Capítulo 12

Continuo incrédula quando digo adieu a Monsieur Berr e desço velozmente as escadas. Dirigi-me para o Sena, onde chamo um táxi e entrego ao taxista o pedaço de papel que Monsieur Berr me tinha dado. Ele resmunga uma resposta e arranca. Alterna sucessivamente entre várias faixas, atravessa uma ponte sobre o Sena e dirige-se para a parte leste da cidade, paralelamente ao rio, enquanto eu observo, cada vez mais próximas, as duas torres de Notre-Dame. Por fim, vira à esquerda e, após várias curvas e contracurvas, trava abruptamente diante de um edifício de pedra cinzenta com duas enormes portas de madeira escura. Pago ao taxista e, enquanto ele se afasta, aproximo-me do intercomunicador.

Ali está, a preto e branco, o nome Picard, A. Respiro fundo e carrego no botão junto àquele apelido cada vez mais familiar. Só então me apercebo de que as minhas mãos estão a tremer.

O meu coração bate descontroladamente enquanto aguardo. Ninguém atende. Pressiono novamente o botão, mas continuo sem resposta. Sinto-me desanimada. E se for demasiado tarde? E se ele estiver morto? Procuro convencer-me de que é igualmente plausível que apenas tenha saído; estamos a meio da tarde de um belo dia de outono. Talvez tenha ido dar um passeio ou fazer compras. Permaneço alguns minutos à porta do prédio, na esperança de que alguém entre ou saia e me possa esclarecer, mas a rua está silenciosa e não vislumbro ninguém.

Consulto o relógio. Talvez esteja na place des Vosges, a jogar xadrez, como no dia em que conheceu Monsieur Berr. Retiro do bolso o meu mapa, procuro a página correta e concluo que o jardim fica a menos de um quarteirão de distância. Dou meia-volta e caminho nessa direção.

A meio do percurso, aproximo-me de uma cabine telefónica e, ao fim de alguns minutos a tentar contactar um operador que fale inglês, utilizo o meu cartão de crédito para fazer uma chamada direta para o telemóvel da Annie. É provável que esteja a dormir e não atenda, mas sinto uma vontade repentina de lhe contar o que descobri. A chamada vai ter ao voice-mail e, embora eu já o previsse, sinto-me desanimada. Pondero contar-lhe tudo sobre o Alain, mas acabo por não o fazer.

«Estava a pensar em ti, querida, e queria dizer-te olá. Paris é muito bonita. Penso que descobri alguma coisa, mas estou a tentar não me iludir. Telefono-te mais tarde. Adoro-te.»

Cinco minutos depois, entro na place des Vosges por entre três arcos de pedra erigidos sob um edifício. A praça é totalmente circundada por edifícios idênticos de tijolo e pedra, com telhados de ardósia acinzentados, portas envidraçadas e varandas estreitas. Árvores muito altas, com folhas de um verde vivo, circundam uma estátua equestre no centro do jardim quadrangular, enquanto quatro fontes com dois patamares guardam os quatro cantos de relva circundados por caminhos cobertos de gravilha.

Olho em volta, procurando alguém que corresponda à descrição geral do Alain, mas, até ao momento, o homem mais idoso que vi, passeando um pequeno cão preto, não teria mais do que sessenta anos. Percorro rapidamente todo o jardim, atenta aos rostos de quem passa a meu lado, mas não encontro ninguém que possa ser o Alain. Desalentada, suspiro e saio por onde entrei. Começo a perceber que posso não o encontrar, aqui ou em qualquer outro sítio. Luto contra um sentimento de penosa desilusão: ainda não me posso dar por vencida.

Vagueio em direção a leste simplesmente para passar o tempo antes de regressar à morada que Monsieur Berr me indicou. Contorno algumas esquinas, caminho ao lado de prédios de habitação e fachadas de lojas, até me encontrar numa rua estreita e repleta de pessoas que entram e saem das inúmeras lojas de designers. Numa placa, leio rue des Rosiers. Desço lentamente a rua, surpreendida com a combinação desconcertante de talhos, livrarias e sinagogas em estilo antigo com lojas de roupa de ar moderno.

Detenho-me junto a uma pequena fachada assinalada com uma estrela-de-David e a palavra synagogue, que, ao que parece, é idêntica em francês e em inglês. O meu coração bate com força, e eu estendo a mão trémula para tocar na parede exterior. Interrogo-me há quanto tempo ali estará o edifício e se a minha avó o terá frequentado em algum momento.

