Capítulo 2
Horas depois, fecho a confeitaria mais cedo para tratar de alguns assuntos. Embora o sol ainda não se tenha posto quando chego a casa, às seis e um quarto, parece haver uma atmosfera sombria e depressiva no interior de uma casa onde quero muito sentir-me confortável.
Lá dentro, o silêncio é ensurdecedor. Até ao ano passado, quando o Rob me surpreendeu, pouco antes do Natal, com o anúncio de que queria o divórcio, eu ansiava por chegar a casa. Tinha orgulho na vida que construíramos juntos na nossa casa sólida, caiada e vitoriana, com vista para a baía de Cape Cod, situada a leste da praia. Tinha sido eu mesma a pintar o interior, a colocar azulejos novos na cozinha, a instalar portas de madeira maciça no andar de cima e na sala de estar e a plantar um jardim dominado por hortênsias azuis e camélias cor-de-rosa, viçosas e bonitas, que contrastavam com as ripas pintadas de branco sujo.
E é então que, depois de terminar a decoração, quando me preparava para desfrutar a minha casa de sonho, um dia o Rob pediu-me para eu me sentar e anunciou, em voz baixa, sem me olhar nos olhos, que também a relação estava terminada. Fartara-se do casamento, de mim. No espaço de três meses, ainda a recuperar da morte da minha mãe, de cancro da mama, e da decisão de internar a Mamie num lar especializado, vi-me obrigada a regressar à casa da minha mãe, que ainda não tinha conseguido vender. Alguns meses mais tarde, exausta e desanimada, assinaria todos os documentos do divórcio, ansiosa apenas por acabar com tudo aquilo.
A verdade é que me senti desalentada e, pela primeira vez, percebi uma coisa que sempre me intrigara ao longo da vida: a estratégia da minha mãe para conseguir manter sempre a frieza nas relações com os homens da sua vida. Nunca conheci o meu pai; ela nunca me disse o seu nome. Como ela, certo dia, me explicou frontalmente:
– Ele partiu. Há muito tempo. Nunca soube que tu existias. Fez a sua escolha.
Além disso, à medida que fui crescendo, ela teve sempre namorados. Estava permanentemente com alguém mas, na realidade, não os deixava aproximar-se em demasia. Assim, quando a abandonavam, ela limitava-se a encolher os ombros e a dizer:
– Estamos melhores sem ele, Hope. Sabes que é verdade.
Sempre pensei que ela era insensível, embora admita hoje que ansiava por esses breves períodos entre namorados, nos quais tinha a minha mãe só para mim durante algumas semanas. Agora, lamento não a ter entendido mais cedo, a tempo de falar com ela sobre este assunto. Percebo-te finalmente, mãe. Se não os deixarmos entrar, se nunca os amarmos verdadeiramente, eles não nos magoam quando partem. Porém, como acontece em tantas outras coisas na minha vida, percebi isto demasiado tarde.
Quando termino o duche, tirando todo o açúcar do cabelo e da pele, faltam alguns minutos para as sete. Sei que devo ligar para casa do Rob e pedir desculpa à Annie pela forma como nos separámos ao início do dia, mas não sou capaz de o fazer. Além disso, é provável que ela esteja a fazer alguma coisa divertida com ele e que a minha chamada acabe por arruinar a boa disposição. Independentemente do que sinto pelo Rob, tenho de reconhecer que, na maior parte do tempo, ele trata bem da Annie. Parece conseguir falar com ela como há muito eu não consigo. Odeio o facto de, ao vê-los dar risadas cúmplices, sentir primeiro inveja e só depois felicidade pela Annie. Parece que estão a criar uma nova família de que já não faço parte.
Depois de vestir uma camisola cinzenta canelada e umas calças de ganga pretas e justas, olho-me ao espelho enquanto escovo o meu cabelo castanho-escuro e ondulado, à altura dos ombros, que ainda não começaram, felizmente, a ficar grisalhos. Sei, todavia, que isso acontecerá em breve se a Annie mantiver este comportamento. Procuro no meu rosto as feições da Annie mas, como habitualmente, não as encontro. Estranhamente, ela não é, de todo, parecida com o Rob ou comigo, e isso motivou-o a fazer-me uma pergunta desagradável quando ela tinha três anos.
– Tens a certeza de que ela é minha filha, Hope?
As palavras magoaram-me profundamente.
