Capítulo 20

Até quarta-feira à noite, a Annie telefona para mais de uma centena de números da sua lista de Levys, mas continua sem qualquer pista sobre o Jacob Levy da Mamie. Sinto cada vez mais que procuramos um fantasma. Assinalo uma dúzia de nomes na lista da Annie, todos com morada na Costa Oeste, e telefono-lhes depois de ela se deitar. O desfecho é, todavia, o mesmo.

Todas as pessoas que contacto afirmam nunca ter ouvido falar de um Jacob Levy que tenha saído de França nos anos 40 ou 50. Procuro até na Internet os registos dos passageiros chegados a Ellis Island, mas novamente sem sucesso.

Na manhã seguinte, a Annie entra na confeitaria alguns minutos depois das seis horas, com uma expressão solene, enquanto eu misturo arandos secos, pepitas de chocolate branco e pedaços de macadâmia numa massa açucarada para biscoitos.

– Temos de fazer algo mais – anuncia, atirando a mochila ao chão. O impacto é tal que me pergunto por instantes se não lhe fará mal às costas transportar todos os dias tantos livros.

– A propósito do Jacob Levy? – arrisco. Antes de a deixar responder, acrescento: – Importas-te de começar a colocar os bolos no expositor? Estou um pouco atrasada.

Ela aquiesce e aproxima-se do balcão para lavar as mãos.

– Sim, a propósito do Jacob Levy – diz. Sacode a água das mãos, seca-as com uma toalha adornada com um queque azul, pendurada junto ao lava-louça, e vira-se para trás. – Temos de encontrar um método melhor para o procurar.

Solto um suspiro.

– Annie, bem sabes que podemos nunca o encontrar.

Ela revira os olhos.

– És sempre tão pessimista.

– Estou apenas a ser realista. – Vejo-a começar a retirar cuidadosamente as luas em quarto crescente da embalagem hermética. Desembrulha cada uma delas do papel encerado e coloca-as num tabuleiro destinado ao expositor.

– Penso que, para o encontrarmos, temos de investigar mais a fundo.

Arqueio a sobrancelha.

– Investigar? – pergunto cautelosamente.

Ela confirma, sem se aperceber do meu ceticismo.

– Sim. Os telefonemas não estão a resultar. Temos de tentar, tipo, procurar documentos ou assim. Mas não bastam os documentos do site da Ellis Island, porque havia muitas formas de entrar no país.

– Quais documentos?

A Annie lança-me um olhar reprovador.

Eu não sei. Tu é que és a adulta. Não posso fazer tudo. – Munida do tabuleiro de luas, dirige-se à parte da frente da confeitaria, regressando instantes depois para dispor pedaços de baklava sobre pequenas folhas de papel encerado. Eu observo-a por momentos.

– Só não quero que acabes desiludida – digo à Annie depois de ela regressar à cozinha.

Ela olha-me com um ar furioso.

– Isso é apenas uma desculpa para evitares as coisas – diz. – Não podes abdicar de uma coisa só porque podes vir a sofrer. – Consulta o relógio. – São seis horas. Vou abrir a porta principal.

Aceno que sim, e observo-a novamente enquanto abandona a cozinha. Terá ela razão? E, em caso afirmativo, como consegue saber muito mais do que eu sobre a vida?

Ouço-a falar com alguém, pouco depois, e saio da cozinha para dar início a mais um longo dia de sorrisos para os clientes, fingindo não haver nada mais estimulante no mundo do que embrulhar-lhes bolos.

É com surpresa que encontro o Gavin ao balcão, olhando para os produtos que já se encontram no expositor. Está vestido de maneira mais formal, com umas calças esverdeadas e uma camisa azul-clara com botões no colarinho. A Annie está já ocupada a colocar baklava numa caixa para ele levar.

– Olá! – digo. – Hoje aperaltaste-te. – No preciso momento em que pronuncio estas palavras, sinto-me ridícula. Contudo, ele limita-se a sorrir e a dizer:

– Tirei um dia de folga; vou ao lar da Costa Norte. Vim só buscar alguns bolos para levar aos idosos. Gostam mais de mim quando apareço com comida.

