Capítulo 17

Depois de persuadirmos o funcionário da companhia aérea a aceitar o nosso check-in depois da hora, passamos o mais rapidamente possível pela segurança, corremos até à porta de embarque, e entramos no avião cinco minutos antes de serem fechadas as portas da cabina.

No táxi, tinha utilizado o telemóvel do Alain para ligar à Annie, mas ela não atendeu. O mesmo aconteceu com o Gavin e o Rob, para quem também telefonei. O lar da Mamie não tinha novas informações sobre o seu estado e, no hospital, a enfermeira que contactei assegurou-me que a minha avó se encontrava estável, embora lhe fosse impossível dizer quanto tempo assim permaneceria.

Enquanto deslizamos ao longo da pista e levantamos voo sobre Paris, vejo desaparecer por baixo de nós o Sena, aquela faixa que dividia ao meio a cidade, e imagino a Mamie escondida numa barcaça, aos dezassete anos, serpenteando lentamente o mesmo rio cor de topázio até alcançar a zona não ocupada. Foi assim que ela saiu de Paris? Interrogo-me se alguma vez o saberemos.

– O que achas que terá acontecido à criança? – pergunta o Alain num sussurro enquanto o avião ganha altitude. Estamos já acima das nuvens e o sol ilumina-nos sem obstáculos. É-me inevitável pensar se o céu divino não será um tanto parecido com este.

– Não sei – respondo, abanando a cabeça.

– Eu devia ter adivinhado que ela estava grávida – diz o Alain. – Isso explica o facto de nos ter deixado. Nunca compreendi a sua partida. Não era da natureza dela fugir e deixar-nos para trás. Em condições normais, teria permanecido e tentado proteger-nos, ainda que isso colocasse a sua própria vida em risco.

– Mas ela acreditava que era mais importante proteger a criança – murmuro.

– E era, de facto – assente o Alain. – Ela tinha razão. Ser pai ou mãe é isso mesmo, não é verdade? Penso que o mesmo se passou com os meus pais. Estavam realmente convencidos de que o cumprimento das regras nos protegeria a todos. Quem poderia saber que as suas melhores intenções nos conduziriam àquela situação?

Abano a cabeça, demasiado triste para falar. Não imagino o horror que a minha bisavó deverá ter sentido quando Danielle e David lhe foram arrancados. Teria conseguido ficar com a mais velha, Hélène, depois de os nazis separarem os homens das mulheres? Teria vivido tempo suficiente para experimentar a angústia de perceber que havia perdido todos os seus filhos? Teria o meu bisavô lamentado não ter dado ouvidos aos avisos da sua filha? O que teriam sentido os pais ao compreenderem, demasiado tarde, que cometeram um erro terrível, irreversível e responsável pela morte dos seus filhos?

Olho pela janela durante bastante tempo e depois volto a falar com o Alain.

– Talvez a minha avó não pudesse tratar da criança. Talvez o bebé tenha, de facto, nascido, e sido dado para adoção. – Não acredito verdadeiramente nestas palavras, mas sinto-me melhor quando as digo.

– Creio que seria impossível – diz o Alain, com ar sério. – Se sentisse a criança como sua e do Jacob, creio que a Rose nunca, em circunstância alguma, abdicaria dela. – Lança-me um olhar cauteloso e acrescenta: – Tens absoluta certeza de que a criança não podia ser a tua mãe?

Abano a cabeça.

– Quando a minha mãe morreu, há alguns anos, eu tive de inventariar os seus bens – digo. – Recordo-me de ler a sua certidão de nascimento. Dizia claramente 1944. Além disso, ela era muito parecida com o meu avô.

O Alain suspira.

– É provável, portanto, que o bebé tenha morrido.

Afasto o olhar. Não consigo imaginar nada mais triste.

– Mas pensar que ela engravidou tão pouco tempo após… – acrescento baixinho. Não consigo entender esta peça do puzzle.

– Não é tão invulgar como parece – diz o Alain em voz baixa. Ele suspira novamente e volta-se para a janela. – Depois da guerra, muitos sobreviventes da Shoah casaram-se e tentaram ter filhos de imediato, mesmo os que estavam subnutridos e não tinham dinheiro.