Enquanto permaneço ali, de pé, absorta em pensamentos sobre o passado, um aroma familiar faz-me regressar ao presente. Sinto no ar, muito vagamente, o cheiro das tartes amanteigadas, com aroma a canela, recheadas de figos e ameixas secas, que preparo todos os dias na minha própria confeitaria, as tartes das estrelas.

Volto-me lentamente e deparo-me com uma fachada pintada de vermelho-escuro com montras recheadas de várias formas de pão e bolos. Uma confeitaria. Pestanejo algumas vezes e, como se atraída por um íman invisível, sinto-me suspensa no ar quando atravesso a rua e transponho as portas do estabelecimento.

O interior está repleto de clientes. À direita, encontra-se um longo expositor de charcutaria com carnes e saladas prontas a comer; à esquerda, uma sucessão aparentemente infindável de bagels, cheesecakes, tortas, tartes e bolos, todos com pequenas legendas que indicam os seus nomes em francês e os seus preços em euros.

Permaneço na mesma posição, entorpecida, enquanto o meu olhar percorre a seleção de produtos que me parece tão familiar. Vejo o cheesecake de limão com uvas, uma das especialidades da North Star. Há igualmente um Strudel de aspeto delicado como aquele que nunca chega para as encomendas na minha confeitaria; aproximo-me e verifico que é praticamente idêntico: tem maçãs, amêndoas, passas, casca de laranja cristalizada e canela, como na minha receita. Encontro mesmo um pão de centeio fermentado semelhante ao que, há dois anos, me assegurou um lugar cimeiro na sondagem «Melhor Pão de Cape» do Cape Cod Times.

E ali, na montra, repousam fatias de algo a que eles chamam ronde des pavés. Estou habituada a vê-las em pequenas tartes individuais com uma crosta em forma de estrela, mas, quando me inclino para observar as fatias, o recheio é inconfundível. Sementes de papoila, amêndoas, uvas, figos, ameixas secas e açúcar com canela. Tal como as tão apreciadas tartes das estrelas da Mamie.

Que puis-je faire pour vous? – ouço dizer uma voz aguda atrás de mim. Volto-me, ligeiramente desnorteada.

– Eu… não falo francês – gaguejo. – Lamento. – O meu coração ainda bate desordenadamente.

A mulher, que parece ter sensivelmente a minha idade, sorri.

– Não há qualquer problema – diz, passando com naturalidade a falar um inglês com pronúncia. – Temos aqui muitos turistas. O que lhe posso servir?

Aponto, trémula, para uma das fatias de ronde des pavés. Ela começa a preparar uma embalagem, mas eu estendo o braço para a deter. Percebo que a minha mão treme quando toca no seu braço. Ela ergue os olhos, surpreendida.

– Qual é a origem destas receitas? – pergunto.

Ela franze o sobrolho e olha-me desconfiada.

– São receitas antigas da minha família, madame – diz. – Não as divulgamos.

– Não, não é isso que pretendo – apresso-me a dizer. – É que tenho uma confeitaria nos Estados Unidos, no Massachusetts, e preparo os mesmos bolos. Estava convencida de que todas estas receitas provinham da família da minha avó…

A desconfiança desaparece do seu rosto, e ela sorri.

– Ah. A sua avó é polaca?

– Não, é daqui. De Paris.

A mulher inclina a cabeça para o lado.

– Mas os pais dela eram da Polónia, não eram? – Morde os lábios. – Esta confeitaria foi aberta pelos meus bisavós, logo após a guerra. Em 1947. Eram polacos. Estas receitas têm uma grande influência do leste da Europa.

Aquiesço com um aceno lento.

– Tudo o que preparamos foi desenvolvido na tradition ashkénaze do passado da minha família. Ainda mantemos essas tradições. A sua avó é juive? Aliás… judia?

Repito o gesto.

– Sim. Creio que sim. Mas em que consiste a tradition ash… isso que acabou de dizer?

– É… como se diz… o judaïsme traditionnel da Europa – explica. – Teve início na Alemanha mas, centenas de anos depois, um grupo de juifs partiu para outros países do leste da Europa. Antes da guerra, a maioria das communautés juives da Europa eram ashkénaze, incluindo os meus avós. Antes de Hitler as exterminar.

Volto a assentir e olho de novo para os bolos.