– Claro – sussurrei, com lágrimas nos olhos. Ele nunca mais falou no assunto. À exceção da pele, que, no verão, conseguia o mesmo bronzeado uniforme e bonito do Rob, não havia nela nada do pai, um homem alto, de cabelo castanho e olhos azuis.
Examino os meus traços enquanto coloco uma camada de bâton neutro e um pouco de rímel nas minhas pestanas claras. Enquanto os olhos da Annie têm uma cor cinzenta irregular, como os da Mamie, os meus são verde-mar, com tonalidades invulgares e pequenos pontos dourados. Quando eu era mais jovem, a Mamie costumava dizer-me que os seus traços – à exceção dos olhos – tinham avançado uma geração. Enquanto a minha mãe, com cabelo castanho-escuro, liso, e olhos castanhos, fazia lembrar o meu avô, eu parecia uma cópia exata de algumas fotografias antigas que vi da Mamie. Os olhos dela, pensava eu, estavam sempre tristes nas fotografias antigas e, agora que os meus denunciam o peso da vida, estamos cada vez mais parecidas. Os meus lábios, com a sua curvatura acentuada – «parecidos com a harpa de um anjo», como dizia a Mamie – são iguais aos dela quando era jovem e, de certo modo, é um privilégio ter herdado a sua pele branca, apesar de, no último ano, eu ter desenvolvido uma linha vertical um pouco estranha entre as sobrancelhas que me faz parecer eternamente preocupada. Na verdade, por estes dias, estou mesmo eternamente preocupada.
Quando ouço a campainha da porta, fico agitada. Passo mais uma vez a escova pelo cabelo mas, depois de pensar melhor, volto a despenteá-lo com a mão. Não quero dar a ideia de que hoje me esforcei. Não quero que o Matt pense que isto vai ter a algum lado.
Volvidos alguns segundos, abro a porta da frente e, quando o Matt se inclina para me dar um beijo, viro-me ligeiramente para que os seus lábios toquem na minha face direita. Consigo sentir o cheiro intenso e sombrio do perfume no seu pescoço. Veste umas calças esverdeadas imaculadas e uma camisa azul-clara, com botões no colarinho e uma insígnia de aspeto sofisticado que não reconheço, e calça uns elegantes mocassins castanhos.
– Posso mudar de roupa – digo. De repente, sinto-me deselegante e sensaborona.
Ele observa-me de cima a baixo e encolhe os ombros.
– Essa camisola fica-te bem – diz. – Estás muito bem assim.
O Matt leva-me ao Fratanelli’s, um requintado restaurante italiano junto ao pântano. Tento ignorar o facto de o chefe de mesa examinar a minha roupa, de forma pouco subtil, antes de nos levar até uma mesa iluminada por velas, junto à janela.
– Isto é demasiado elegante, Matt – digo, quando ficamos sozinhos. Olho de relance pela janela e encontro a escuridão. Vejo também o nosso reflexo num copo. Parecemos um casal simpático e isso leva-me a afastar rapidamente o olhar.
– Sei que gostas deste restaurante – diz o Matt. – Lembras-te? Viemos aqui antes do baile de finalistas do liceu.
Rio-me e abano a cabeça.
– Já me tinha esquecido.
Na verdade, já me esqueci de muitas coisas. Tentei, durante muito tempo, deixar o passado para trás, mas é revelador que, quase vinte anos depois, esteja sentada na mesma sala de jantar com a mesma pessoa. A nossa história só pode desaparecer temporariamente. Afasto este pensamento e olho para o Matt.
– Disseste que querias falar sobre uma coisa.
Ele olha para a ementa.
– Primeiro, vamos pedir.
Escolhemos os nossos pratos em silêncio; o Matt opta pela lagosta e eu pelo esparguete à bolonhesa, o prato menos caro da ementa. Tenciono oferecer-me, mais tarde, para pagar a minha parte e, se o Matt recusar, não quero que ele pague uma fortuna. Não quero sentir que lhe devo seja o que for. Depois de pedirmos, o Matt respira fundo e observa-me. Está prestes a falar, mas eu impeço-o antes que ele possa dizer algo embaraçoso.
– Matt, sabes que tenho muita consideração por ti – começo.
– Hope… – Ele tenta interromper-me, mas eu ergo a mão para o deter.
– Deixa-me acabar – digo bruscamente, falando cada vez mais depressa. – Sei que temos muito em comum e, é claro, todo o nosso passado, que significa muito para mim, mas eu tentei dizer-te hoje que não me sinto preparada para sair com ninguém neste momento. Creio que só estarei preparada quando a Annie for para a faculdade, e isso ainda vai demorar muito tempo.
