Capítulo 15

– Nunca soubemos se devíamos acreditar nos rumores – começa o Alain depois de nos apertarmos todos num táxi e iniciarmos a agitada viagem para sul, em direção ao rio. Lá fora, as ruas dão os primeiros sinais de vida, enchendo-se de transeuntes, enquanto o sol começa a aquecer a cidade e a animar os edifícios com uma luz da cor do limão.

– Quais rumores? – pergunto. – A que se refere?

O Alain e o Simon trocam olhares. O Henri intervém primeiro.

– Havia rumores de que os muçulmanos de Paris tinham ajudado muitos judeus durante a guerra – diz ele com uma voz inexpressiva.

Surpreendida, procuro com o olhar o Alain, que confirma.

– Espere lá, está a dizer-me que muçulmanos salvaram judeus?

– Nunca tivemos notícias dessa natureza durante a guerra – afiança o Simon. Depois de olhar para o Alain, acrescenta: – Bom, quase nunca.

O Alain confirma.

– O Jacob disse-me, certo dia, algo que me deixou pensativo… – A sua voz desvanece-se e ele abana a cabeça. – Mas, na verdade, nunca acreditei.

– Houve um período – diz o Henri – em que, de certo modo, nos considerávamos irmãos. Os judeus e os muçulmanos. Os muçulmanos não foram perseguidos como nós durante a guerra, mas sempre foram tratados como intrusos, à semelhança dos judeus. Imagino que alguns muçulmanos se identificassem pessoalmente com o sofrimento dos judeus. Quem poderia assegurar que o país não lhes viraria as costas a seguir?

– Surgiu, então, o rumor de que eles nos ajudavam – afirma o Simon. – Eu nunca soube se isso era verdade.

– Como assim? – pergunto.

– Os rumores indicavam que eles proporcionavam alojamento ou abrigo a muitas crianças cujos pais foram deportados, bem como a alguns adultos – explica o Alain. – E que acabaram por ajudar muitas pessoas, através de redes clandestinas, a alcançar a zona livre. Em alguns casos, conseguiram arranjar-lhes documentos falsos.

– Está a dizer-me que muçulmanos ajudaram a sair clandestinamente judeus de Paris? – pergunto. Abano entretanto a cabeça; é difícil acreditar.

– O líder da Grande Mesquita de Paris era, na época, o muçulmano mais poderoso da Europa – conta o Henri, olhando para o Alain. – Si Kaddour Beng… comment s’est-il appelé?

– Benghabrit – esclarece o Alain.

– Sim, isso mesmo – assente o Henri. – Si Kaddour Benghabrit. O governo francês receava tocar-lhe. E é possível que ele tenha utilizado o seu poder e a sua influência para salvar muitas vidas.

Abano a cabeça e observo atentamente, pela janela do táxi, Paris a desfilar ao nosso lado. Quando atravessamos uma ponte e aceleramos em direção à Rive Gauche, vejo à direita as torres de Notre-Dame, recortadas à distância contra o céu. Mais longe, ouço sinos de igreja assinalarem a hora certa.

– Está então a dizer-me que talvez tenha sido uma dessas redes que ajudou a avó a sair de Paris? Que ela pode ter sido ajudada pelos muçulmanos da Grande Mesquita?

– Isso explicaria como aprendeu a preparar bolos muçulmanos – diz o Alain.

– E esclareceria muitas dúvidas – acrescenta Henri. – Dificilmente haverá registos. Ninguém fala sobre o que aconteceu. Os segredos desse tempo morreram nesse tempo. Hoje, existe muita tensão entre os grupos religiosos. É impossível saber se é verdade.

– E se for mesmo verdade? – sussurro. Subitamente, recordo-me das últimas palavras que a Mamie me dirigiu quando insisti em que me respondesse se era ou não judia. Sim, sou judia, dissera. Mas também católica. E muçulmana. Compreendo, arrepiada, o significado destas palavras e os meus olhos arregalam-se.

O táxi estaciona diante de um edifício branco com telhas de cor verde intensa, arcos adornados e cúpulas reluzentes.

Eleva-se do edifício um minarete com ornamentos verdes que, embora ostente pormenores indiscutivelmente marroquinos, se assemelha bastante a qualquer uma das torres de Notre-Dame por que acabámos de passar. Ecoa-me nos ouvidos outra frase da Mamie. É a humanidade que cria as diferenças, disse-me na semana passada. Isso não significa que o Deus não seja o mesmo.

