sente-se, por favor – convida. Espera que eu me sente, oferece-me uma chávena de chá e, quando declino, senta-se a meu lado. – Chamo-me Olivier Berr.

– E eu Hope McKenna-Smith. Obrigada por me receber assim, em cima da hora – digo lentamente. Tento não perder de vista a sua idade e o facto de o inglês não ser a sua língua materna.

– Não há qualquer problema – afirma. – É sempre um prazer receber uma jovem bonita. – Sorri e bate ao de leve na minha mão. – Julgo saber que procura informações.

Aquiesço e respiro fundo.

– Sim, senhor. A minha avó é parisiense. Soube recentemente que a sua família pode ter morrido durante o Holocausto. Penso que eram judeus.

Ele observa-me durante algum tempo.

– Soube recentemente?

Embaraçada, procuro explicar-me.

– Bom, ela nunca falou sobre o assunto.

– E a menina foi educada noutra religião. – É uma afirmação, não uma pergunta.

– No catolicismo – confirmo.

Ele acena lentamente com a cabeça.

– Isso não é inaudito. Abandonar o passado dessa forma. Mais, no coração, suspeito que ela ainda se considere juive.

Conto-lhe sucintamente o sucedido no Rosh Hashanah, com os pedaços da tarte. Ele sorri.

– O judaïsme não é apenas uma religião, é também um estado de espírito e de coração. Sucede o mesmo, porventura em todas as religiões, àqueles que verdadeiramente acreditam. – Faz uma pausa. – Está aqui hoje em busca de respostas.

– Sim, senhor.

– Sobre o que aconteceu à família da sua avó.

– Sim, senhor. Ela nunca tinha falado sobre eles.

Ele assente de novo, com um ar cúmplice.

– Tem consigo os nomes?

– Sim – digo. Retiro do bolso uma cópia da lista da Mamie e entrego-lha. Enquanto os seus olhos claros percorrem a página, acrescento rapidamente: – No entanto, Alain, o seu irmão, não consta de qualquer registo sobre o Holocausto.

Ele ergue os olhos e sorri.

– Ah, sim. Mas os meus registos são diferentes. – Levanta-se, vacilando ligeiramente, e, em seguida, aponta uma estante com o dedo arqueado. Desloca-se lentamente, pé ante pé, num movimento arrastado, até à entrada ladeada por livros. – Eu tinha vinte anos quando rebentou a Segunda Guerra Mundial, vinte e dois quando nos começaram a deter, diretamente nas ruas de França. Foram deportados mais de setenta e seis mil juifs deste país, e a maioria nunca regressou.

Abano a cabeça, quedando-me sem palavras.

– Estive em Auschwitz – continua. Subitamente, interrompe a sua lenta caminhada até ao átrio, como se a própria memória o impedisse de avançar. Após um momento, retoma o seu percurso. – Foram enviadas para esse campo mais de sessenta mil pessoas provenientes de França. Sabia? – Para de falar por um instante e, em seguida, tosse. – Após la libération, quando regressei, percebi que perdera tudo. Todos os meus amigos. Os meus vizinhos.

– E a sua família? – pergunto.

– Estavam todos mortos. – A sua voz soa impassível. – A minha mulher. O meu filho. Mãe. Pai. Irmãs. Irmão. Tias. Tios. Primos. Avós. Todos. Quando voltei para casa, para Paris, voltei para o vazio. Para ninguém.

– Lamento muito – murmuro.

A enormidade de tudo isto começa a perturbar-me. Nunca conheci um sobrevivente de um campo de concentração e, enquanto as imagens do Mémorial de la Shoah se repetem incessantemente na minha cabeça, pestanejo algumas vezes, sentindo-me entorpecida. As atrocidades que eu vira nas imagens tinham mesmo atingido este homem simpático que tenho diante de mim. Sinto lágrimas nos olhos. Pestanejo rapidamente para as enxugar antes que ele se aperceba.