– A minha avó sempre disse que a sua família tinha uma confeitaria aqui, em Paris – digo em voz baixa. – Antes da guerra. – Olho em volta e percebo que faltam muitos dos bolos favoritos da Mamie. – Têm bolos de pistácio? – pergunto.

Ela abana a cabeça, olhando-me inexpressivamente, e eu continuo a descrever as luas doces em quarto crescente da Mamie e as suas rosas de amêndoa. Mais uma vez, a mulher abana a cabeça.

– Não me soam familiares – afirma. Olha em volta, parecendo aperceber-se repentinamente de como a loja está apinhada. – Peço desculpa – diz. – Tenho de ir. A não ser que deseje um bolo.

Acedo e aponto para uma fatia de ronde des pavés, sabendo agora que terá o mesmo sabor de uma das nossas tartes das estrelas.

– Queria uma dessas fatias, por favor – peço.

Ela confirma com um gesto, envolve-a em papel encerado e coloca-a num pequeno saco de papel branco.

– Não tem nada a pagar – diz, entregando-me o saco com um sorriso. – Talvez me possa oferecer um bolo se eu, um dia, visitar o Massachusetts.

Eu retribuo o sorriso.

– Obrigada. Agradeço toda a sua ajuda.

Ela assente e afasta-se. Estou já a caminho da porta quando a ouço chamar-me.

Madame?

Viro-me para trás.

– Os outros produtos que mencionou… – começa. – Não creio que pertençam à tradition ashkénaze do leste da Europa. – Despede-se com um gesto e desaparece numa multidão de clientes à espera de serem atendidos. Franzo o sobrolho e, enquanto a vejo afastar-se, sinto-me um tanto confusa.

Saboreio a minha fatia de ronde des pavés enquanto repito o caminho para a morada que Monsieur Berr me indicou. Não é exatamente uma das nossas tartes das estrelas, mas tem muitas semelhanças. A minha versão leva mais canela – a Mamie sempre adorou canela – e a nossa crosta é um pouco mais densa e mais amanteigada. As passas do ronde são douradas, enquanto eu utilizo as passas escuras tradicionais. Mas é inquestionável que as receitas têm a mesma origem.

Quando me encontro novamente à porta do prédio do Alain, o bolo já acabou mas o turbilhão de dúvidas mantém-se. Respiro fundo e fecho os olhos por um momento, preparando-me para o sentimento de desilusão que se vai certamente apoderar de mim se ele não responder. Abro os olhos e carrego no botão do intercomunicador.

A princípio, a resposta é o silêncio. Volto a carregar no botão e, repentinamente, quando estou prestes a resignar-me, ouço um estalido e uma voz masculina abafada do outro lado.

– Sim! – Quase grito para a grelha do intercomunicador, sentindo o meu coração disparar. – Procuro Alain Picard.

Após uma pausa, ouço outro estalido e, de novo, a mesma voz.

– Peço desculpa, não o consigo entender – digo. – Pretendo falar com Alain Picard.

O altifalante repete o mesmo som exasperante, a voz diz qualquer coisa e, para meu grande alívio, ouço o zumbido da porta da frente.

Abro-a e avanço velozmente para um pátio pequeno, agradável, onde videiras trepam velhos muros de pedra ao lado de rosas vermelhas e narcisos amarelos. Atravesso-o rapidamente e entro no edifício. O Alain vive no apartamento 2B, segundo Monsieur Berr. Subo o lanço de escadas na esquina do prédio e perco-me momentaneamente ao ver que os dois apartamentos que tenho diante de mim são o 1A e o 1B. Contudo, recordo-me entretanto de que os franceses atribuem ao rés do chão o número 0 e não o número 1 e subo um segundo lanço de escadas.

Com o coração agitado, bato à porta no apartamento 2B. No momento em que ela se abre e eu me deparo com um homem idoso, ligeiramente curvado e com cabelo branco, espesso, deixo de ter dúvidas. Tem os olhos da Mamie, os olhos cinzento-azulados, a fazerem lembrar duas amêndoas, que a minha mãe herdou. Encontrei o meu tio-avô. Afinal, a Mamie faz parte desta misteriosa e desaparecida família Picard e, por conseguinte, eu também. Respiro fundo.

– Alain Picard? – balbucio quando recupero a voz.

Oui – diz. Olha-me fixamente. Abana a cabeça e pronuncia rapidamente algumas palavras em francês.