O Henri paga ao motorista e saímos todos do táxi. Dou-lhes a mão para ajudá-los, enquanto eles estendem as pernas e saem para o passeio.

– Noutros tempos, eu conseguia fazer isto sozinho – diz o Henri com um sorriso. Pisca-me o olho, e seguimos os quatro em direção a uma entrada em arco numa esquina do edifício.

– Se aqui ninguém fala sobre o passado – sussurro ao Alain enquanto atravessamos o pequeno pátio –, o que viemos cá fazer?

Ele enlaça o seu braço no meu e sorri.

– Ver os bolos – diz.

O pátio está repleto de focos de luz solar que, ao atravessarem as árvores, criam sombras nos ladrilhos brancos do pavimento. No centro do pátio, e ao longo das paredes, existem pequenas mesas com azulejos azuis e brancos, todas com cadeiras de madeira que, nos assentos e nas costas, têm fio entrançado de um azul muito vivo. As paredes são escaladas por plantas de um verde muito intenso e flores amarelas. Entre as mesas, vão saltitando pardais. Além de ser calmo e tranquilo, o edifício está de tal forma deserto que seguramente ainda não abriu.

Um homem árabe de meia-idade, vestido integralmente de preto, aborda-nos e diz algumas palavras em francês. O Alain responde e faz um gesto na minha direção; durante um minuto, os quatro homens falam rapidamente num francês que não consigo entender. A princípio, o homem abana a cabeça, mas acaba por encolher os ombros e convidar-nos a subir com ele uma pequena escada de acesso ao edifício principal.

No seu interior, à entrada, encontra-se um homem mais jovem, de cabelo escuro e pele cor de azeitona, de aproximadamente vinte e cinco anos, a colocar bolos num expositor de vidro, e, quando eu olho para o seu interior, o meu coração dá um pulo. Ali, no expositor, estão inúmeros bolos, quase metade dos quais são exatamente idênticos aos bolos que preparo na minha confeitaria. Há delicadas luas em quarto crescente polvilhadas com açúcar em pó da cor da neve; pequenos bolos verde-claros envolvidos por massa branca e coroados com minúsculos pedaços de pistácio; pedaços de baklava embebidos em mel; e bolos de amêndoa húmidos com uma cereja ao centro. Vejo rolos de massa fina com açúcar; grossas fatias de um bolo açucarado com amêndoas; e mesmo os pequenos e densos anéis de canela que a Annie adora desde criança.

O meu coração agita-se quando ergo os olhos para o Alain.

– São os mesmos? – pergunta ele.

Aceno lentamente com a cabeça.

– São os mesmos – confirmo.

Ele sorri, com os olhos subitamente lacrimejantes, e dirige-se ao homem mais velho, que nos observa com um ar severo. Trocam algumas frases em francês e, em seguida, o Alain volta-se para mim.

– Hope, podes explicar como são os teus bolos? Contei-lhe o que pensamos poder ter acontecido à Rose.

Sorrio para o nosso anfitrião, que parece pouco convencido.

– Os bolos que preparam aqui – digo – são idênticos aos que a minha avó me ensinou a fazer. São os mesmos que vendemos na nossa confeitaria de Cape Cod.

O homem abana a cabeça.

– Isso não tem qualquer significado. São bolos comuns. E há muitos judeus provenientes do norte de África. Além disso, estes bolos não são apenas muçulmanos. A sua avó pode ter aprendido a prepará-los em qualquer lado. Provavelmente aprendeu com outro judeu.

Perco algum alento. De facto, é uma tontice basearmos toda uma ideia do passado num conjunto de bolos.

– Claro – murmuro. – Peço desculpa. – Agradeço com um gesto e afasto-me.

O Alain coloca a mão no meu braço.

– Hope? – diz. – Estás bem?

Aceno que sim, mas sem convicção. Não sei como lhe responder, pois sinto que estou prestes a chorar e não compreendo bem porquê. Por qualquer motivo, que não entendo, é muito importante para mim conseguir explicar o que aconteceu à Mamie. Neste momento, estou certa de que ela pretendia que eu soubesse mais sobre o seu passado. Porém, agora talvez nunca venhamos a saber como se manteve viva durante a guerra.

