Capítulo 4

Nunca foi minha intenção regressar à confeitaria, a Cape, a nada disto.

Aos trinta e seis anos, não devia ser a mãe de uma adolescente, a proprietária de uma confeitaria. Na universidade, sonhava mudar-me para um lugar distante, percorrer o mundo, ser uma advogada bem-sucedida.

Mas depois conheci o Rob, finalista de Direito no ano em que eu iniciei o meu doutoramento. Embora Cape tivesse um forte magnetismo, a força de atração do Rob era muito superior. Quando o meu contracetivo falhou, a meio do meu primeiro ano em Direito, e eu tive de lhe dizer que estava grávida, ele pediu-me em casamento na semana seguinte. Era, nas palavras dele, a atitude mais correta a tomar.

Decidimos, em conjunto, que eu interromperia os estudos durante um ano para ter o bebé. A Annie nasceu em agosto; o Rob conseguiu um emprego numa firma de Boston e sugeriu que eu ficasse um pouco mais tempo em casa, com a nossa filha, pois ele auferia agora um bom salário. No início, a ideia agradou-me. Contudo, ao fim do primeiro ano, o fosso entre nós era tão vasto que eu já não sabia como atravessá-lo. Os meus dias, preenchidos com fraldas, amamentação e Rua Sésamo, não o interessavam especialmente, e não me custava reconhecer que invejava o facto de ele ir para o mundo todos os dias fazer as coisas com que eu, noutros tempos, sonhara. Não estava arrependida de ter tido a Annie; nunca me arrependi, em momento algum. Lamentava apenas nunca ter tido a possibilidade de viver a vida que me parecia estar destinada.

Quando diagnosticaram pela primeira vez o cancro da mama à minha mãe, há nove anos, o Rob aceitou, após muitas noites de discussão, mudar-se para Cape, onde, pensava ele, poderia abrir um escritório e ser um dos poucos advogados especializados em acidentes de trabalho. A Mamie tomava conta da Annie na confeitaria durante o dia, enquanto eu trabalhava como assistente jurídica do Rob. Não era exatamente o que eu tinha sonhado, mas era suficientemente parecido. Quando a Annie estava no primeiro ano, já colocava coberturas nos queques e preparava bases como uma profissional. Durante alguns anos, tudo foi quase perfeito.

Contudo, o cancro da minha mãe reapareceu, a memória da Mamie começou a dar sinais de deterioração e só eu podia salvar a confeitaria. Quando dei por mim, estava a proteger um sonho que não era meu, deixando escapar tudo aquilo que tinha idealizado.

São quase cinco da manhã, e ainda faltam duas horas para o amanhecer. Quando eu frequentava a escola primária, a Mamie costumava dizer-me que cada nova manhã era como desembrulhar um presente de Deus. Isto confundia-me, pois ela não frequentava a igreja. Contudo, à noite, quando a minha mãe e eu a visitávamos à hora do jantar, víamo-la muitas vezes ajoelhada defronte da janela das traseiras, a rezar em voz baixa enquanto a luz se desvanecia no céu.

– Prefiro ter uma relação minha com Deus – disse-me, uma vez, quando lhe perguntei porque rezava em casa em vez de orar à Nossa Senhora de Cape Cod.

Esta manhã, os aromas da farinha, do fermento, da manteiga, do chocolate e da baunilha dançam pela cozinha, e eu inspiro-os profundamente, deixando-me descontrair pela familiaridade de tudo isto. Desde criança que estes aromas me fazem lembrar a minha avó. Mesmo quando a confeitaria estava fechada, mesmo depois de ela tomar duche e se vestir em casa, o perfume da cozinha perdurava no seu cabelo e na sua pele.