Olho para o Alain, surpreendida.

– Mas porque faziam isso?

– Porque desejavam criar vida quando tudo à sua volta era morte – diz com candura. – Queriam fazer novamente parte de uma família, depois de perderem tudo quanto alguma vez tinham amado. Quando Rose conheceu o teu avô, pensava certamente que todos nós, incluindo o Jacob, estávamos mortos; além disso, se tivesse perdido, de facto, o bebé, sentir-se-ia decerto profundamente sozinha. Talvez desejasse apenas criar uma família para voltar a ter um lugar no mundo.

Demoramos uma eternidade a recolher a bagagem, passar a alfândega e retirar o meu carro do parque de estacionamento, mas, por fim, lá conseguimos seguir viagem para Cape. Saímos de Boston pouco antes da hora de ponta e, enquanto acelero para sul pela Estrada 3, aventuro-me a ir trocando de faixa trinta quilómetros por hora acima do permitido.

Telefono à Annie durante o caminho e, desta vez, ela atende. A sua voz é inexpressiva, mas ela diz-me que está no hospital e que o estado de saúde da Mamie não sofreu qualquer alteração.

– O teu pai está contigo? – pergunto.

– Não – afirma, sem mais explicações.

Começo a sentir-me irritada.

– Onde é que ele está?

– Não sei – diz ela. – Talvez no escritório.

– Pediste-lhe que fosse contigo ao hospital?

A Annie hesita.

– Ele esteve aqui há pouco, mas teve de ir para ir tratar de qualquer coisa.

As suas palavras magoam-me violentamente. O que mais desejo é proteger a minha filha, e sinto que a última pessoa que eu deveria considerar uma ameaça é o seu pai.

– Lamento, querida – digo. – O teu pai está certamente muito ocupado. Ainda assim, deveria ter ficado contigo.

– Não faz mal – balbucia a Annie. – Está aqui o Gavin.

Sinto o coração apertado.

– Outra vez?

– Sim. Ele telefonou-me para saber se eu estava bem. E eu disse-lhe que o pai tinha saído. Não lhe pedi, mas ele veio.

– Oh… – digo.

– Queres falar com ele?

Quase digo que sim, mas lembro-me de que estaremos no hospital dentro de uma hora.

– Diz-lhe só que mando cumprimentos. E lhe agradeço. Nós chegaremos em breve.

A Annie permanece em silêncio por um momento.

– Nós? Agora também tens um namorado ou algo do género?

Não consigo controlar o riso.

– Não – respondo. Olho de relance para o Alain, que, pela janela, vê passar a cidade de Pembroke. – Mas tenho uma surpresa para ti.

Uma hora depois, estamos em Hyannis, transpondo as portas automáticas do Hospital de Cape Cod. A enfermeira do balcão de atendimento indica-nos o terceiro andar e, uma vez lá chegados, avisto a Annie sentada na sala de espera, de cabeça baixa. Ao seu lado, o Gavin folheia uma revista. Erguem a cabeça ao mesmo tempo.

– Mãe! – exclama a Annie, parecendo esquecer-se por instantes de que, ultimamente, se sente demasiado crescida para me saudar com entusiasmo. Salta da cadeira e abraça-me. O Gavin acena ligeiramente com a cabeça e sorri sem convicção. Consigo articular em surdina a palavra «obrigada» por cima da cabeça da Annie.

A Annie acaba por recuar e repara no Alain pela primeira vez. Ele está junto a mim, sem reação, olhando-a atentamente.

– Olá – diz a Annie, estendendo a mão. – Chamo-me Annie. Quem é o senhor?

O Alain aperta-lhe a mão suavemente e, em seguida, abre e fecha a boca sem dizer nada. Coloco a mão nas suas costas, sorrio para a minha filha e anuncio pausadamente:

– Annie, este senhor é irmão da Mamie. É teu tio-avô.

A Annie arregala os olhos na minha direção.

– Irmão da Mamie? – Volta a fitar o Alain. – É mesmo irmão da Mamie?

O Alain assente e, desta vez, encontra palavras.

– O teu rosto é-me mesmo muito familiar – diz.

A Annie olha para mim e depois novamente para o Alain.