– Hope…
Ignoro-o, pois pretendo fazer o discurso completo.
– Matt, a culpa não é tua, juro. Penso é que, por agora, seria muito melhor sermos apenas amigos. Não sei o que vai acontecer mais tarde mas, neste momento, a Annie precisa de toda a minha atenção e…
– Hope, não estou aqui para falar sobre a nossa relação – interrompe o Matt. – Quero conversar contigo sobre a confeitaria e sobre o teu empréstimo. Deixas-me falar?
Olho-o fixamente enquanto o empregado coloca na mesa um cesto com pão e um pequeno prato com azeite. Serve-nos ainda vinho tinto – um cabernet caro que o Matt escolheu sem me consultar – e voltamos a ficar sozinhos.
– O que tem a minha confeitaria? – pergunto lentamente.
– Tenho más notícias – diz. Evita o meu olhar, molha um pedaço de pão no azeite e dá uma dentada.
– Muito bem… – digo, preparando-me para o ouvir. Sinto que começa a faltar o ar na sala.
– O teu empréstimo – diz, com a boca cheia. – O banco vai exigir o pagamento.
O meu coração dá um salto.
– O quê? – respondo, olhando-o ansiosamente. – Quando é que foi decidido?
O Matt baixa o olhar.
– Ontem. Hope, atrasaste-te em vários pagamentos. Com o mercado nesta situação, o banco foi obrigado a exigir o pagamento de vários empréstimos de pessoas que não pagam as prestações regularmente. Infelizmente, estás nessa situação.
Respiro fundo. Isto não pode estar a acontecer.
– Mas já paguei todas as prestações deste ano. É verdade que tive alguns meses difíceis, há alguns anos, quando a economia entrou em colapso, mas, nesta cidade, dependemos dos turistas.
– Eu sei.
– Quem não teve problemas nessa altura?
– Sim, muita gente teve problemas – concorda o Matt. – Infelizmente, foste uma das vítimas, e, tendo em conta o teu historial em termos de crédito…
Fecho os olhos por instantes. Não quero sequer pensar nesses problemas. Tive despesas com o divórcio, tive de assumir o pagamento da hipoteca da minha mãe após a sua morte e fui obrigada a fazer equilibrismo com vários cartões de crédito só para ter os ingredientes na confeitaria.
– O que posso fazer para resolver isto? – pergunto por fim.
– Não há muito que possas fazer, infelizmente – diz o Matt. – Podes tentar contrair outro empréstimo, naturalmente, mas o mercado está muito difícil neste momento. Posso garantir-te que não o vais conseguir em mais nenhum banco. E com o teu historial de pagamentos e a nova loja da Bingham ao fundo da tua rua…
– A Bingham – resmungo. – Só podia ser.
Tem sido a minha cruz no último ano. Trata-se de uma pequena cadeia de venda de donuts, criada na Nova Inglaterra e sediada em Rhode Island, que se está a expandir-se na região para tentar competir com a Dunkin’ Donuts. Abriram há nove meses a sua décima sexta loja regional, a oitocentos metros da minha confeitaria, precisamente quando eu estava a sair do buraco financeiro em que me encontrava depois da recessão.
Não fosse o impacto do divórcio e eu teria resistido a essa tempestade. Mas agora estou desesperadamente a tentar sobreviver e o Matt sabe-o bem; todos os meus empréstimos foram contraídos neste banco.
– Ouve, só me ocorre uma opção – diz o Matt.
Bebe demoradamente um gole de vinho e inclina-se para frente.
– Trabalho com alguns investidores de Nova Iorque. Eles estão sempre à procura de pequenos negócios que consigam… ajudar. Eu posso cobrar alguns favores.
– Sim – digo sem convicção. Não sei se quero ter estranhos a investir numa confeitaria que foi sempre um negócio familiar. E também não me agrada que o Matt cobre favores para me ajudar. Mas também sei que a alternativa pode ser, muito simplesmente, perder a confeitaria.
– Como é que isso funciona?
– Essencialmente, eles compram o teu negócio – diz. – Dessa forma, assumem o empréstimo junto do banco. Recebes algum dinheiro, o suficiente para pagar algumas das contas que ainda estão pendentes. E continuas a gerir a confeitaria e a controlar as atividades diárias. Se eles aceitarem.