– Vamos – consigo por fim dizer. O homem vestido de preto faz um gesto seco e distancia-se, enquanto Henri e Simon começam a dirigir-se para a saída. O Alain e eu seguimo-los, mas eu sinto de repente um aroma familiar e paro de imediato. Volto-me lentamente e vejo o jovem atrás do balcão introduzir um tabuleiro com bolos retangulares, polvilhados com açúcar, no expositor. Regresso até junto dele.

– Peço desculpa – digo. – Será que vende, porventura… – Faço um esforço para recordar o nome do bolo que encontrei na confeitaria do Marais. – Ronde des pavés?

O homem observa-me.

Ronde des pavés? – repete. – Não falo bem o inglês. Mais, non, não sei o que é ronde des pavés.

– Pois… – Olho em volta à procura do Alain. Ele vem ter comigo ao balcão.

– Importa-se de perguntar a este homem se ronde des pavés é uma tarte confecionada com sementes de papoila, amêndoas, uvas, figos, ameixas secas e açúcar com canela? Pode perguntar-lhe se a receita lhe parece familiar?

Sei que devo estar a enlouquecer, mas poderia jurar que senti no ar o aroma da tarte das estrelas. Antes da tradução do Alain, ele fita-me com uma expressão estranha.

– Essa era a receita da minha mãe – diz.

– É a especialidade da nossa confeitaria – digo-lhe, mais animada. – E o bolo preferido da minha avó.

O Alain fita-me, pestaneja algumas vezes e, em seguida, volta-se para o homem e traduz rapidamente as minhas palavras. Vejo o jovem anuir e dar uma resposta. O Alain vira-se para mim.

– Ele confirma. Diz, porém, que aqui fazem as tartes isoladamente e cada crosta tem a forma de uma estrela.

– Foi assim que a Mamie me ensinou a fazê-las – digo lentamente, atónita. – Chama-lhes tartes das estrelas.

O Alain afaga a cabeça. Ao meu lado, o Simon e o Henri permanecem em silêncio. Todos olhamos fixamente para o jovem enquanto o Alain lhe explica, em francês, o que são as tartes das estrelas. Os seus olhos arregalam-se e ele olha nervosamente para mim e depois, de novo, para o Alain. Diz rapidamente algumas palavras em francês e o Alain volta a esclarecer-me.

– Ele mencionou um homem que vive no sixième arrondissement – diz o Alain. – Não muito longe daqui. A sua família possui uma confeitaria muçulmana. A receita é desse homem. Talvez nos consiga explicar a origem das tartes.

Aquiesço e olho timidamente para o jovem.

– Obrigada – digo. – Merci beaucoup.

De rien. – Baixa a cabeça delicadamente e sorri. – Bonne chance.

Enquanto sigo o Alain e os seus dois amigos no regresso ao pátio, a caminho da saída, o meu coração esmaga-me o peito.

– Acredita que as tartes tenham algo a ver com a minha avó? – pergunto.

– É impossível saber – diz o Alain. Contudo, o brilho dos seus olhos e o passo acelerado revelam uma esperança que me contagia.

Chamamos um táxi e viajamos em silêncio, durante quinze minutos, até chegarmos ao local que o jovem nos indicou. Trata-se de uma pequena confeitaria, de aspeto tipicamente francês, exceto no letreiro, escrito em árabe e em francês. No seu interior, o aroma a fermento é intenso, e as paredes estão repletas de baguetes colocadas na vertical. O expositor principal é uma sequência interminável de bolos salpicados de frutos e açúcar cristalizado. Reconheço de imediato as grandes tartes das estrelas, com a sua crosta entrançada que preparo há tantos anos, e o meu coração volta a palpitar; é seguramente um sinal de que estamos no bom caminho.

Perguntamos à jovem que se encontra atrás do balcão se podemos falar com o proprietário e, pouco depois, surge de uma divisão interior um homem alto, de meia-idade, com pele cor de caramelo e cabelo muito negro, apenas grisalho nas têmporas. Usa um avental de padeiro, branco e imaculado, sobre umas calças caqui perfeitamente engomadas e uma camisa azul-clara com botões no colarinho.

– Ah, sim, Sahib telefonou-me da mesquita informando-me de que estavam a caminho – diz, depois de nos saudar aos quatro. – Chamo-me Hassan Romyo, e os senhores são muito bem-vindos ao nosso estabelecimento. Receio, porém, não vos poder ajudar.