– Eu sou, tipo, parecida com a Mamie quando ela tinha a minha idade?

O Alain abana a cabeça lentamente.

– Um pouco, talvez. Mas não é com ela que és mais parecida.

– Sou parecida com uma pessoa chamada Leona? – pergunta a Annie ansiosamente. – É que a Mamie está sempre a tratar-me por esse nome.

O Alain franze o sobrolho e abana a cabeça.

– Não creio que conheça alguém com esse nome.

A Annie assume uma expressão severa e, quando ergo os olhos, noto que o Gavin atravessou a sala e está apenas alguns passos atrás da minha filha. Por uma fração de segundo, sinto uma enorme vontade de o abraçar, mas, em vez disso, pestanejo e recuo ligeiramente.

– Gavin – digo –, este é o Alain. Irmão da minha avó. Alain, apresento-lhe o Gavin. – Faço uma pausa e, um pouco fora de tempo, acrescento: – Um amigo.

O Gavin não esconde a sua perplexidade. Estende a mão e cumprimenta o Alain.

– Não acredito que o senhor e a Hope se encontraram – diz o Gavin.

O Alain olha-me de relance e, em seguida, volta a olhar para o Gavin.

– Sei que ela teve a sua ajuda e o seu encorajamento, meu jovem amigo.

O Gavin encolhe os ombros e afasta o olhar.

– Não, senhor. Foi ela que o procurou. Eu apenas lhe forneci algumas indicações para a pesquisa sobre o Holocausto.

– Não desvalorize o seu esforço – afirma o Alain. – Ajudou a reunir a nossa família – Pestaneja algumas vezes e pergunta ao Gavin: – Já a podemos ver? A minha irmã?

O Gavin hesita.

– Oficialmente, o período de visitas já terminou. Mas eu conheço algumas das enfermeiras que aqui trabalham. Vou ver o que posso fazer.

Vejo o Gavin aproximar-se de uma bonita enfermeira loura que parece ter pouco mais de vinte anos. Ela ri-se e enrola o cabelo com os dedos enquanto fala com ele. Surpreende-me perceber que, ao vê-los juntos, me sinto um pouco ciumenta. Pestanejo algumas vezes e coloco a mão sobre o braço do Alain.

– Sente-se bem? – pergunto. – Deve estar exausto.

Ele faz um ligeiro aceno com a cabeça.

– Só preciso de ver a Rose.

A Annie dispara uma série de perguntas – «Quando viu a Mamie pela última vez?», «Porque pensava que ela tinha morrido?», «Como escapou aos nazis?», «O que aconteceu aos vossos pais?» – a que o Alain responde pacientemente. Sorrio ao ver a Annie aproximar-se dele e continuar a tagarelar com entusiasmo.

Minutos depois, o Gavin regressa e pousa a mão no meu braço, provocando-me um estranho e impetuoso sobressalto. Retiro de imediato o braço, como se tivesse sido queimada. O Gavin franze o sobrolho e pigarreia.

– Falei com a Krista. A enfermeira. Ela diz que nos leva discretamente até ao quarto. Mas apenas por alguns minutos. Aqui, são muito rigorosos com o período de visitas.

– Obrigada – digo. Curiosamente, não sou capaz de agradecer a Krista enquanto ela nos conduz por um corredor estreito, fazendo oscilar atrevidamente o seu rabo de cavalo e meneando exageradamente os seus quadris estreitos. Eu juraria que ela caminha daquela forma para impressionar o Gavin, mas ele não parece notar; tem a mão sobre o ombro do Alain e conduz delicadamente aquele homem mais velho até uma porta existente ao fundo do corredor.

– Cinco minutos – sussurra Krista quando nos detemos junto à última porta à direita. – Senão meto-me em sarilhos.

– Muito obrigado – diz o Gavin. – Fico a dever-te um favor.

– Talvez um dia me possas levar a jantar? – diz Krista. Termina a pergunta num tom infantil e, quando o fita com olhos expectantes, faz-me lembrar um desenho animado. Não fico à espera da resposta; digo a mim mesma que não é importante. Entro no quarto, seguindo a Annie e o Alain, e estremeço quando me deparo com aquela figura imóvel, deitada numa cama de hospital, como que submergida numa pequena pilha de lençóis.