Solto uma risada.

– Aposto que gostam de ti de qualquer maneira.

A Annie suspira lentamente, como que a recordar-nos que ainda ali está. Olhamo-la timidamente, e ela entrega ao Gavin a caixa da confeitaria, que, enquanto falávamos, atou habilmente com uma fita branca.

– Annie – diz o Gavin, transferindo para ela a sua atenção. – Como corre a procura do Jacob Levy?

– Nada bem – murmura a Annie. – Ninguém o conhece.

– Tens telefonado para as pessoas da tua lista?

– Tipo, centenas de pessoas – diz Annie.

– Hum… – diz o Gavin. – Não haverá outras formas de o procurar?

A Annie anima-se.

– Quais, por exemplo?

O Gavin encolhe os ombros.

– Não sei. Sabes em que data nasceu? Talvez haja uma forma de o procurar na Internet através da data de nascimento.

A Annie mostra-se agora empolgada.

– Sim, talvez. Boa ideia. – Fico à espera que ela lhe agradeça mas, em vez disso, ouço-a perguntar bruscamente: – Então o Gavin é, tipo, judeu?

– Annie! – exclamo. – Não sejas indelicada.

– Não – diz ela. – Estou só a perguntar.

Olho com receio para o Gavin, mas ele pisca-me o olho, o que me faz corar ligeiramente.

– Sim, Annie, sou judeu. Porque perguntas?

– Na verdade, não tenho amigos judeus – explica ela. – E agora que sei que sou, tipo, judia, estava curiosa sobre, sabe, o judismo.

– Diz-se judaísmo, não judismo – digo-lhe. – Além disso, tu não és judia, Annie. És católica.

– Eu sei – admite. – Mas posso ser as duas coisas. A Mamie é as duas coisas. – Vira-se novamente para o Gavin. – O senhor vai, tipo, à igreja judaica todas as semanas?

O Gavin sorri.

– Nós dizemos templo. E não vou todas as semanas, embora provavelmente o devesse fazer. Muitas vezes, às sextas-feiras, estou a trabalhar ou demasiado ocupado com outras coisas. Não me fica lá muito bem, pois não?

A Annie encolhe os ombros.

– Não sei. Nós, tipo, nunca vamos à igreja nem algo parecido.

– Bom, eu tenciono ir ao templo amanhã – continua ele. – Teria todo o gosto em levar-te comigo, Annie, se tiveres curiosidade. E se a tua mãe te autorizar.

– Posso ir, mãe? – indaga a Annie, entusiasmada.

Hesito e olho de relance para o Gavin.

– Tens a certeza? – pergunto-lhe.

– Absoluta – diz ele. – Vou sempre sozinho. Gostava muito de ter companhia. Na verdade, eu frequento uma sinagoga em Hyannis. Se amanhã fores visitar a tua avó, posso ir buscar a Annie ao hospital depois do período de visitas.

A Annie abre um sorriso, e eu encolho os ombros.

– Por mim, tudo bem – digo. – Desde que não seja mesmo um incómodo.

– De todo – replica o Gavin. – Passarei pelo hospital amanhã ao fim da tarde. Combinado?

– Porreiro – diz a Annie. – Obrigada. Vai ser o máximo ter, tipo, duas religiões ao mesmo tempo.

Fito-a, intrigada, durante algum tempo.

– O que é que disseste?

Ela parece embaraçada.

– É só, tipo, outro lado meu, percebes? – Como não respondo, a Annie faz uma pausa e revira os olhos. – Credo, mãe, sei que sou católica. Não fiques assim.

– Não – digo, abanando a cabeça. – Não é nisso que estou a pensar. Acabaste de me dar uma ideia para tentar encontrar o Jacob.

– Qual? – pergunta a Annie. Ela e o Gavin observam-me com curiosidade.

– Organizações interconfessionais – digo lentamente. – Se o Jacob confiou num amigo cristão para levar o amor da sua vida para uma mesquita durante a guerra, é seguramente uma pessoa que respeita as outras religiões, não acham?