– Eu… peço desculpa – digo. – Apenas falo inglês. Lamento.

– Perdão, mademoiselle – diz, passando de imediato a falar inglês. – Acontece que é parecida com uma pessoa que conheci. É como ver um fantasma.

O meu coração estremece.

– Recordo-lhe a sua irmã? – pergunto. – Rose?

Vejo-o empalidecer.

– Mas como…? – A sua voz parece sumir-se.

– Penso que sou sua sobrinha-neta – digo-lhe. – Sou neta de Rose. Chamo-me Hope.

– Não – diz em voz baixa, quase sussurrando. – Não, não. É impossível. A minha irmã morreu há setenta anos.

Abano a cabeça.

– Não – corrijo. – Ainda está viva.

Non, ce n’est pas possible – murmura. – Não é possível.

– Ela sempre acreditou que o senhor tinha morrido – digo-lhe num tom suave. Ele não desvia os olhos dos meus.

– Ela está viva? – diz em surdina, após uma longa pausa. – Tem a certeza?

Aceno afirmativamente, sentindo que as palavras não atravessam o nó que de repente s me formou na minha garganta.

– Mas como… como veio ter aqui? Como me encontrou?

– A minha avó pediu-me que viesse a Paris para descobrir o que acontecera à sua família – digo. – O seu nome não constava de qualquer registo.

Explico sucintamente como os funcionários do Mémorial me conduziram a Olivier Berr.

– Recordo-me dele – diz lentamente. – Também conversou com o Jacob. Há muito tempo. Logo após a guerra.

– Jacob? – pergunto.

– Não sabe quem é o Jacob? – inquire, de olhos arregalados.

Abano a cabeça.

– É mais um dos irmãos? – Pergunto-me porque não terá a Mamie incluído esse nome na lista.

O Alain abana também a cabeça, mas lentamente.

– Não – diz. – Mas era a pessoa mais importante do mundo para a Rose.

Sigo o Alain até ao interior do apartamento, um espaço pequeno e repleto de livros. Vejo dezenas de chávenas de chá, com os respetivos pires, em prateleiras e em cima dos armários, algumas mesmo emolduradas na parede.

– A minha mulher colecionava-as – diz o Alain, seguindo o meu olhar e acenando para uma prateleira repleta de chávenas e pires, enquanto nos dirigimos a uma sala de estar. – Nunca gostei delas. Mas, depois da sua morte, não fui capaz de me desfazer da coleção.

– Lamento – digo. – Quando é que ela…?

– Há muito tempo – afirma, baixando os olhos. Entramos na sala de estar e ele aponta para uma de duas cadeiras de costas altas, forradas de veludo vermelho. Sento-me, e ele deixa-se cair, algo trémulo, na cadeira à minha frente. – A minha Anne foi das poucas pessoas que sobreviveu a Auschwitz. Costumávamos dizer que tinha tido muita sorte. Porém, as barbaridades a que foi sujeita impediram-na de ter filhos. Morreu aos quarenta anos, destroçada.

– Sinto muito – murmuro.

– Obrigado – diz. Inclina-se para a frente, com alguma impaciência, e fita-me com olhos que me são dolorosamente familiares. – Agora, por favor, fale-me da Rose. Perdoe-me; ainda estou abalado.

Explico-lhe sucintamente o que sei: que a minha avó emigrou para os Estados Unidos no início da década de 40, após o casamento com o meu avô, e que os dois tiveram uma filha, a minha mãe. Falo-lhe da confeitaria que a Mamie abriu em Cape Cod e conto-lhe como, uma hora antes, me tinha deparado com uma confeitaria judaica ashkénaze na rue des Rosiers, com tantos bolos que tão bem conheço.

– Eu sempre soube que a Rose tinha arte da doçaria no sangue – diz o Alain com ternura. – A nossa mãe era da Pologne. Os seus pais trouxeram-na para Paris quando era apenas uma menina. Tinham uma confeitaria e, antes de a nossa mãe se ter casado com o nosso pai, trabalhava lá dia após dia. Mesmo depois de ter filhos, continuava a ajudar na confeitaria aos fins de semana e nas noites mais movimentadas. A Rose adorava ir com ela. Tudo isso faz parte do legado da nossa família.

Abano a cabeça, incrédula. Penso como é incrível ter estado rodeada da história familiar da Mamie durante toda a vida e nunca a ter conhecido. Sempre que preparava um Strudel ou uma tarte das estrelas, estava a seguir uma tradição presente na nossa família há várias gerações.