A Mamie está frágil, pálida e magra e, ao meu lado, sinto o Alain encolher-se. Quero dizer-lhe que, da última vez que a vi, ela não tinha este aspeto. Na verdade, mal a reconheço sem as suas imagens de marca, o bâton cor de vinho e o pó para escurecer as pálpebras. Porém, estou tão atónita como ele. Aproximamo-nos os dois, e a Annie segue-nos lentamente.

– Ela parece mesmo muito doente, não parece? – murmura a Annie. Volto-me e envolvo-a com o meu braço, que ela não rejeita. Coloco a minha mão direita sobre a mão esquerda da Mamie, e sinto-a fria. Ela não se move.

– Ao que parece, encontraram-na curvada sobre a secretária depois de perceberem que ela não descera para jantar – diz o Gavin em voz baixa. Viro-me e vejo-o de pé, à entrada do quarto. – Telefonaram de imediato para o 911 – acrescenta.

Aceno que sim com a cabeça, demasiado comovida para falar. Ao meu lado, sinto a Annie tremer um pouco e, baixando os olhos, entrevejo as suas lágrimas cristalinas ligeiramente enegrecidas pela maquilhagem.

Aperto-a com mais firmeza e ela envolve-me num abraço. Vemos o Alain aproximar-se da cama e ajoelhar-se para que o seu rosto fique ao mesmo nível do da Mamie. Murmura-lhe algo e, em seguida, afaga-lhe docemente o rosto. Brilham-lhe lágrimas nos olhos.

– Pensei que nunca mais a veria – sussurra. – Passaram-se quase setenta anos.

– Ela vai ficar bem? – pergunta a Annie ao Alain, olhando-o como se a resposta dele decidisse tudo.

O Alain hesita e baixa a cabeça.

– Não sei, Annie. Mas não consigo acreditar que Deus nos tenha reunido para depois a chamar até si sem que nos possamos sequer despedir. Tenho de acreditar que há um propósito em tudo isto.

A Annie acena vigorosamente com a cabeça.

– Eu também.

Antes de podermos dizer mais alguma coisa, a enfermeira atrevida volta a aparecer à entrada.

– Não têm mais tempo – anuncia. – A minha supervisora está a chegar.

O Gavin e eu entreolhamo-nos.

– Está bem – diz o Gavin. – Obrigado, Krista. Vamos sair. – Faz-me sinal com a cabeça, e eu afasto lentamente a Annie da cama da Mamie. Olho para trás, sobre o ombro, quando me aproximo da porta e vejo o Alain novamente com a cabeça inclinada sobre a Mamie. Ele beija-a na testa e, quando se vira para nós, mostra as lágrimas que lhe deslizam pelo rosto.

– Peço desculpa – diz. – É difícil.

– Eu sei – respondo. Seguro-lhe a mão e, em conjunto saímos do quarto, deixando para trás a Mamie, na escuridão.

O Gavin e eu separamo-nos à saída do hospital. Ele tem de começar a trabalhar às sete da manhã do dia seguinte e eu tenho de abrir a confeitaria. A vida não pode parar. A Annie leva as minhas chaves para aguardar no carro com o Alain.

– Não sei como te agradecer – digo a Gavin, baixando os olhos.

– Não fiz nada – replica. Ergo os olhos e vejo-o encolher os ombros e sorrir. – Fico muito satisfeito por teres encontrado o Alain.

– Encontrei-o graças a ti – digo quase num murmúrio. – E a Annie ficou bem na minha ausência graças a ti.

– Não – insiste ele. – Fiz o que qualquer pessoa teria feito. – Faz uma pausa e acrescenta: – Talvez esteja a meter-me onde não sou chamado, mas aquele teu ex-marido é uma personagem.

Engulo em seco.

– Porque dizes isso?

Ele abana a cabeça.

– Não parecia minimamente preocupado com a Annie, sabes? E ela ficou muito abalada com o que aconteceu à tua avó. Precisava mesmo de ter alguém ao seu lado.

– E tu estiveste lá para a ajudar – digo. – Nem sei o que te dizer.