Enquanto estendo a massa das bases com um rolo e adiciono um pouco mais de farinha na tijela da batedeira, estou um tanto alheada das tarefas que tenho em mãos. Medito nas palavras que a Mamie proferiu ontem à noite enquanto executo metodicamente os gestos comuns dos preparativos matinais. Verificar o temporizador do forno dos suspiros com pepitas de chocolate. Estender a massa para as rosas de amêndoa que o Matt Hines tanto aprecia. Dispor a baklava em camadas e introduzi-la no forno. Colocar na segunda batedeira o queijo-creme amolecido para o cheesecake de limão com uvas. Misturar na massa dos croissants pequenos quadrados de chocolate preto francês para os pains au chocolat. Entrançar os longos fios da challah de trigo integral, polvilhar com passas e pôr de parte para voltar a levedar.

Não tens nenhum problema, querida. São palavras da Mamie, mas o que pode ela saber? Já quase perdeu a memória, os seus sentidos estão totalmente baralhados. Contudo, há momentos em que os seus olhos parecem mais clarividentes do que nunca e em que eu tenho a certeza de que ela olha diretamente para a minha alma. Embora nunca tenha duvidado de que ela e o meu avô se amavam, sempre me pareceu que tinham uma relação mais funcional do que romântica. Será que eu tinha uma relação semelhante com o Rob e deitei tudo a perder por sentir que podia haver algo mais? Talvez tenha sido tonta. A vida não é um conto de fadas.

O temporizador do forno principal dispara e eu passo os suspiros para uma grelha. Ligo o forno e preparo-me para introduzir os pains au chocolat. Comecei a fazer duas fornadas todas as manhãs; vendem-se mais depressa agora no outono, que a temperatura baixa. As nossas tartes e bolos de frutas são mais populares nos meses de primavera e de verão, mas os bolos mais densos e mais doces parecem reconfortar as pessoas quando se aproxima o inverno.

Comecei por ajudar a Mamie na confeitaria, como a Annie me ajuda agora, quando tinha oito anos. Todas as manhãs, pouco antes do nascer do sol, a Mamie interrompia o que estava a fazer e levava-me até à janela voltada a leste, do lado da sinuosa Main Street. Observávamos o horizonte até romper a aurora e só depois voltávamos à cozinha.

– O que procuras, Mamie? – perguntei numa dessas manhãs.

– Estou a olhar para o céu, querida – disse ela.

– Eu sei. Mas porquê?

Puxou-me para junto dela, abraçando-me contra o avental cor-de-rosa desbotado que usava desde sempre. Senti-me algo assustada com a força do seu abraço.

Chérie, estou a ver desaparecer as estrelas – respondeu passado algum tempo.

– Porquê? – inquiri.

– Porque, apesar de não as conseguirmos ver, elas estão sempre lá – disse. – Estão apenas escondidas atrás do sol.

– E então?… – perguntei timidamente.

Ela libertou-me do abraço e inclinou-se para me olhar nos olhos.

– É muito bom, querida, recordar que não temos de ver uma coisa para saber que ela existe.

Estas palavras da Mamie, proferidas há quase três décadas, ainda ecoam nos meus ouvidos no momento em que escuto a voz da Annie à porta da cozinha, acordando-me abruptamente da minha letargia.

– Porque estás a chorar? – pergunta.

Ergo os olhos, e apercebo-me, surpreendida, de que ela tem razão; deslizam-me lágrimas pelo rosto. Limpo-as com as costas da mão, completamente molhada, espalhando massa pegajosa por toda o rosto, e forço um sorriso.

– Não estou a chorar – digo.

– Não tens de, tipo, mentir.

– Estava só a pensar na Mamie – suspiro.

A Annie revira os olhos e faz uma careta.

– Boa, agora é que decidiste mostrar alguma emoção.

Atira a mochila para um canto, onde ela cai com estrondo.

– O que queres dizer com isso? – pergunto.

Tu sabes – diz. Arregaça as mangas da camisa e tira um avental de um cabide da parede, à esquerda das prateleiras onde guardo os tabuleiros.

– Não, não sei – digo-lhe.

Paro o que estou a fazer e observo-a enquanto retira uma caixa de ovos e quatro barras de manteiga do frigorífico de aço inoxidável. Movimenta-se pela cozinha com o mesmo à-vontade com que a Mamie o fazia.