O Gavin aquiesce, mas a Annie parece confusa.

– E depois? – pergunta.

– E se ele tiver imigrado para os Estados Unidos e dado seguimento a essa tradição? – sugiro. – E se ele fizer parte de uma qualquer organização interconfessional?

– Como assim? – indaga a Annie.

O Gavin responde por mim.

– Penso que a tua mãe está a tentar explicar que o Jacob pode ter aderido a uma daquelas organizações em que as pessoas trabalham em conjunto para promover a compreensão entre as religiões – diz ele. – Como as pessoas de diferentes religiões trabalharam juntas em Paris para ajudar a salvar a tua bisavó.

A Annie mostra-se pouco convencida.

– Não sei – diz. – Parece-me um pouco idiota. Mas acho que vale a pena tentar.

– Vou telefonar hoje para algumas organizações interconfessionais – digo à Annie.

– E eu vou tentar entrar em contacto com umas quantas sinagogas – afirma o Gavin. – Procurem descobrir a data de nascimento do Jacob, está bem?

A Annie e eu assentimos. O Gavin agradece educadamente os bolos a Annie, sorri para mim e prepara-se para sair.

– Liguem-me se descobrirem alguma coisa, está bem? – diz o Gavin a caminho da porta. – Até amanhã!

– Adeus! – grita a Annie animadamente, acenando-lhe com a mão.

– Adeus – repito. – Boa viagem – acrescento. Ele sorri mais uma vez para mim, vira-se e abandona a confeitaria.

– Ele é tão simpático – diz a Annie depois de ele sair.

– Sim – confirmo. Aclaro a garganta e volto à preparação de mais um dia de trabalho. – É mesmo.

A Annie vai passar a noite em casa do Rob e, tendo eu poucos clientes, envio-lhe uma mensagem informando-a de que não tem de vir à confeitaria depois das aulas; hoje consigo arrumar tudo sozinha. Ela telefona-me de casa do pai, depois de sair do autocarro, dizendo-me, empolgada, que o pai lhe deixou um bilhete em que promete que os dois passarão a noite sozinhos e a convida para um jantar especial num restaurante.

– Ótimo, querida – digo. Fico contente; parece que o Rob se está a esforçar para a fazer sentir-se importante. Talvez as minhas palavras de há dias tenham, afinal, significado alguma coisa.

– Quando fores ao hospital, podes dizer-lhe olá por mim e prometer-lhe que a irei visitar amanhã? – pergunta a Annie. – Caso ela te consiga ouvir?

– Claro, querida – prometo.

Depois de fechar a confeitaria, vou buscar o Alain a casa, e conversamos durante todo o caminho até ao hospital. Vou percebendo como gosto de o ter por perto; ele ajusta-se perfeitamente à nossa vida. Em certos dias, ajuda-nos na confeitaria; noutros, permanece à cabeceira da Mamie; e, em dias como o de hoje, fica em casa e surpreende-me com pequenas ajudas domésticas. Há pouco tempo, deparei-me com os quadros que ainda tinha no sótão devidamente pendurados pela casa; hoje, encontrei a despensa e o frigorífico, que estavam praticamente vazios, totalmente reabastecidos.

– É o mínimo que posso fazer – disse o Alain quando o confrontei, incrédula. – Não custou nada. Fui de táxi ao supermercado.

No hospital, o Alain segura a minha mão quando estamos os dois sentados à cabeceira da Mamie. Ele murmura-lhe algumas palavras em francês e eu, como prometido, transmito a mensagem da Annie, mesmo duvidando que a Mamie me consiga ouvir por entre o nevoeiro do seu coma. Sei que o Alain e a Annie acreditam que ela ainda nos entende, mas eu não tenho tanta certeza. Opto, ainda assim, por não partilhar esta minha convicção.

Dou por mim, sem saber exatamente porquê, a pensar no Gavin quando o Alain sussurra ao ouvido da Mamie. Talvez isso aconteça apenas porque ele nos tem apoiado muito e eu me sinto mais só do que nunca.