– Bom, amanhã tenho de reparar o alpendre do Joe Sullivan. E se me arranjasses uma chávena de café antes disso? – pergunta. – Ficamos quites.

Solto uma risada.

– Sim, claro, uma chávena de café é mesmo igual a tomar conta da minha filha e ajudar a reunir a minha família.

O Gavin fita-me demoradamente, de forma intensa, e o meu coração agita-se.

– Fiz tudo isto porque te queria ajudar – diz.

– Porquê? – pergunto, apercebendo-me, enquanto pronunciava a palavra, de que ela ia soar deselegante e ingrata.

Ele continua a olhar para mim e encolhe os ombros.

– Não te desvalorizes, Hope – diz, antes de se afastar. Vejo-o entrar no seu velhinho Wrangler e acenar à Annie ao sair do parque de estacionamento.

– Mãe, temos de encontrar o Jacob Levy – anuncia a Annie na manhã seguinte, quando aparece com o Alain, de braço dado, na confeitaria. Receando que ele estivesse a fazer demasiados esforços, eu sugerira que o Alain dormisse em nossa casa. Ele e a Annie tornaram-se inseparáveis desde que se conheceram no hospital, na noite anterior, pelo que eu deveria ter suspeitado que ela o traria consigo. – O Alain contou-me tudo a respeito dele – acrescenta, orgulhosa.

– Annie, querida – digo, olhando para o Alain, que arregaça as mangas e observa a cozinha –, não sabemos sequer se o Jacob ainda está vivo.

– E se ele estiver vivo, mãe? – pergunta, com algum desespero na voz. – E se estiver algures por aí e tiver procurado a Mamie durante todos estes anos? E se pudesse vir cá e, quem sabe, fazê-la acordar?

– Querida, isso é pouco provável.

A Annie lança-me um olhar carrancudo.

– Bolas, mãe! Não acreditas no amor?

– Acredito no chocolate – digo, suspirando e acenando com a cabeça para os pains au chocolat que é preciso meter no forno – e acredito que, se não começarmos a acelerar o ritmo, não conseguiremos abrir às seis.

– Tanto faz – resmunga a Annie. Utilizando duas pegas, introduz os croissants de chocolate no forno. Ajusta o temporizador e revira os olhos para o Alain. – Vê? Eu disse-lhe que ela é terrível de manhã.

O Alain ri-se entre dentes.

– Não creio que a tua mãe esteja a ser indelicada, querida – diz ele. – Penso que está a tentar ser realista. E talvez também a mudar de assunto.

– Porque é que estás a mudar de assunto, mãe? – pergunta a Annie, colocando as mãos na anca.

– Porque não quero que cries demasiadas expectativas – digo-lhe. – É muito provável que Jacob Levy nem sequer esteja vivo. E, mesmo que esteja, não é garantido que o consigamos encontrar.

Também não é garantido que ele tenha esperado pacientemente pela minha avó durante todos estes anos. Não quero dizer à Annie que, mesmo que milagrosamente o consigamos localizar, ele deve estar casado pela quarta vez ou algo do género. É muito provável que tenha esquecido a Mamie há setenta anos. Os homens são assim. Além disso, ao que parece, a minha avó não demorou muito a esquecê-lo.

O Alain observa-me com atenção, e eu desvio o olhar, pois tenho a desconfortável sensação de que ele sabe exatamente o que estou a pensar.

– Posso ajudar-te em alguma coisa, Hope? – pergunta após uma pausa. – Em criança, trabalhei na confeitaria dos meus avós.

– A Annie pode mostrar-lhe como preparar a massa para os muffins de mirtilo – digo, sorrindo. – Mas não quero que se sinta obrigado a ajudar. Consigo trabalhar perfeitamente sozinha.

– Não disse que não o conseguias – responde o Alain. Arqueio a sobrancelha, fitando-o, mas ele já se virou para a Annie o ajudar a apertar um avental.

– Então, tipo, se a Mamie estava tão apaixonada pelo Jacob, porque é que se casou com o meu bisavô? – pergunta a Annie ao Alain logo que ele se vira novamente. Ele pega num saco de açúcar e na caixa de mirtilos frescos que a Annie retirou do frigorífico. – Não o podia amar também, pois não? – acrescenta a Annie. – Não, uma vez que o Jacob era o seu verdadeiro amor.