Ele diz-me, com um gesto, que não preciso de dizer nada.

– É o passado. Nada tem a lamentar, mademoiselle. O mundo onde vive hoje é muito diferente, e ainda bem. – Prossegue a pesquisa, fitando solenemente a sua parede de livros. Toca com um dedo algo deformado numa lombada, depois noutra. – O único local que consegui encontrar quando regressei foi a sinagoga, que frequentara na infância. Mas estava destruída. Era uma ruína, não um edifício.

Observo-o, paralisada, a percorrer os livros. Retira um, lê-o por momentos e volta a colocá-lo na estante.

– Quando percebi que aqueles que amava nunca regressariam a casa, comecei a refletir sobre a grande tragédia que foram não apenas as suas mortes, mas também a perda dos seus legados – prossegue. – Quando se deporta e aniquila toda uma família, quem fica para contar as suas histórias?

– Ninguém – murmuro.

Précisément. E, quando isso acontece, é como se as suas vidas se perdessem duas vezes. Foi por esse motivo que comecei a organizar registos próprios. – Retira outro livro e, desta vez, o seu olhar ilumina-se e ele sorri. Vira algumas páginas, detendo-se numa em particular. Permanece em silêncio enquanto a lê.

– São os seus registos? – pergunto.

Ele confirma com um aceno e mostra-me a página em que se deteve. Deparo-me com uma caligrafia indecifrável e fluida ao longo de folhas pautadas, sem rasuras e amarelecidas nas margens.

– A minha lista de pessoas perdidas. – Sorri e acrescenta: – E achadas. E das histórias que as acompanham.

Recuo e contemplo reverentemente as suas estantes.

– Todos estes livros são listas suas?

– Sim.

– Compilou-as sozinho? – Olho em volta, incrédula.

– Mantiveram-me ocupado naqueles primeiros tempos – diz. – Foi assim que deixei de viver envolto em tristeza. Comecei a visitar sinagogas todos os dias, examinando os seus registos, conversando com todas as pessoas que tinha oportunidade de conhecer.

– Mas como reuniu tantas informações?

– Pedi a todos os meus conhecimentos nomes de pessoas que tivessem perdido ou que soubessem ter sobrevivido. Família, amigos, vizinhos, pouco importava. Nenhuma informação era menor ou insignifiant. Cada uma representava uma vida perdida ou uma vida salva. Ao longo dos anos, escrevi e reescrevi as suas memórias, organizei-as em volumes, segui as indicações que me deram e procurei os sobreviventes.

– Meu Deus – murmuro.

– Cada sobrevivente de um campo de concentração – continua – tem inúmeras histórias para contar. Essas pessoas são muitas vezes essenciais para percebermos quem ficou perdido, e porquê. Noutros casos, sabemos apenas que as pessoas nunca regressaram. Mas os seus nomes estão aqui, tal como os pormenores que efetivamente conhecemos.

– Mas porque não estão estas listas no Mémorial de la Shoah? – pergunto.

– Eles não têm, neste momento, registos deste tipo – responde. – Possuem registos oficiais, elaborados pelos governos. Estes não são oficiais. E, por enquanto, quero manter as minhas listas perto de mim, pois estou permanentemente a descobrir novos nomes, e é importante prosseguir o trabalho a que dediquei a minha vida. Quando morrer, estes livros irão para o Mémorial. Tenho esperança de que também eles mantenham os registos vivos e, dessa forma, manter igualmente vivas as pessoas que habitam essas páginas.

– Isto é notável, Monsieur Berr – digo.

Ele brinda-me com um pequeno sorriso.

– Não é assim tão notável. Notável seria viver num mundo em que não fosse necessário compilar listas de pessoas mortas. – Antes de eu poder responder, coloca um dedo na página do livro aberto e diz, calmamente: – Encontrei-os.

Limito-me a fitá-lo, confusa.

– A sua família – esclarece.

Os meus olhos arregalam-se.

– Espere, encontrou os nomes? Já?