Alain acaba por se recostar na cadeira, tendo terminado, ao que parece, a história que contava. A Mamie continua num sono profundo, com o peito magro a subir e a descer lentamente.

– Parece tão serena – diz o Alain. – Como se estivesse num lugar mais feliz.

Aceno que sim, pestanejando para conter as lágrimas que subitamente me surgem nos olhos. A sua expressão é, de facto, pacífica, mas isso apenas reforça a minha ideia de que ela já partiu e aumenta a minha comoção.

– Alain – digo, ao fim de alguns instantes –, suponho que não saiba a data de nascimento do Jacob.

O Alain sorri e abana a cabeça, levando-me a crer, por momentos, que sabe tanto como eu. Contudo, ele esclarece-me logo a seguir.

– Na verdade, sei. Rose e eu conhecêmo-lo na noite anterior ao seu décimo sexto aniversário.

Inclino-me para a frente, empolgada.

– Quando?

– Na véspera de Natal de 1940. – Alain fecha os olhos e sorri. – Rose e eu atravessávamos o Jardin du Luxembourg. Depois de visitarmos uma amiga dela no Quartier Latin, tínhamos de caminhar rapidamente para chegarmos a casa antes do recolher obrigatório; os alemães insistiam em que todos os habitantes de Paris estivessem em casa e fechassem as cortinas escuras.

»Contudo, Rose sempre adorou aquele jardim, por isso, quando nos encontrávamos no sixième arrondissement, sugeriu que fizéssemos um desvio. Dirigimo-nos, como sempre fazíamos, à sua estátua preferida de todo o parque, a Estátua da Liberdade.»

– A Estátua da Liberdade? – repito.

Ele abre um sorriso.

– O modelo original utilizado por Auguste Bartholdi, o conhecido artista. Existe uma outra em pleno rio Sena, não muito longe da Torre Eiffel. A vossa estátua, a do porto de Nova Iorque, foi oferecida pela França aos Estados Unidos, sabias?

– Sim, lembro-me de o ter aprendido na escola – digo. – Só não sabia que existiam estátuas semelhantes em França.

Alain confirma.

– A estátua do Jardin du Luxembourg era a preferida de Rose quando éramos mais pequenos, e, nesse fim de tarde, quando chegámos junto da estátua, começou a nevar. Os flocos eram muito pequenos e frágeis, como se estivéssemos num globo de neve. Estava uma noite muito silenciosa e tranquila, apesar de nos encontrarmos em guerra. Nesse momento, o mundo parecia mágico.

A sua voz desvanece-se e ele olha para a Mamie. Estende a mão para lhe tocar no rosto, causticado por muitos anos de vida longe dele.

– Só quando nos acercámos da estátua – prossegue ele, após uma longa pausa – percebemos que não estávamos sozinhos. Havia um rapaz de cabelo escuro e casaco preto, de pé, mais à frente. Ele virou-se para nós quando estávamos a apenas alguns metros, e Rose parou imediatamente, como se tivesse ficado sem respiração.

»No entanto, o rapaz não se aproximou e nós também não avançámos. Limitaram-se a olhar um para o outro durante largos minutos até eu puxar a mão de Rose e perguntar: “Porque parámos?”

Alain faz uma pequena pausa para se recompor. Olha de relance para a Mamie e volta a recostar-se na cadeira.

– A Rose inclinou-se e disse-me: «Parámos porque é muito importante que entendas que o local onde se ergue a verdadeira Estátua da Liberdade é um sítio onde as pessoas podem ser livres.» – diz Alain, com uma expressão sonhadora. – Não compreendi as suas palavras. Ela olhou-me nos olhos e declarou: «Nos Estados Unidos, a religião não define ninguém. Eles consideram-na apenas uma parte de cada um. E ninguém é julgado por isso. Um dia, Alain, vou mudar-me para lá e levar-te comigo.»