Reviro os olhos mas, na verdade, preferia continuar a acreditar, como a Annie, no conceito de um só verdadeiro amor. O Alain parece ponderar a questão enquanto retira do armário uma tigela grande e uma colher de pau e começa a misturar o açúcar com a farinha. Vejo-o introduzir as quantidades exatas de sal e fermento. Annie passa-lhe quatro ovos e ele mete mãos à obra, partindo-os e adicionando-os à mistura.

– Há várias formas de amar neste mundo, Annie – acaba por dizer. Lança-me um olhar e dirige-se novamente à minha filha. – Não tenho dúvidas de que a tua bisavó também amava o teu bisavô.

– Como assim? – pergunta ela, fitando-o. – Se a Mamie estava apaixonada pelo Jacob, como poderia também, tipo, estar apaixonada pelo meu bisavô?

O Alain encolhe os ombros e verte um pouco de leite e sour cream na tigela. Mistura tudo vigorosamente com a colher de pau e, a seguir, a Annie ajuda-o a acrescentar os mirtilos.

– Alguns tipos de amor são mais fortes do que outros – responde, por fim, o Alain. – Isso não significa que não sejam todos reais. Nalguns casos, tentamos adaptar-nos à outra pessoa mas nunca o conseguimos totalmente. – Ele volta-se para mim e eu desvio o olhar. – Há também o amor entre pessoas boas que se admiram e respeitam mutuamente e acabam por se amar com o tempo – conclui.

– Acha que era esse o amor que a Mamie e o meu bisavô tinham? – pergunta a Annie.

O Alain começa cuidadosamente a alinhar as formas dos muffins.

– Talvez – diz. – Não sei. Há também, Annie, o amor que todos podemos sentir mas poucos tem a sabedoria de ver ou a coragem de agarrar. Esse é o tipo de amor que pode mudar uma vida.

– Era assim que o Jacob e a Mamie se amavam? – pergunta a Annie.

– Acredito que sim – diz o Alain.

– Mas o que significa ter sabedoria para compreender um amor? – insiste a Annie.

O Alain observa-me pelo canto do olho, e eu finjo estar ocupada a encher um tabuleiro de miniaturas de tartes das estrelas. Os meus dedos tremem ligeiramente enquanto dou a forma de estrela às crostas.

– Significa que o amor está em toda a parte – diz o Alain. – Porém, quanto mais velhos nos tornamos, mais confusos ficamos. Quanto mais desgostos sofremos, mais difícil é vermos o amor à nossa frente ou abrirmos o coração para o receber e acreditar verdadeiramente nele. E quem não consegue aceitar o amor, ou não é capaz de acreditar nele, nunca o pode sentir verdadeiramente.

A Annie parece confusa.

– Está a dizer, então, que a Mamie e o Jacob se apaixonaram por serem jovens?

– Não, acredito que a tua bisavó e o Jacob se apaixonaram porque foram feitos um para o outro – responde o Alain. – E porque não fugiram do amor. Não tiveram medo dele. Não deixaram que os seus receios interferissem nos seus sentimentos. Neste mundo, muitas pessoas nunca se apaixonam com tal intensidade porque, sem o saberem, já têm o coração fechado.

Coloco um tabuleiro de tartes das estrelas no forno mais pequeno, do lado esquerdo, e estremeço quando, por descuido, bato com a mão na porta do forno. Praguejo entre dentes e ajusto o temporizador.

– Mãe? – pergunta a Annie. – Amavas assim o pai?

– Claro que amava – apresso-me a responder, sem me voltar para ela. Não lhe quero dizer que, se não tivesse ficado grávida dela, eu nunca me teria casado com o pai. Não foi o amor por ele que me levou a constituir família; foi o amor pela vida que crescia dentro de mim.

Interrogo-me sobre o que a Mamie terá pensado quando conheceu o meu avô. Estava convencida, ao que parece, de que tinha perdido o Jacob e, em determinado momento, podia perder a criança que tinha dentro de si. Sentia certamente um enorme vazio na sua vida. Teria sido a solidão a conduzi-la aos braços do meu avô? Como conseguiu passar as noites ao seu lado, sabendo que já tivera – e perdera – o amor da sua vida?