– Mas como conseguiu ela fugir de Paris? – pergunta ele, inclinando-se ainda um pouco mais, tanto que quase receio que caia da cadeira. – Sempre pensámos que tinha morrido, de alguma forma, imediatamente antes da rusga.

– Não sei – digo, desalentada. – Esperava que me pudesse dizer. – Ele parece agora confuso.

– Mas disse-me que ela está viva, não disse? Não lhe pode perguntar?

– Ela sofre da doença de Alzheimer – digo, deixando tombar a cabeça. – Não sei como lhe chamam em francês.

Ergo os olhos e o Alain assente, com as suas feições tomadas pela tristeza.

– A palavra é a mesma. Não se lembra do que aconteceu, portanto – sussurra.

– Ela nunca falou do seu passado – explico. – Na verdade, eu soube apenas há alguns dias que ela era judia.

Ele mostra-se ainda mais confuso.

– Claro que é judia.

– Sempre a vi como católica – asseguro, abanando a cabeça. O Alain parece perplexo.

– Mas… – Detém-se, como se não soubesse o que perguntar a seguir.

– Também não compreendo – digo. – Só há poucos dias tive conhecimento de que a nossa família era judia. Não sabia sequer que o seu nome de solteira fora Picard. Sempre nos disse que era Durand. A minha filha fez até, há alguns anos, uma árvore genealógica num projeto para a escola, e é o nome Durand que aparece em todos os documentos que encontrámos. Não há registo do apelido Picard.

O Alain observa-me demoradamente e suspira.

– Rose Durand é provavelmente a identidade que lhe permitiu fugir. Para sair de França naquele período, precisaria de conseguir novos documentos, com certeza nas regiões não ocupadas do país. E, para obter novos documentos, teria certamente de se fazer passar por outra pessoa. Deve ter sido ajudada pela Résistance. Eles devem ter fornecido documentos falsos.

– Documentos falsos que indicam que ela é cristã? Com o nome Rose Durand em vez de Rose Picard?

– Durante a guerra, era muito mais fácil, naturalmente, fugir enquanto católica do que enquanto judia. – O Alain acena solenemente. – Se estivesse convicta de que nos perdera a todos, talvez preferisse esquecer as suas origens. Talvez se tenha perdido na sua nova identidade por ser essa a única forma de manter a sua santé d’esprit. A sua sanidade mental.

– Mas o que a levaria a pensar que estavam mortos? – pergunto.

– Após a libertação, tudo era bastante confuso – diz o Alain. – Nós, os que ficámos em França, encontrávamo-nos no Hôtel Lutetia, no boulevard Raspail. Era um centro de acolhimento, depois da guerra, para todos os sobreviventes. Alguns para se tratarem, para receberem cuidados médicos. Para nós, era um local onde podíamos procurar pessoas conhecidas. Procurar as famílias que tínhamos perdido.

– Esteve lá? – pergunto. Ele assente.

– Nunca fui deportado – diz discretamente. – Após a guerra, fui ao Hôtel Lutetia em busca da minha família. Queria muito acreditar que tinham sobrevivido, Hope. Uma vez lá chegados, escrevíamos os nomes dos nossos familiares num quadro. «Procuro Cécile Picard. Mãe. Quarenta e quatro anos. Detida em 16 de julho de 1942. Levada para o Vel’ d’Hiv». As pessoas vinham dizer-nos Conheci a sua mãe em Auschwitz. Morreu no terceiro mês, de pneumonia ou Trabalhei com o seu pai no crematório em Auschwitz. Adoeceu e foi levado para a câmara de gás, pouco tempo antes da libertação do campo.

Olho-o fixamente.

– Descobriu que todos tinham falecido.

– Todos – sussurra o Alain. – Avós, primos, tias, tios. Rose também era dada como morta. Duas pessoas juraram tê-la visto ser baleada durante a rusga. Saí sem indicar o meu nome, pois não havia mais ninguém para me procurar. Era essa a minha convicção. Por isso não há registos a meu respeito. Eu queria apenas desaparecer.

– Como evitou ser preso?

– Eu tinha onze anos quando nos vieram buscar. Os meus pais não acreditavam em todos os rumores que ouvíamos. Mas a Rose levava-os a sério. Não conseguiu, porém, convencer os meus pais. Pensavam que ela enlouquecera, que era uma tolice acreditar nos vaticínios do Jacob, que consideravam um rebelde ignorante.