»Poucos dias depois, surgiriam as piores restrições impostas aos judeus. A Rose era muito culta, o que me leva a acreditar que ela já soubesse que existiam perseguições a judeus noutros locais. Ela antecipou os problemas em que nem os nossos pais acreditavam. Porém, aos sete anos, eu não percebia que importância tinha a religião.

»Antes de eu lhe poder fazer qualquer pergunta, o rapaz aproximou-se. Observara-nos desde a nossa chegada, e eu notei que Rose, quando se endireitou para conversar com ele, tinha o rosto muito vermelho. Perguntei-lhe: “Porque estás tão corada, Rose? Estás a ficar doente?”

Ele ri-se com esta recordação e abana a cabeça.

– Isto apenas a fez corar mais. Mas o rapaz estava igualmente corado. Fitou Rose durante bastante tempo e, em seguida, inclinou-se para me olhar nos olhos e disse: «A sua amiga tem razão, Monsieur. Nos Estados Unidos, as pessoas podem ser livres. Também irei para lá um dia.» Eu fiz-lhe uma careta e disse: «Ela não é minha amiga! É minha irmã!»

O Alain esboça um sorriso pálido e prossegue.

– Ambos deram umas boas risadas. Depois, começaram a conversar, e eu senti-me a mais. Nunca tinha visto a minha irmã assim; a forma como o olhava nos olhos sugeria que ela queria perder-se neles. Por fim, o rapaz voltou-se novamente para mim e disse: «Pequeno Monsieur, o meu nome é Jacob Levy. E o seu?» Eu disse-lhe que me chamava Alain Picard e que a minha irmã era Rose Picard, e ele fitou-a novamente e murmurou: «Penso que é o nome mais bonito que alguma vez ouvi.»

»A Rose e o Jacob conversaram durante muito tempo, até começar a escurecer. Eu não os ouvia com muita atenção porque a sua conversa me parecia aborrecida. Apetecia-me ir embora, mas eles discutiam política e liberdade, religião e América. Acabei por puxar novamente a mão de Rose e dizer: “Temos de ir. Está a escurecer e a Maman e o Papa vão ficar zangados!”

»Rose anuiu, parecendo acordar de um sonho. Disse a Jacob que tínhamos de ir. Começámos a afastar-nos, velozmente, para o lado oeste do parque, mas ele disse-nos em voz alta: “Amanhã é o meu aniversário, sabiam? Vou fazer dezasseis anos!” Rose virou-se e respondeu: “No dia de Natal?” Ele confirmou e ela fez uma pausa. Acabou por dizer: “Então vemo-nos amanhã, aqui, junto à estátua. Para comemorarmos.” Em seguida corremos, cientes de que a noite estava a cair rapidamente e estaríamos em sarilhos se não fôssemos para casa de imediato.

»Ela voltou sozinha ao parque, no dia seguinte, e regressou com os olhos cintilantes. A partir desse momento, tornaram-se inseparáveis. Foi amor à primeira vista.

Recosto-me na cadeira.

– É uma história maravilhosa – digo.

– Tudo o que envolveu a Rose e o Jacob foi maravilhoso – diz o Alain. – Até ao fim. Mas talvez a história ainda não tenha terminado.

Fito o vazio.

– Se ele ainda estiver por aí.

– Se ele estiver por aí – repete o Alain.

Suspiro e fecho os olhos.

– Foi, portanto, no dia de Natal – digo. – Nasceu no dia de Natal. No ano de 1924, presumo, já que iria completar dezasseis anos em 1940?

– Exatamente – concorda o Alain.

– Dia de Natal de 1924 – murmuro. – Antes de Hitler. Antes da guerra. Antes de tantas mortes sem sentido.

– Quem poderia ter adivinhado o que iria acontecer? – sussurra o Alain.

À noite, com a Annie em casa do pai, o Alain e eu tomamos chá na cozinha e, depois de ele se afastar lentamente para o quarto, sento-me à mesa durante bastante tempo, vendo correr o ponteiro dos segundos num movimento interminável. Ocorre-me que o tempo passa sem que ninguém o consiga parar. Este pensamento faz-me sentir impotente, insignificante. Penso no número aparentemente infinito de segundos passados desde que a minha avó perdeu o Jacob.