– Então porque te divorciaste? – inquire a Annie. – Se amavas assim o pai?

– Por vezes, as coisas mudam – respondo.

– Não foi o que aconteceu com a Mamie e o Jacob – diz a Annie, confiante. – Aposto que sempre se amaram. Aposto que ainda se amam.

Neste momento, sinto uma profunda tristeza pelo meu avô, um homem amável e caloroso, inteiramente dedicado à sua família. Pergunto-me se ele alguma vez compreendeu que a sua mulher tinha, muito provavelmente, entregado o seu coração muito antes de o conhecer.

Ergo os olhos e noto que o Alain me observa, pensativo.

– Nunca é demasiado tarde para se encontrar o verdadeiro amor – diz-me diretamente. – Apenas é preciso manter o coração aberto.

– Sim, está bem – gracejo –, mas alguns de nós não têm essa sorte.

O Alain acena lentamente com a cabeça.

– Contudo, por vezes, temos essa sorte mas temos demasiado medo de a ver.

Reviro os olhos.

– Sim, claro, há por aí uma data de homens decididos a fazer-me a corte.

A Annie olha-me e, em seguida, dirige-se ao Alain.

– Ela tem razão. Ninguém a convida para sair. Exceto o Matt Hines, mas esse é, tipo, esquisito.

Sentindo-me corar, aclaro a garganta.

– Pronto, Annie – digo bruscamente. – Vamos ao trabalho. Preciso que prepares o Strudel, está bem?

– Tanto faz – resmunga ela.

Esta manhã, a abertura corre melhor do que eu esperava; com a ajuda do Alain, estamos prontos a receber os clientes às seis horas. O Gavin chega por volta das seis e meia, mas a agitação da confeitaria impede-me de lhe dedicar muita atenção enquanto lhe entrego o café, lhe agradeço novamente a ajuda e lhe desejo um bom dia de trabalho em casa do Joe Sullivan.

O Alain fica comigo quando a Annie parte para a escola e, depois de terminar o horário mais movimentado da manhã e de eu ter respondido secamente a perguntas de uma dezena de clientes sobre o meu desaparecimento nos últimos três dias, ficamos a sós na confeitaria.

– Uf! – atira o Alain. – Tens aqui um belo negócio, minha querida.

Encolho os ombros.

– Podia ser melhor.

– Talvez – concede o Alain. – Mas penso que deves estar grata pelo que realmente tens.

O que realmente tenho é uma dívida a crescer e uma hipoteca que, em breve, serei obrigada a pagar, deixando-me sem negócio. Não conto, todavia, essa parte da história; não há motivo para sobrecarregar o Alain com os meus problemas. Afinal, imagino que sejam bastante triviais quando comparados com os tormentos que o afligiram ao longo da vida. Isso faz-me sentir terrivelmente insensata por me deixar abater tão facilmente por pequenas coisas.

O dia passa muito rapidamente, e a Annie regressa da escola com uma pilha de papéis na mão.

– Quando vamos visitar a Mamie? – pergunta, saudando o Alain com um abraço.

– Quando fecharmos a confeitaria – digo-lhe. – E se começasses a lavar a louça na cozinha? Talvez hoje consigamos sair um pouco mais cedo.

A Annie franze o sobrolho.

– Podes lavar tu a louça? Tenho alguns telefonemas para fazer.

Paro de retirar os pedaços de baklava do expositor e brindo-a com um olhar severo.

– Telefonemas?

A Annie desenrola o maço de papéis que segurava e revira os olhos.

– Para o Jacob Levy. Obviamente…

– Encontraste o Jacob Levy? – pergunto, arregalando os olhos.

– Sim – diz a Annie, baixando a cabeça. – Pronto, a verdade é que encontrei muitos homens chamados Jacob Levy. E, tipo, nem contei os que apareciam na lista telefónica como J. Levy. Mas vou ligar a todos até encontrarmos o homem certo.

– Annie, querida… – começo, suspirando.

– Chega, mãe! – responde ela asperamente. – Não sejas pessimista. És sempre pessimista! Eu vou encontrá-lo. E tu não me podes impedir.