Volto a sentir-me desalentada.

– O senhor não conhecerá a origem da receita das tartes com a crosta em forma de estrela? – pergunto em voz baixa, apontando para as tartes do expositor. Ele abana a cabeça.

– Sou proprietário desta confeitaria há já vinte anos – explica-me – e a receita está connosco desde que me lembro. Antes de mim, já era feita pela minha mãe, mas ela morreu há bastante tempo. Sempre pensei tratar-se de uma receita da família.

– É uma receita judaica – interpõe delicadamente o Alain. Monsieur Romyo observa-o, arqueando as sobrancelhas. – Foi trazida pela mãe da minha avó, desde a Polónia, há muitos anos.

– Judaica? – pergunta Monsieur Romyo. – E polaca? Está seguro do que diz?

O Alain confirma.

– É exatamente a mesma receita que os meus avós utilizavam na sua confeitaria, antes da Segunda Guerra Mundial. Julgamos ser possível que, durante a guerra, a minha irmã tenha ensinado a sua família a confecionar esta tarte.

Monsieur Romyo fita o Alain durante vários segundos e acaba por ceder.

Alors. Os meus pais já faleceram, mas eram jovens durante a guerra. Apenas crianças. Não teriam seguramente memórias desse tempo. Contudo, o tio da minha mãe talvez saiba o que aconteceu.

– Ele está aqui? – pergunto.

Monsieur Romyo ri-se.

– Não, madame. É muito velhinho. Tem setenta e nove anos.

– Setenta e nove anos não é assim tanto – sussurra o Henri atrás de mim. Monsieur Romyo parece não o ter ouvido.

– Vou telefonar-lhe agora – anuncia. – Mas devo dizer-lhe que ele é quase surdo. É difícil conversar com ele.

– Peço-lhe que tente – digo num sussurro. Ele anui.

– Admito que agora também estou curioso.

Coloca-se atrás do balcão, pega num telemóvel e percorre a lista de contactos e após alguns instantes, seleciona um número.

Só quando o ouço dizer «Allô? Oncle Nabi?» me apercebo de que estava a suster a respiração. Expiro lentamente.

Apesar de não compreender o que ele diz, ouço-o falar muito alto para o telemóvel, repetindo-se várias vezes. Por fim, afasta o telefone e dirige-se a mim.

– A propósito desta tarte das estrelas… – começa. – O meu tio afirma que a família dele aprendeu a receita com uma jovem.

O Alain e eu trocamos olhares.

– Quando? – atiro ansiosamente.

Monsieur Romyo fala mais uma vez para o telefone e repete depois o que disse em voz mais alta.

– Durante l’année mille neuf cents quarante-deux – diz. – Mil novecentos e quarenta e dois.

– Será possível…? – pergunto baixinho ao Alain. Volto-me para Monsieur Romyo. – O seu tio tem alguma memória dessa jovem?

Ele repete a minha pergunta, em francês, para o telemóvel. Momentos depois, volta a erguer o olhar na nossa direção.

– Rose – diz. – Ela chamava-se Rose.

– Como? – pergunto ao Alain ansiosa. Ele abre um sorriso.

– Parece que a jovem se chamava Rose.

– É a minha avó – murmuro, fitando Monsieur Romyo.

Ele acena que sim, profere mais algumas palavras ao telefone e escuta o tio durante algum tempo. Desliga e afaga o cabelo.

– Tudo isto é muito invulgar – diz, olhando alternadamente para o Alain e para mim. – Durante todos estes anos, nunca pensei… – A sua voz desvanece-se e ele pigarreira. – O meu tio, Nabi Haddam, gostaria de vos receber agora mesmo. D’accord?

Merci. D’accord – acede o Alain de imediato. – Está bem – traduz-me. – Vamos agora.

Cinco minutos depois, encontramo-nos todos num táxi, a caminho do sul da cidade, mais concretamente de uma casa na rue des Lyonnais que, segundo Monsieur Romyo, ficava muito próxima da confeitaria. Consulto novamente o relógio. São oito e vinte e cinco. Apanharemos o voo em cima da hora mas, neste momento, sentimos que esta visita é obrigatória.