Volto a olhá-lo fixamente.
– Estás a dizer-me que a minha única opção é vender a confeitaria da minha família a um estranho?
O Matt encolhe os ombros.
– Sei que não é a solução ideal. Mas resolveria o teu problema a curto prazo. E, se tiveres sorte, talvez eu os consiga convencer a deixarem-te continuar como gerente.
– Mas é a confeitaria da minha família – digo, com uma foz frágil, ciente de que me estou a repetir.
O Matt afasta o olhar.
– Hope, não sei que mais te possa dizer. Esta é, na verdade, a tua última opção, a não ser que tenhas meio milhão de dólares algures por aí. E, com a dívida que acumulaste, não podes simplesmente reunir todas as tuas forças e começar de novo noutro local. – Não consigo pronunciar uma palavra. Ao fim de algum tempo, o Matt recosta-se novamente e acrescenta: – Ouve, são boas pessoas. Já os conheço há algum tempo. Serão corretos contigo. Pelo menos, não tens de fechar a porta.
Sinto que o Matt me colocou uma granada no colo, tirou a cavilha e se ofereceu para limpar o que restou da carnificina, sempre com um sorriso.
– Tenho de pensar – digo, apática.
– Hope – começa o Matt. Afasta o seu copo de vinho e estende os braços sobre a mesa. Agarra as minhas mãos, muito mais pequenas, num gesto que me devia fazer sentir segura. – Vamos encontrar uma solução, está bem? Vou ajudar-te.
– Não preciso da tua ajuda – resmungo. Ele parece ficar sentido e eu, sentindo-me culpada por isso, deixo ficar as minhas mãos nas suas. Sei que está apenas a tentar ser simpático. O problema é que tudo isto me parece caridade. E eu não preciso de caridade. Posso afogar-me ou nadar até à margem, mas gostava, pelo menos, de o fazer sozinha.
Antes que um de nós possa dizer mais alguma coisa, ouço tocar o telemóvel dentro da minha carteira. Embaraçada, liberto as mãos para pegar no telefone. Não deixei o som ligado intencionalmente. Quando atendo, vejo o chefe de mesa lançar-me um olhar furioso do outro lado do restaurante.
– Mãe? – É a Annie, e parece perturbada.
– O que se passa, querida? – pergunto, quase de pé, preparada para a ir salvar onde for preciso.
– Onde estás?
– Num restaurante, a jantar – digo. Evito falar no Matt para que ela não pense que estou num encontro romântico. – E tu? Não estás em casa do teu pai?
– O pai teve de ir encontrar-se com um cliente – murmura. – Por isso, trouxe-me novamente para tua casa. E a máquina de lavar louça está, tipo, completamente avariada.
Fecho os olhos. Tinha colocado o detergente e ligado a máquina meia hora antes de o Matt chegar, presumindo que o ciclo estaria quase concluído quando saísse de casa.
– O que aconteceu?
– Não fui eu – diz a Annie rapidamente. – Mas há, tipo, água pelo chão todo. Tipo, muitos centímetros. Como uma inundação ou assim.
Sinto um enorme desalento. É provável que tenha rebentado um cano. Não imagino quanto custará a reparação nem tenho ideia da dimensão dos estragos nas minhas velhas portas de madeira maciça.
– Está bem – digo, num tom sereno. – Obrigada por me avisares, querida. Vou já para casa.
– Mas como paro a água? – pergunta. – Ainda continua, tipo, a sair. A casa vai ficar toda inundada.
Apercebo-me de que não faço ideia de como se fecha a água da cozinha.
– Deixa-me pensar nisso, está bem? Ligo-te já. Estou a caminho de casa.
– Tanto faz – diz a Annie, desligando-me o telefone abruptamente.
Conto ao Matt o que aconteceu e ele, depois de suspirar, chama o empregado de mesa e pede-lhe que coloque a nossa comida numa embalagem para levar.
– Desculpa – digo, enquanto caminhamos apressadamente para o carro, cinco minutos depois. – Ultimamente, a minha vida é uma sucessão de calamidades.
O Matt limita-se a abanar a cabeça.
– Estas coisas acontecem – diz, em tom formal.
Só fala novamente quando estamos a chegar a minha casa.
– Não podes adiar este problema da confeitaria, Hope – diz. – Se o fizeres, ficas sem nada. Perdes tudo o que a tua família conquistou e trabalhou para preservar.