São quase onze horas quando pego no telefone para ligar ao Gavin e, mesmo sabendo que a hora é obscenamente tardia, invade-me uma sensação súbita e aflitiva de que, se não partilhar com ele agora, neste preciso segundo, a data de nascimento do Jacob poderei chegar demasiado tarde. Trata-se de uma ideia absurda, naturalmente. O tempo foi passando durante setenta anos e nada aconteceu. Porém, a imagem da Mamie a eclipsar-se, dia após dia, no hospital, não me deixa esquecer o avanço inexorável do ponteiro dos segundos.

O Gavin atende ao terceiro toque.

– Acordei-te? – pergunto.

– Não, acabei agora mesmo de ver um filme – diz o Gavin.

De repente, sinto-me um pouco ridícula.

– Oh! Se estiveres com alguém, posso telefonar noutra altura…

– Estou sozinho, no meu sofá – ri-se. – Só se o comando for alguém.

Experimento uma inesperada sensação de alívio. Pigarreio, mas ele volta a falar.

– Hope. Está tudo bem?

– Sim. – Faço uma pausa, mas logo me apresto a dizer: – Descobri a data de nascimento do Jacob Levy.

– Isso é ótimo! – diz o Gavin. – Como conseguiste?

Dou por mim a contar-lhe a versão resumida de tudo o que o Alain partilhou comigo.

– Que bela história – diz o Gavin quando termino. – Parece que foram mesmo feitos um para o outro.

– Sim – concordo.

Permanecemos alguns instantes em silêncio, nos quais eu volto a olhar para o relógio.

Tiquetaque, tiquetaque. O ponteiro dos segundos parece fazer troça de mim.

– O que se passa, Hope? – pergunta o Gavin.

– Nada – digo.

– Posso tentar adivinhar – diz o Gavin. – Mas podias simplesmente dizer-me.

Sorrio para o telefone. Ele está perfeitamente convencido de que me conhece. E a verdade é que tem razão.

– Acreditas nessas coisas? – pergunto.

– Que coisas?

– Essas coisas – murmuro. – O amor à primeira vista. Ou, digamos, as almas gémeas. Ou seja o que for que associamos sempre à minha avó e ao Jacob Levy.

O Gavin faz uma pausa, e naquele momento de silêncio, sinto-me uma idiota. Porque se lembraria alguém de fazer uma pergunta destas? Ele deve achar que me estou a insinuar. Abro a boca para retirar o que disse, mas ele fala primeiro.

– Sim – diz.

– Sim?

– Sim, acredito nesse tipo de amor. Tu não?

Fecho os olhos. Sinto uma dor súbita no coração porque me apercebo de que não penso o mesmo.

– Não – digo. – Não creio.

– Hum… – profere o Gavin.

– Alguma vez o sentiste por alguém?

Ele responde ao fim de alguns segundos.

– Sim.

Quero perguntar-lhe quem foi o objeto desse amor, mas a verdade é que não desejo ouvir a resposta. Sinto uma ligeira vertigem de ciúme, mas esqueço-a rapidamente.

– Bom, isso é ótimo – digo.

– Sim – diz o Gavin serenamente. – O que te leva a não acreditar?

Concluo que nunca me interroguei a esse respeito. Medito um pouco na pergunta.

– Talvez por já ter trinta e seis anos – digo – e nunca o ter sentido. Se esse amor existisse, não teria já surgido na minha vida?

As palavras ficam a pairar entre nós, e eu suspeito de que o Gavin procura uma resposta que não me ofenda.

– Não necessariamente – diz, cauteloso. – Parece-me é que o amor já te fez sofrer. E muito.

– Durante o meu divórcio? – pergunto. – É um episódio recente. E antes disso?

– Tu estiveste com o teu marido desde… os vinte e um, vinte e dois anos?

– Vinte e três – murmuro.

– Achas que ele foi o grande amor da tua vida?

– Não – digo. – Mas não contes à Annie.

O Gavin ri-se delicadamente.

– Nunca o faria, Hope.