A Annie só responde depois de bater a manteiga na batedeira do balcão, adicionar quatro chávenas de açúcar e partir os ovos, um de cada vez.

– Se tivesses conseguido, tipo, sentir alguma coisa quando estavas casada com o pai, talvez não estivesses divorciada – diz por fim, acompanhada pelo zumbido da batedeira.

Respirando com dificuldade, olho-a severamente.

– De que estás a falar? Eu demonstrava os meus sentimentos.

Ela desliga a batedeira.

– Tanto faz – murmura. – Só demonstravas os teus sentimentos quando, tipo, me mandavas para o quarto e assim. Quando é que demonstraste que eras feliz com o pai?

– Eu era feliz!

– Tanto faz – diz. – Nem conseguias dizer ao pai que o amavas.

Pestanejo nervosamente.

– Ele disse-te isso?

– Porquê? Não tenho idade suficiente para perceber as coisas sozinha? – diz. Contudo, pela forma como evita o meu olhar, percebo que acertei em cheio.

– Annie, não é correto que o teu pai te diga coisas más a meu respeito – afirmo. – Há muitos aspetos da nossa relação que tu não entendes.

– Tais como? – É um desafio, e ela olha-me com frieza.

Peso as minhas opções mas, no final, sei que não é correto arrastar os filhos para uma guerra entre adultos a que os devemos poupar.

– Isso é entre mim e o teu pai.

Ela ri-se e revira os olhos.

Ele confia em mim o suficiente para me contar certas coisas – diz. – E sabes que mais? Tu estragas tudo, mãe.

Antes que eu possa responder, ouço o carrilhão da porta da frente da confeitaria. Olho para o relógio. Faltam alguns minutos para as seis horas, a hora de abertura oficial, mas a Annie não deve ter trancado a porta quando entrou.

– Continuamos esta conversa mais tarde, minha menina – declaro rispidamente.

– Tanto faz – resmunga ela. Volta-se novamente para a massa que está a bater e eu observo-a mais um segundo, enquanto ela adiciona farinha, leite e uma pequena porção de baunilha.

– Hope, estás aí atrás? – É a voz do Matt, vinda da parte da frente da loja, e eu tenho de despertar para o trabalho.

A Annie diz, em surdina, «Claro que é ele», mas eu finjo não ouvir enquanto saio da cozinha.

A Mrs. Koontz e a Mrs. Sullivan entram às sete horas, como habitualmente, e, por uma vez, a Annie sai rapidamente para as atender. Normalmente, é mais feliz na cozinha, a preparar queques e miniaturas de tartes com o iPod ligado, ignorando-me com toda a naturalidade até ter de ir para a escola. Contudo, hoje, abre um sorriso, saltita para a sala principal e serve-lhes café antes de elas terem oportunidade de pedir seja o que for.

– Deixem-me acompanhar-vos à vossa mesa – diz, transportando habilmente duas chávenas de café e um pequeno jarro de natas, enquanto as senhoras a seguem, trocando olhares.

– Oh, obrigada, Annie – diz a Mrs. Sullivan enquanto a Annie pousa os cafés e as natas e lhe puxa a cadeira.

– Não tem de quê! – responde a Annie alegremente. Por um momento, parece exatamente a rapariga que era antes do divórcio. A Mrs. Koontz também murmura um agradecimento e a Annie diz, quase a cantar: – De nada, minha senhora!

Ela aguarda serenamente que as senhoras bebam os primeiros goles de café e quase dá pulos de alegria quando a Mrs. Sullivan prova o seu muffin de mirtilo e a Mrs. Koontz escolhe o seu donut com açúcar de canela.

– Posso… tipo, fazer uma pergunta? – pergunta a Annie. Paro de arrumar as coisas atrás do balcão para tentar ouvir o que ela quer saber.

– Podes, querida – diz a Mrs. Koontz – Mas não deves usar assim a palavra tipo a meio de uma frase.