Abro e fecho a boca, impotente. Espero que ela tenha razão, mas parece ter consigo centenas de números. Não admira; estou certa de que Jacob Levy é um nome muito comum.

– Então? Posso utilizar o telefone lá atrás?

Faço uma pausa e aceno que sim.

– Sim, desde que sejam apenas números dos Estados Unidos.

A Annie ri-se com malícia e saltita até à cozinha. O Alain sorri e levanta-se para a seguir.

– Tenho saudades de ser jovem e de ter esperança – diz ele. – Tu não?

Ele segue a minha filha até à cozinha, deixando-me só, de pé, sentindo-me como o Ebenezer Scrooge. Quando deixei eu de ser jovem e de ter esperança? Não era minha intenção ser desmancha-prazeres; eu queria simplesmente ajudá-la a moderar as suas expectativas. Sei, por experiência própria, que esperar coisas boas acaba por nos magoar.

Suspiro e regresso à tarefa de colocar os produtos em caixas herméticas para ficarem no frio durante a noite. A baklava que confecionei ao fim da manhã durará mais alguns dias, os muffins e os biscoitos ficarão no frio e, em princípio, conseguirei recuperar pelo menos um dos Strudels amanhã de manhã. Os nossos donuts caseiros só se mantêm frescos durante um dia, e é por esse motivo que preparo geralmente apenas uma variedade por dia; os donuts de açúcar com canela que fiz hoje quase esgotaram, e os três que ainda restam vão provavelmente acabar no cesto de recolha diária destinado ao abrigo para mulheres se não entrarem mais clientes nos próximos minutos.

Ouço a Annie, nas traseiras da confeitaria, tagarelar ao telefone, provavelmente perguntando a cada interlocutor se conhece um tal Jacob Levy saído de França após a Segunda Guerra Mundial. Entre chamadas, apercebo-me de que o Alain lhe murmura alguma coisa e pergunto-me o que será. Estará a contar-lhe histórias sobre o Jacob para a manter inspirada? Ou a ser responsável e a recordar-lhe que pode tratar-se de uma missão impossível e que ela não deve alimentar expectativas?

Uma vez esvaziados os expositores, começo a guardar os bolos no frio. Lavo diligentemente os tabuleiros e as formas destinadas a muffins e miniaturas de tartes, enquanto Annie aumenta o tom de voz para se fazer ouvir sobre o som da água da torneira.

– Olá, chamo-me Annie Smith – ouço-a gritar para o telefone. – Procuro um senhor chamado Jacob Levy que terá neste momento, tipo, oitenta e sete anos. É francês. Talvez conheça um Jacob Levy com essas características?… Ah, bom. De qualquer modo, obrigada. Sim, adeus.

Depois de desligar, o Alain murmura-lhe algumas palavras. Ela solta um risinho, pega no telefone e repete exatamente as mesmas palavras na chamada seguinte.

Estou a preparar-me para fechar a confeitaria e dirigir-me ao hospital, depois de servir uma cliente de última hora, enquanto a Annie efetua algumas chamadas.

– Estás pronta? – pergunto, enxugando as mãos numa toalha e retirando as minhas chaves do cabide junto à porta da cozinha.

– Posso fazer mais um telefonema, mãe? – pede a Annie.

Consulto o relógio e acedo.

– Mais uma. Mas depois precisamos de chegar ao hospital ainda durante o período de visitas. Está bem?

Encosto-me ao balcão e ouço a Annie repetir mais uma vez a sua cantilena. O seu rosto revela alguma angústia quando desliga o telefone.

– Mais um beco sem saída – murmura.

– Annie, ainda estás na terceira página – recorda o Alain. – Temos muitos Jacob Levy para contactar amanhã. E depois todos os J. Levy da tua lista.

– Talvez… – murmura a Annie. Suspira e desce do balcão, deixando a lista junto ao telefone.

– Annie, não te preocupes – digo, tentando deixar-me contagiar pelo seu otimismo. – Talvez o encontres.

A expressão severa com que me olha revela que começa a perder a esperança.

– Tanto faz – diz. – Vamos ver a Mamie.

O Alain e eu entreolhamo-nos, preocupados, e seguimo-la até à porta.