Sinto-me a tremer quando o carro estaciona diante do prédio de Nabi Haddam. Ele já nos aguarda no exterior. Monsieur Romyo informou-nos de que ele é apenas um ano mais novo do que o Alain, mas a verdade é que parece pertencer a uma geração totalmente diferente. O seu cabelo é muito negro e o seu rosto revela muito menos rugas do que o do meu tio.

Veste um fato cinzento e tem as mãos entrelaçadas. Quando saímos do carro, ele olha-me demoradamente.

– É neta dela – sussurra antes de podermos sequer apresentar-nos. – É neta de Rose.

– Sim – suspiro.

Ele sorri e aproxima-se, decidido. Beija-me nas duas faces.

– É o rosto dela, sem tirar nem pôr. Acaba por recuar, agora com lágrimas nos olhos.

O Alain apresenta-se como irmão da Rose e o Henri e o Simon também o saúdam. Digo a Monsieur Haddam que me chamo Hope2.

– É o nome certo – murmura. – A sua avó sobreviveu graças à esperança. – Pestaneja algumas vezes e sorri. – Entrem, por favor.

Aponta para a porta do prédio, introduz um código e conduz-nos até uma entrada escura. Do lado esquerdo, há uma porta encostada, que ele abre totalmente para nos deixar entrar.

– A minha casa – diz, fazendo um gesto amplo. – Aqui são bem-vindos.

Depois de nos sentarmos numa sala pouco iluminada, forrada de livros e de fotografias, aparentemente de familiares de Monsieur Haddam, o Alain inclina-se para a frente.

– Como conheceu a minha irmã? A Rose?

Pardon? – pergunta. Pestaneja algumas vezes e diz: – Sou quase sourd. Surdo. Lamento.

O Alain repete a pergunta em voz mais alta e, desta vez, Monsieur Haddam assente. Sorri e recosta-se na cadeira. Observa o Alain durante bastante tempo antes de responder.

– O senhor é o irmão mais novo da Rose? Tinha onze anos em 1942?

Oui – diz o Alain.

– Ela falava muito de si – diz sem rodeios.

– Sim? – pergunta o Alain, comovido.

Monsieur Haddam assente.

– Penso ser esse um dos motivos por que era tão atenciosa comigo. Eu cumpri apenas o meu décimo aniversário nesse ano. Ela dizia-me frequentemente que eu lhe fazia lembrar o irmão.

O Alain baixa os olhos, e eu apercebo-me de que ele tenta não chorar diante dos outros homens.

– Ela julgava ter-vos perdido a todos – diz Monsieur Haddam segundos depois. – Penso que vivia destroçada por esse motivo. Muitas vezes, chorava até adormecer, repetindo os vossos nomes.

Quando o Alain volta a erguer o olhar, tem uma lágrima a rolar -lhe pela face direita. Enxuga-a com a mão.

– Também eu julgava tê-la perdido – declara. – Assim pensei durante todos estes anos.

Monsieur Haddam volta-se para mim.

– É a neta dela – afirma. – E ela sobreviveu?

– Sobreviveu – digo num tom baixo.

– E ainda é viva?

Faço uma pausa.

– Sim. – Estou prestes a dizer-lhe que ela sofreu um AVC, mas engulo as palavras. Não sei se por ainda não estar preparada para reconhecer esse facto ou por não querer arruinar o final feliz de Monsieur Haddam. – Como… O que aconteceu? – acabo por perguntar.

Monsieur Haddam sorri.

– Tomam uma chávena de chá? – pergunta.

Todos declinamos a oferta. Os homens estão tão ansiosos como eu por ouvir a história.

– Muito bem – diz Monsieur Haddam. – Vou contar o que se passou. – Respira fundo. – Ela veio ter connosco em julho de 1942. Na noite em que se iniciaram aquelas terríveis rusgas.

– Para o Vel’ d’Hiv – digo.

– Sim – aquiesce Monsieur Haddam. – Creio que, até esse dia, muitas pessoas desconheciam o que estava a acontecer. Mesmo após esse acontecimento, muitas permaneceram sem saber. Mas Rose sabia o que se estava a passar. E procurou refúgio entre nós.

»A minha família acolheu-a. Ela explicou aos responsáveis pela mesquita que a família da sua mãe também administrava uma confeitaria. Perguntou-nos, pois, se a podíamos acolher durante algum tempo. No mundo de então, o orgulho numa profissão sobrepunha-se às diferenças religiosas.