Ri-se entre dentes.

– Vivo dentro destas listas há muitos anos, madame. Sei onde encontrar o que pretendo. – Fecha os olhos por um momento e, em seguida, concentra-se na página que tem diante de si. – A família Picard – diz. – Dix, rue du Général Camou, septième arrondissement.

– O que significam essas palavras?

– Era a morada da sua avó – explica. – O número dez da Rua do Général Camou. Procurei incluir moradas sempre que possível. – Sorri discretamente e acrescenta: – A sua avó deve ter vivido numa bela casa, à sombra da Torre Eiffel.

Engulo em seco.

– E o que mais está aí escrito?

Ele lê previamente as suas anotações antes de responder.

– Os pais chamavam-se Albert e Cécile. Albert era médico. Os filhos chamavam-se Hélène, Rose, Claude, Alain, David e Danielle.

– Rose é a minha avó – sussurro.

Ele ergue os olhos e parece satisfeito.

– Então terei de alterar a minha lista.

– Porquê?

– Segundo a lista, teria sido morta em 15 de julho de 1942, em Paris. Observa mais de perto uma secção da página. – Saiu de casa naquela noite e nunca regressou, segundo as minhas anotações. No dia seguinte, a família foi toda detida.

Não encontro palavras para lhe responder. Limito-me a olhá-lo fixamente.

– O dia seguinte, 16 de julho de 1942… – continua. O seu tom de voz é agora mais frágil. – Foi o primeiro dia da rusga do Vel’ d’Hiv.

Sinto a garganta seca. Trata-se da detenção em grande escala de treze mil parisienses que vi descrita na Internet.

– Eu também lá estava – acrescenta em voz baixa. – A minha família foi presa nesse dia.

– Sinto muito – digo, olhando-o fixamente.

– Foi o final da vida que até ali conhecia – diz num tom sereno, abanando a cabeça. – O início da vida que agora tenho.

Abate-se sobre nós o silêncio.

– O que aconteceu? – acabo por perguntar.

O seu olhar perde-se.

– Vieram buscar-nos antes da alvorada. Não sabia que tinha de estar preparado. Não sabia que aquilo podia acontecer. Recordando aquele dia, percebo que devia saber. Devíamos todos. Só que, em certos momentos da vida, é mais fácil acreditar que tudo vai correr bem. Não quisemos enfrentar a verdade.

– Mas como poderia saber? – pergunto. Ele parece concordar, em parte.

– É fácil recordar o passado e questioná-lo, mas tem razão; era impossível saber o que nos aguardava. É que eu, a minha mulher e o meu filho, de apenas três anos, fomos levados com muitas outras pessoas para o Vélodrome d’Hiver, no quinzième, mesmo junto à Torre Eiffel e muito perto do Sena. Seríamos, porventura, sete mil, oito mil pessoas. Era difícil contar todas. Era um mar de gente. Não havia alimentos. Quase não tínhamos água. Fomos apertados como sardinhas em lata. Algumas pessoas suicidaram-se. Vi uma mãe asfixiar o seu bebé e tomei-a por doida mas, ao fim do terceiro dia, percebi que fora piedosa. Mais tarde, enquanto ela se lamentava, vi um guarda matá-la a tiro. Recordo-me muito claramente de pensar que ela tivera sorte.

A sua voz parece indiferente, mas os seus olhos lacrimejam quando retoma a história.

– Permanecemos ali cinco dias antes de sermos transferidos. No quarto dia, o meu filho, o meu Nicolas, morreu-me nos braços. E, antes de sermos levados para Drancy, e depois deportados para Auschwitz, a minha mulher e eu fomos separados, mas eu percebi no seu olhar que ela já tinha partido. Perder o Nicolas roubara-lhe a vontade de viver. Soube, mais tarde, que ela não passara a seleção inicial em Auschwitz, quando lá chegou, e não chorou uma única vez enquanto a conduziam até à morte.