– Bem sei.

Por momentos, volta a reinar o silêncio entre nós.

– Penso que deves ter passado mais de dez anos com um homem que não te amava como qualquer pessoa merece ser amada – diz o Gavin – e que talvez não amasses como qualquer pessoa deve amar. Habituaste-te a ceder.

– Talvez – digo em voz baixa.

– E acredito que, sempre que uma pessoa sofre um desgosto, resguarda ainda mais o coração, sabes? Como se criasse mais um escudo ou algo parecido. Fizeram-te sofrer muito, não é verdade?

Mantenho-me em silêncio durante algum tempo.

– Desculpa – diz o Gavin. – Foi uma pergunta demasiado pessoal?

– Não – respondo. – Creio que tens razão. Era como se nada do que eu fizesse fosse suficiente. E não apenas com o Rob. Também com a minha mãe. – Calo-me. Nunca partilhei isto com ninguém.

– Lamento – diz o Gavin.

– Faz parte do passado – murmuro. Subitamente, sinto-me pouco à vontade, incomodada com o facto de estar a contar tudo isto ao Gavin e de o deixar entrar na minha intimidade.

– Estou só a dizer que, quanto mais te protegeres, mais difícil será reconhecer alguém por quem te poderias realmente apaixonar – diz ele lentamente.

Assimilo por instantes as suas palavras e sinto-me estranhamente angustiada.

– Talvez – respondo. – Mas pode acontecer que, depois de muito sofrimento, eu tenha acordado para a realidade e deixado de sonhar com coisas que não existem.

– É possível – admite o Gavin, após alguns instantes em silêncio. – Mas também é possível que não tenhas razão. E que esse amor exista. Não concordas que fizeram sofrer muito a tua avó ao longo dos anos?

– Claro.

– E ao Jacob Levy, provavelmente?

– Sim, provavelmente – admito. Recordo tudo o que ambos perderam: as suas famílias, a vida que conheciam, a pessoa por quem estavam apaixonados. O que pode ser mais doloroso do que ver o mundo inteiro virar-nos as costas enquanto todas as pessoas que amamos são arrastadas para a morte? – Sim – confirmo.

– Bom, vamos ver se o conseguimos encontrar – diz o Gavin. – Ao Jacob. Poderemos perguntar-lhe. E perguntar à tua avó.

– Se ela acordar – digo.

Quando ela acordar – corrige o Gavin. – Tens de manter o otimismo.

Consulto o relógio. Como podemos manter o otimismo se o tempo continua a passar?

– Muito bem – digo, suspirando. – E perguntamos-lhes simplesmente se o amor existe? – Arrependo-me de utilizar um tom jocoso, mas a verdade é que as palavras dele não fazem sentido.

– Porque não? – responde o Gavin. – O pior que podem dizer é não.

– Pronto, tudo bem – concedo. Abano a cabeça, desejosa de terminar esta conversa inútil. – Achas então que o conseguiremos encontrar? Agora que conhecemos a data de nascimento?

– Penso que temos mais possibilidades – diz o Gavin. – Talvez ele ainda esteja por aí.

– Talvez – concordo. Ou talvez tenha morrido há muito tempo e nós estejamos a procurar em vão. – Olha, obrigada – digo, sem saber ao certo se lhe estou a agradecer a conversa que tivemos ou a ajuda na procura do Jacob.

– Não tens de quê, Hope. Amanhã vou telefonar para várias sinagogas. Talvez descubra alguma coisa. Vemo-nos amanhã ao fim da tarde, no hospital.

– Obrigada – digo novamente. Ele desliga e eu continuo a segurar o auscultador, interrogando-me sobre o que tinha acabado de acontecer. É possível que eu tenha simplesmente ficado mais velha e mais amarga e que este tipo, ainda antes dos trinta anos, saiba mais do que eu sobre a vida e o amor?

Adormeço desejando ardentemente, pela primeira vez desde que me recordo, que eu esteja apenas a dizer disparates e que todas as coisas que a experiência me ensinou não sejam, afinal, verdadeiras.