»Admirava a Rose de uma forma que, inicialmente, preocupou o meu pai, pois não me era permitido nutrir tal admiração por uma jovem de um mundo diferente. Mas ela, além de ser simpática e amável, ensinava-me muitas coisas. Penso que, com o passar do tempo, os meus pais compreenderam que ela não era, afinal, muito diferente de nós.

Faz uma pausa, inclinando a cabeça. Por fim, suspira e continua.

– Ela viveu connosco, como muçulmana, durante dois meses. Todos os dias, de manhã e à noite, orava connosco, o que agradava bastante aos meus pais. Continuava, porém, a rezar ao seu Deus; eu ouvia-a sempre, pela noite dentro, pedir proteção para as pessoas que amava. Eu diria que Deus respondeu às orações dela. – Sorri para o Alain, que cobre o rosto com as mãos e afasta o olhar.

»Ensinámos-lhe muito sobre o Islão e sobre as nossas receitas tradicionais. Mas ela também nos ensinou muitas coisas. Trabalhou na nossa confeitaria. Ela e a minha mãe permaneciam muitas horas na cozinha, sussurrando entre si. Não sei de que falavam; a minha mãe asseverava sempre que eram assuntos de mulheres. E foi a Rose que nos ensinou a confecionar a tarte des étoiles, a tarte das estrelas, que me trouxeram hoje. Era a sua preferida. E a minha também, desde quea Rose me contou a história.

– Qual história? – pergunto.

Monsieur Haddam parece surpreendido.

– A história das crostas em forma de estrela.

O Alain e eu trocamos olhares.

– Porquê? – insisto. – Qual é a história?

– Não a conhecem? – inquire Monsieur Haddam. Depois de o Alain e eu abanarmos a cabeça, ele prossegue. – Utilizava essa forma porque lhe recordava a promessa, feita pela sua única grande paixão, de a amar enquanto houvesse estrelas no céu.

– Jacob – sussurro, olhando para o Alain. Ele assente. Após tantos anos a preparar tartes das estrelas, percebo agora que estive a preparar um tributo a um homem cuja existência desconhecia. Emito um som seco ao reprimir um soluço aparentemente vindo do nada.

– Havia muitas noites em que não era seguro sair, em que as nuvens cobriam a cidade ou em que existia um fumo espesso no ar – prossegue Monsieur Haddam. – Nessas noites em que a Rose não conseguia ver as estrelas, dizia ter de procurar conforto em qualquer coisa. Por esse motivo, começou a colocar as estrelas nas suas tartes. Anos mais tarde, era eu quase adulto, a minha mãe costumava fazer-me as mesmas tartes e recordar-me que o verdadeiro amor vale tudo. Não era uma ideia comum naquele tempo; havia muitos casamentos combinados. Mas tinha razão. E eu esperei. Casei-me com o amor da minha vida. Em toda a minha vida profissional, fiz sempre as tartes des étoiles em honra da Rose. E ensinei os meus filhos, e os meus primos, e a geração seguinte, a fazer o mesmo, a nunca abdicar de esperar pelo amor, como a Rose. Como eu.

Monsieur Haddam faz uma pausa.

– Digam-me, então… A Rose voltou a encontrar o homem que amava? – pergunta. – Depois da guerra?

O Alain e eu trocamos olhares.

– Não – digo, sentindo o peso da perda sobre o meu peito. Monsieur Haddam baixa os olhos e abana a cabeça com uma expressão triste.

A meu lado, Henri pigarreia. Eu deixara-me envolver de tal forma na história de Monsieur Haddam que quase me esquecera que ele e Simon ainda estavam connosco.

– E, no final, como conseguiu ela sair de Paris? – pergunta.

Monsieur Haddam abana a cabeça.

– É impossível saber ao certo. Um dos motivos por que a mesquita conseguiu salvar tantas pessoas era o secretismo que envolvia todas as suas atividades. O Alcorão ensina-nos a ajudar quem mais necessita e a fazê-lo discretamente, pois Deus conhece as nossas ações. Por esse motivo, e face ao perigo em causa, ninguém discutia estes assuntos, nem sequer naquele tempo. Muito menos com um rapaz de dez anos. Porém, as informações que recolhi desde então levam-me a crer que muitos dos judeus que acolhemos foram conduzidos pelas catacumbas até ao rio Sena. Talvez ela tenha entrado furtivamente numa barca e descido assim o rio até Dijon. Ou atravessado a linha de demarcação com documentos falsos.