– Lamento muito – murmuro, mas ele volta a declinar as minhas palavras de consolo.

– Foi há muito tempo – afirma. Vejo-o regressar ao seu livro, examinar a página que disse conter os registos que eu procurava. – Alors – diz. Pestaneja algumas vezes. – A sua família. Os Picard da rue du Général Camou. Os dois irmãos mais novos, David e Danielle, morreram em Auschwitz. Logo à chegada. David tinha oito anos. Danielle tinha cinco.

– Santo Deus – desabafo. – Eram crianças pequenas.

Monsieur Berr acena afirmativamente.

– Na maior parte dos casos, as crianças não regressaram. Foram levadas de imediato para a câmara de gás porque os alemães as consideravam inúteis. – Recompõe-se e continua a ler. – Hélène, de dezoito anos, e Claude, de dezasseis, morreram em Auschwitz, em 1942. O mesmo sucedeu à mãe, Cécile. O pai, Albert, faleceu em Auschwitz no final de 1943. – Faz uma pausa e acrescenta em voz branda: – Tenho aqui a informação de que trabalhou num crematório até adoecer, no inverno. Deve ter sido terrível. Conhecia o seu próprio destino.

Sinto lágrimas nos olhos e, desta vez, é demasiado tarde para as tentar suster. Monsieur Berr mantém-se em silêncio enquanto dois pequenos rios rolam pelo meu rosto. Só após alguns momentos assimilo plenamente as suas palavras.

– Morreram todos lá? – pergunto num sussurro. – Em Auschwitz? – Ele olha-me piedosamente e acena devagar com a cabeça. – E o Alain, como morreu?

Pela primeira vez desde que cheguei, Monsieur Berr parece surpreendido.

– Morreu? Mas foi ele que me deu estas informações.

Esta notícia deixa-me perplexa.

– Não entendo.

Ele volta a observar mais atentamente a página.

– Sim, esta entrevista data de 6 de junho de 2005. Recordo-me dele. Um homem muito simpático. Com um olhar bondoso. Podemos sempre distinguir as pessoas pelo seu olhar. Ele estava a jogar xadrez com outro sobrevivente, meu conhecido. Foi assim que o conheci.

– Espere, por favor – digo. O meu coração bate muito depressa enquanto procuro assimilar as suas palavras. – Está a dizer-me que o Alain Picard, irmão da minha avó, ainda está vivo? E que conversou com ele?

Monsieur Berr parece apreensivo.

Bien sûr, ele estava vivo em 2005. Não sei o que foi feito dele depois disso. Nunca foi deportado, mas sofreu durante a guerra. Todos sofremos. Contou-me que esteve num refúgio, onde, durante quase três anos, teve acesso a pouca comida. Um homem, o seu antigo professor de piano, arranjava-lhe um lugar para dormir nas noites mais frias de inverno, mas tinha receio de pôr em perigo a sua própria família. Assim, o Alain pernoitava nas ruas e, por vezes, as freiras da igreja ofereciam-lhe refeições. Terá agora oitenta anos, se ainda for vivo. Bem vistas as coisas, eu tenho noventa e três, minha querida. E não tenciono desistir tão cedo.

Embora ele sorria, eu estou demasiado aturdida para fazer o mesmo.

– O irmão da minha avó – murmuro. – Sabe onde ele vive?

Monsieur Berr pega num bloco de papel.

– Tem uma esferográfica? – pergunta. Confirmo e remexo na minha carteira. Ele aponta algo num pedaço de papel, rasga-o e entrega-mo. – Esta é a morada que me indicou em 2005. Fica no Marais, o bairro judeu, junto à place des Vosges. Foi aí que o conheci. Estava a jogar xadrez.

– É próximo do meu hotel – digo. Leio a morada que me entregou: 27, rue du Foin, n.o 2B. Sinto um calafrio.

– Bom – diz Monsieur Berr –, é melhor fazer-se ao caminho. O passado não espera por ninguém.