Ei-lo novamente. Aquele nome.

– Não chegou a dizer-me quem era o Jacob.

O Alain perscruta por instantes o meu rosto.

– O Jacob era tudo – diz com simplicidade. – Foi o Jacob que me aconselhou a fugir se a polícia aparecesse. Foi o Jacob que me incitou a tentar convencer a minha família. Foi o Jacob que me salvou, porque, quando a polícia invadiu a nossa casa, para nos prender, saltei pela janela das traseiras, caí de uma altura de três andares e corri.

Fita as mãos durante um longo momento. Apresentam algumas deformações e cicatrizes. Por fim, inspira profundamente e prossegue.

– Deixei morrer a minha família porque tinha medo – declara. Ergue a cabeça e fita-me, com lágrimas nos olhos. – Não fiz o que era necessário para os persuadir. Não trouxe comigo Danielle e David, os mais novos. Estava assustado, muito assustado, e foi por isso que morreram todos.

Rola-lhe uma lágrima pela face. Impelida pela emoção, atravesso a sala para o abraçar. Ele mantém a rigidez por um momento, mas depois sinto os seus braços cingirem os meus ombros. Todo o seu corpo treme.

– Tinha onze anos – murmuro. – A culpa não foi sua.

Afasto-me, e ele suspira.

– Seja de quem for a responsabilidade, toda a minha família foi assassinada e eu continuo aqui, setenta anos mais tarde. Tive de viver com isto durante toda a vida. É um peso no coração.

Sinto lágrimas nos meus olhos quando me volto a sentar.

– Como é que o Jacob sabia? Porque é que o aconselhou a fugir?

– Fazia parte de um movimento clandestino de combate aos nazis – conta o Alain. – Acreditava nos rumores sobre os campos de morte. Acreditava que eles nos estavam a exterminar metodicamente. Pertencia a uma minoria. Mas a Rose confiava nele. Tal como eu, pois o Jacob era um herói para mim. Ele deve tê-la salvado.

– Como? – pergunto quase num sussurro.

O Alain observa-me durante bastante tempo.

– Não sei. Mas ela era o grande amor da sua vida. Teria feito tudo o que fosse necessário para a proteger. Tudo.

Pestanejo, incrédula.

– Ela também o amava?

– Com uma intensidade que eu não julgava possível nela – confirma. O seu olhar vagueia demoradamente. – Foi por isso que, durante todos estes anos, tive a convicção firme de que ela morrera. Pensava que ela, se tivesse sobrevivido, viria procurá-lo.

– Ela também terá presumido que ele estava morto – murmuro. – O nome dele estava no quadro do Hôtel Lutetia?

O Alain assume uma expressão solene.

– Sim, estava – confirma. – Ele agarrava-se desesperadamente à ideia de que ela tinha fugido, apesar dos rumores que nos chegavam. O seu nome esteve sempre na lista para que, se ela regressasse, o pudesse encontrar.

– Mas o meu avô veio a Paris – digo. – Em 1949. Para procurar descobrir o que aconteceu à família da minha avó. Foi ela que mo disse.

– Não existiam registos meus – diz o Alain. – Foi seguramente por esse motivo que não me encontrou. Contudo, o Jacob procurou sempre manter-se na lista para a eventualidade de a Rose ter, de uma forma ou de outra, sobrevivido.

Engulo em seco e pergunto-me o que significariam estas novas informações. Teria a Mamie ocultado o nome do Jacob ao meu avô? Ou teria o meu avô, afinal, encontrado o nome do Jacob na lista de sobreviventes e contado outra versão a Mamie, percebendo o quanto ela o amava e preferindo proteger a vida que já iniciara com ela? Estremeço involuntariamente.

– O Jacob conseguiu fugir, tal como a minha avó? – pergunto-lhe. – Antes da rusga?

O Alain abana a cabeça e inspira profundamente.

– O Jacob esteve em Auschwitz – diz. – Sobreviveu porque tinha absoluta certeza de que a Rose se encontrava algures, em segurança, e prometera encontrá-la. Contou-me, no nosso derradeiro encontro, que não acreditava na sua morte, pois tê-la-ia sentido na alma. Foi essa esperança de a reencontrar que o manteve vivo naquele Inferno na Terra.