– Isso não custaria muito dinheiro? – pergunta Henri. – Obter documentos falsos? Atravessar a linha? – Volta-se para mim e acrescenta: – A minha família não conseguiu sair da zona ocupada porque não conseguia pagar as despesas.

– Sim – responde Monsieur Haddam. – Mas a mesquita ajudava a disponibilizar documentos. Disso tenho a certeza. Quanto ao homem que ela amava, o Jacob, sei que lhe deixou algum dinheiro. Ela escondeu-o no forro de um dos seus vestidos. A minha mãe ajudou-a a fazê-lo.

»Depois de alcançar a zona livre, seria mais fácil sair do país. Aqui, em Paris, vivia como muçulmana, com documentos falsos. Todavia, em Dijon, ou noutro local de destino, deve ter preenchido um formulário de recenseamento da gendarmerie. Por ser francesa, é provável que, mediante um pequeno suborno, a tenham registado como católica. A partir daí, pode ter viajado para Espanha.

– Ela conheceu o meu avô em Espanha – digo.

– O seu avô não é o Jacob? – inquire Monsieur Haddam com um olhar severo. – É-me difícil imaginar que se tenha apaixonado tão rapidamente por outro homem.

– Não – digo em voz branda. – O meu avô chamava-se Ted.

Ele baixa a cabeça.

– Então, casou-se com outro. – Faz uma pausa. – Sempre parti do princípio de que a Rose falecera – diz. – Morreu muita gente naquele tempo. Sempre acreditei que nos contactaria após a guerra se tivesse sobrevivido. Mas talvez ela quisesse simplesmente esquecer esta vida.

Reflito sobre o que o Gavin me disse acerca de alguns sobreviventes do Holocausto que preferiram começar de novo quando estavam convencidos de que haviam perdido tudo.

– E não há registo de nenhum destes acontecimentos? – pergunto pouco depois. – O que a sua família fez é tremendamente corajoso e heroico. Tal como o que fizeram outras pessoas da Grande Mesquita.

– Nesse período, não podíamos guardar qualquer tipo de registo – diz Monsieur Haddam, sorrindo. – Sabíamos que estávamos a associar o nosso destino ao das pessoas que salvávamos. Se os nazis, ou a polícia francesa, fizessem uma busca à mesquita e encontrassem uma prova que fosse, poderíamos estar todos condenados. Por conseguinte, ajudámo-los em silêncio – conclui. – É a ação de que mais me orgulho na minha vida.

– Obrigado – sussurra o Alain. – Pelo que fez. Por ter salvado a minha irmã.

Monsieur Haddam abana a cabeça.

– Não tem de me agradecer. Cumprimos um dever. Na nossa religião, ensinam-nos que «Aquele que salva uma vida, salva o mundo».

O Alain emite um som reprimido, estranho.

– No Talmude, lê-se que «Quem salva uma vida salva o mundo inteiro» – diz delicadamente.

Ele e Monsieur Haddam trocam olhares por um momento e sorriem.

– Não somos, portanto, muito diferentes – declara Monsieur Haddam. Ele olha para o Henri e para o Simon e, em seguida, volta a observar o Alain. – Nunca entendi a guerra entre as nossas religiões, nem a guerra contra os cristãos. Se aprendi alguma coisa no período que a Rose passou connosco é que todos falamos ao mesmo Deus. Não é a religião que divide o Homem. É o Bem e o Mal que ele pratica na Terra.

Todos compreendemos as suas palavras e entreolhamo-nos em silêncio.

– A sua irmã – continua Monsieur Haddam, voltando-se para o Alain – sofreu todos os dias por ter deixado a sua família. Achava que não tinha ter feito o suficiente para vos salvar. Mas, como certamente entenderá, ela fez o que tinha de fazer. Era imperioso salvar o seu bebé.

No silêncio que se seguiu, ouvir-se-ia cair um alfinete.

– O seu bebé? – pergunta por fim o Alain, uma oitava acima do que seria normal. De repente, sinto a garganta seca.

– Sim, naturalmente – diz Monsieur Haddam. Fita-nos com surpresa. – Foi por isso que a recebemos. Ela esperava um filho. Não sabiam?

O Alain olha-me fixamente.

– Fazias ideia?