Não respondo. Sei que tem razão e não consigo enfrentá-lo agora. Em vez disso, pergunto-lhe se sabe fechar a água da cozinha, mas ele responde negativamente e, por conseguinte, continuamos em silêncio o resto do caminho.
– De quem é aquele jipe? – pergunta o Matt quando estaciona em frente a minha casa. – Não há lugar na tua entrada.
– É do Gavin – digo, em voz baixa. O seu Wrangler azul acinzentado, que tão bem conheço, está estacionado ao lado do meu velho Corolla. O meu coração aperta-se.
– Gavin Keyes? – indaga o Matt. – O biscateiro? O que está ele a fazer aqui?
– A Annie deve tê-lo chamado – respondo, com os dentes cerrados. A minha filha não sabe que ainda não paguei ao Gavin, nem de perto nem de longe, todo o trabalho que teve em minha casa durante o verão. Nem sabe que, numa tarde de julho, sentada com ele no alpendre, depois de receber um extrato bancário, verti muitas lágrimas embaraçosas e que, um mês depois, quando ele terminou as reparações em minha casa, insistiu em que, naquele período difícil, eu lhe pagasse apenas com café e bolos da confeitaria. A Annie não sabe que ele é a única pessoa da cidade que percebe como a minha vida é confusa nem que, por esse motivo, ele é a última pessoa do mundo que eu quero ver neste momento.
Entro em casa, seguida do Matt, com a minha comida do Fratanelli’s. Na cozinha, encontro a Annie com uma pilha de toalhas e o Gavin inclinado, com a cabeça debaixo do lava-louça. Pestanejo quando percebo que estou a olhar diretamente para as calças de ganga, na coxa, para ver se o buraco em que tinha reparado de manhã ainda lá está. E está, naturalmente.
– Gavin – digo. Ele estremece, afasta-se do lava-louça e levanta-se. Olha alternadamente para mim e para o Matt, meio perdido, e coça a cabeça quando o Matt passa por ele para guardar a minha comida no frigorífico.
– Olá – diz o Gavin, que volta a olhar de relance para o Matt e depois para mim. – Vim logo que a Annie me chamou. Consegui fechar a água, por agora. Parece que o cano que rebentou está na parede, atrás da máquina de lavar louça. Venho repará-lo depois de amanhã, se não te importares de esperar.
– Não tens de fazer isso – sussurro. Olho-o nos olhos, na esperança de que ele perceba o que estou a tentar dizer: que ainda não lhe posso pagar.
Contudo, ele limita-se a sorrir e continua a falar como se não me tivesse ouvido.
– Amanhã tenho o dia preenchido mas, no dia seguinte, estou livre – afirma. – Tenho um trabalho pequeno, de manhã, na casa dos Foley. Além disso, este trabalho não deve demorar muito. Basta reparar o cano e fica tudo como novo. – Os seus olhos viram-se rapidamente para o Matt e depois novamente para mim. – Tenho um aspirador de água no jipe. Vou buscá-lo e ajudo-te a tirar alguma desta água. Podemos ver se provocou estragos quando as portas estiverem secas.
Olho para a Annie, que ainda permanece de pé, com uma enorme pilha de toalhas na mão.
– Conseguimos limpar isto tudo sozinhas – asseguro ao Gavin. – Não tens de ficar. Pois não? – acrescento, olhando para a Annie e depois para o Matt.
– Acho que não – diz a Annie, encolhendo os ombros.
O Matt desvia o olhar.
– Na verdade, Hope – atalha o Matt, desviando o olhar –, amanhã levanto-me cedo. Tenho de ir para casa.
O Gavin resmunga e sai sem dizer mais uma palavra. Eu ignoro-o.
– Ah… – digo ao Matt. – Claro. Obrigada pelo jantar.
Enquanto acompanho o Matt até à porta, o Gavin volta a entrar com o seu aspirador de água.
– Eu disse-te que não tinhas de fazer isso – murmuro.
– Sei o que disseste – declara o Gavin, sem abrandar para olhar para mim. Um pouco mais tarde, enquanto vejo o Lexus impecavelmente polido do Matt afastar-se do passeio, ouço ligar o aspirador do Gavin na cozinha. Fecho os olhos por um minuto, dou meia-volta e começo a caminhar em direção à única trapalhada da minha vida que tem, de facto, solução.