– Claro que não – digo. – Não… não é possível. A minha mãe nasceu apenas em 1944. – Volto-me para Monsieur Haddam. – E não tinha irmãos. A minha avó não poderia estar grávida em 1942.

Ele faz uma pausa e levanta-se.

– Deem-me licença – diz.

Desaparece no interior do seu quarto, e o Alain e eu entreolhamo-nos.

– Como podia ela estar grávida? – indaga o Alain.

– Bom, ela e o Jacob estavam apaixonados… – arrisca o Henri, com a voz a fraquejar.

O Alain abana a cabeça.

– Não, nem pensar. Ela era muito religiosa – replica. – Nunca faria tal coisa. – Volta-se para mim e acrescenta: – Naquele tempo, tudo era muito diferente. As pessoas não tinham relações sexuais antes do casamento. E muito menos a Rose.

– Talvez Monsieur Haddam tenha confundido as memórias – sugiro.

Porém, quando ele sai do quarto, instantes depois, traz consigo uma fotografia e entrega-ma. Reconheço de imediato a minha avó; o seu rosto é idêntico ao meu quando eu tinha dezasseis ou dezassete anos, mas a sua cabeça está coberta por um lenço. Tem os braços à volta dos ombros de duas pessoas; de um lado, um jovem sorridente, de cabelo escuro, e, do outro, uma senhora de meia-idade.

– A minha mãe e eu – explica num tom baixo Monsieur Haddam. – E a sua avó. No dia em que partiu. Foi a última vez que a vi.

Aceno ligeiramente, mas sem emitir um som, pois não consigo afastar o olhar da barriga proeminente que vejo na fotografia. Não tenho dúvidas de que a minha avó estava grávida. Ela fita a máquina com olhos muito abertos que deixam transparecer uma extraordinária tristeza, mesmo numa fotografia a preto de branco e pouco nítida. O Alain recosta-se a meu lado, no sofá, e, tal como eu, examina atentamente a fotografia.

– Ela sabia que, se fosse enviada para um dos campos, seria morta logo que descobrissem a gravidez – diz lentamente Monsieur Haddam, pouco depois. – Sabia que tinha de se proteger para defender a criança. Foi esse o único motivo por que deixou que o Jacob a afastasse da família.

– Meu Deus – murmura o Alain.

– Mas o que aconteceu à criança? – pergunto.

Monsieur Haddam fita-me com ar sério.

– Tem a certeza de que não era a sua mãe?

– A minha mãe nasceu um ano e meio depois e era filha do meu avô, Ted, não do Jacob. – Volto-me para o Alain. – A criança deve ter morrido – sugiro discretamente. O simples facto de proferir estas palavras horroriza-me.

O Alain deixa tombar a cabeça.

– Há muitas coisas que desconhecemos. E se ela não acordar? – murmura. As suas palavras precipitam-me de um passado que conseguimos entender para um presente que não podemos controlar. Porém, ainda está nas nossas mãos chegar a tempo ao aeroporto. Consulto o relógio e levanto-me.

– Monsieur Haddam, peço desculpa, mas temos de ir – afirmo. – Não sei como lhe agradecer.

– Não tem de o fazer, menina – responde, sorrindo. – Saber que a Rose sobreviveu e acabou por ter uma vida feliz é agradecimento suficiente para mil anos.

Interrogo-me, nesse momento, se a minha avó foi feliz. Ter-se-ia alguma vez libertado da tristeza que certamente a invadiu quando sentiu ter perdido a sua família e o Jacob para sempre?

– Por favor – diz Monsieur Haddam –, transmita à sua avó que penso nela frequentemente. E que lhe agradeço por me ter ajudado a acreditar na busca do amor. Ela mudou a minha vida. Nunca a esquecerei.

– Muito obrigada, Monsieur Haddam – murmuro. – Assim farei.

Ele beija-me nas duas faces e, enquanto saímos, a fim de chamarmos um táxi para o aeroporto, dou por mim a refletir sobre se seria este o motivo da viagem que a Mamie me pediu para fazer. Interrogo-me se, algures na sua mente, ela desejava que eu ouvisse a história do seu primeiro amor e da criança perdida que ela tudo fez para proteger. Procuro, além disso, perceber se devo retirar algum ensinamento de tudo isto.

Talvez, no meu caso, seja demasiado tarde. O Alain e eu permanecemos em silêncio na viagem para o aeroporto, cada um perdido no seu mundo.

2 Esperança.