Na noite seguinte, a Annie está novamente em casa do Rob e eu, depois do trabalho, enquanto limpo com uma esfregona o que resta de sujidade na cozinha, dou por mim a pensar na Mamie, que sabia sempre como resolver estas calamidades. Lembro-me de que já não a visito há duas semanas. Devia ser uma neta melhor, penso, sentindo o peso da culpa. Devia ser uma pessoa melhor. Mais uma parte da minha vida em que pareço ficar eternamente aquém das expectativas.
Com um nó na garganta, acabo de esfregar o chão, ponho um pouco de bâton em frente ao espelho do hall e pego nas minhas chaves. A Annie tem razão; preciso de ir ver a minha avó. Visitar a Mamie deixa-me sempre com vontade de chorar pois, embora o lar seja animado e acolhedor, é terrível vê-la eclipsar-se. É como estar no convés de um barco, vendo alguém ser engolido pelas ondas, e saber que não há qualquer colete de salvação para atirar.
Quinze minutos depois, atravesso as portas do lar onde está a Mamie, um edifício enorme, pintado de um amarelo baço e repleto de imagens de flores e criaturas dos bosques. O andar superior é a unidade para doentes com problemas de memória, onde os visitantes têm de introduzir um código num teclado digital colocado na parede.
Atravesso o corredor até chegar ao apartamento da Mamie, o último da ala oeste. As instalações dos residentes são todas privadas e semelhantes a apartamentos, embora os doentes tomem todas as refeições na sala de jantar e todos os funcionários tenham chaves mestras para poderem acompanhar os residentes e dar-lhes a medicação diária. A Mamie toma um antidepressivo, dois comprimidos para o coração e um medicamento para a doença de Alzheimer que não parece estar a resultar; reúno-me com o médico do lar uma vez por mês para fazermos o ponto da situação. Na nossa última reunião, informou-me de que as capacidades mentais da Mamie se têm deteriorado rapidamente nos últimos meses.
– A pior parte – disse, olhando para mim por cima dos óculos – é que ela está suficientemente lúcida para o saber. Esta é uma das etapas mais difíceis para todos; ela sabe que, em breve, vai perder totalmente a memória, e isso é muito inquietante e triste para os pacientes que se encontram neste estado.
Procuro conter a emoção quando toco à campainha ao lado do seu nome: Rose McKenna. Consigo ouvi-la mexer-se dentro do apartamento, certamente a levantar-se da sua cadeira reclinável com algum esforço e a dirigir-se para a porta com a bengala que usa desde que, há dois anos, partiu a anca numa queda.
A porta abre-se e eu resisto à tentação de me encostar ao seu peito, à espera de um abraço, como fazia quando era mais nova. Até este momento, acreditava que vinha ao lar ajudá-la, mas agora percebo que venho, na verdade, procurar conforto. Preciso disto. Preciso de ver alguém que me ame, ainda que esse amor seja imperfeito.
– Olá – diz a Mamie, sorrindo. Desde a minha última visita, o cabelo parece mais branco e as rugas do rosto afiguram-se mais acentuadas. Mas, como sempre, pôs o seu bâton cor de vinho, escureceu as pálpebras e aplicou rímel nas pestanas. – Que surpresa, querida.
As suas palavras denunciam pequenos vestígios da pronúncia francesa que já quase perdeu. Vive nos Estados Unidos desde o início dos anos 40, mas os traços do seu passado longínquo ainda envolvem as suas palavras como uma das écharpes francesas, leves como penas, que quase sempre usava à volta do pescoço.
Aproximo-me para a abraçar. Quando eu era mais pequena, ela era sólida e forte. Agora, quando ela retribui o abraço, sinto os ossos salientes da sua coluna e dos seus ombros.
– Olá, Mamie – digo, em voz baixa, pestanejando rapidamente para conter as lágrimas.
Ela fita-me com os olhos cinzentos e turvados.
– Tem de me desculpar – diz. – Por vezes, sou um pouco esquecida. Como se chama, querida? Eu sei que me devia lembrar.
Engulo em seco.
– Sou a Hope, Mamie. A tua neta.
– Claro. – Sorri, mas os seus olhos cinzentos estão perdidos. – Eu sabia. Só preciso que me lembrem as coisas de vez em quando. Entre, por favor.
Sigo-a até ao interior do seu apartamento mal iluminado, onde ela me conduz até à janela da sala de estar.
– Estava só a ver o pôr do sol, querida – diz. – Em breve, conseguiremos ver a estrela da tarde.