– Hum? – pergunta a Annie, confusa. A Mrs. Koontz arqueia a sobrancelha e a Annie é suficientemente inteligente para se redimir. – Ou melhor, não se importa de repetir? – corrige.

– A palavra tipo não é uma muleta para se usar em todas as frases – diz a Mrs. Koontz à minha filha com um ar sério.

– Oh! – diz a Annie. – Quer dizer, eu sei. – Espreito por cima do balcão e vejo-a vermelha como um pimento. Sinto pena dela; a Mrs. Koontz, que fora minha professora de inglês há muito tempo, no décimo ano, é dura de roer. Pondero sair em defesa da Annie mas, antes de eu ter oportunidade de o fazer, a Mrs. Sullivan intervém.

– Oh, Barbara, deixa a miúda em paz – diz, dando um ligeiro toque no braço da amiga. E depois, voltando-se para a Annie: – Ignora-a. Agora que se reformou, tem saudades de poder dar ordens aos alunos.

A Mrs. Koontz esboça um protesto, mas a Mrs. Sullivan dá-lhe um novo toque e sorri para a Annie.

– Disseste que tinhas uma pergunta para nos fazer, querida?

– Ah, pois – diz a Annie, aclarando a garganta. – Aliás, sim, minha senhora. Estava só a pensar… – Faz uma pausa, e as amigas aguardam. – Bem, as senhoras conheceram a minha bisavó, certo?

As duas mulheres entreolham-se e voltam-se depois para a Annie.

– Sim, claro – responde finalmente a Mrs. Sullivan. – Conhecemo-la há anos. Como é que ela está?

– Bem – diz a Annie de imediato. – Ou melhor, não totalmente. Está com alguns… problemas. Mas… em geral, está bem. – O seu rosto está de novo corado. – De qualquer forma, as senhoras sabem quem é… Leona?

As duas mulheres voltam a trocar olhares.

– Leona – repete lentamente a Mrs. Sullivan. Reflete um momento e abana a cabeça. – Não creio. O nome não me parece familiar. Barbara?

– Não – diz a Mrs. Koontz, abanando a cabeça. – Penso que não conhecemos ninguém com esse nome. Porquê?

A Annie baixa os olhos.

– A minha bisavó está sempre a tratar-me por esse nome. Eu só gostava de saber, tipo, de quem se trata. – A Annie entra em pânico por um segundo e murmura: – Desculpem, não queria dizer tipo.

A Mrs. Sullivan estende o braço e dá uma palmadinha na mão da Annie.

– Agora assustaste a menina, Barbara – diz.

A Mrs. Koontz suspira.

– Estava só a tentar corrigir-lhe a gramática.

– Pois, mas este não é o momento nem o lugar para o fazeres – protesta a Mrs. Sullivan, piscando o olho à Annie – Porque é que isso é tão importante para ti, querida? Saber quem é Leona?

– A minha bisavó parece triste – responde a Annie ao fim de algum tempo, numa voz tão baixa que tenho de me esticar para a ouvir. – E eu não sei muito sobre ela, infelizmente. Sobre a minha bisavó. Quero ajudá-la, mas não sei como.

Nesse momento, entram dois clientes, um homem de cabelo grisalho e uma mulher loura, jovem, que não conheço. Enquanto os atendo, não ouço o que a Annie e as duas senhoras estão a dizer. A mulher loira pede uma fatia de bolo de cenoura depois de perguntar se temos alguma coisa light – não temos – e o seu acompanhante, que parece ter algumas décadas mais, aperta-lhe a mão, beija-lhe a orelha, e pede um éclair. Quando saem e eu volto a olhar para a Annie, ela está sentada com as duas senhoras mais velhas.

Consulto o relógio e pondero avisar a Annie de que, se não sair nos minutos seguintes, chegará atrasada à escola, mas o seu olhar é tão sério que, em vez disso, detenho-me durante algum tempo a olhar para ela. Nos últimos tempos, estou habituada a que sorria com desprezo e revire os olhos sempre que está comigo mas, neste momento, ela parece apenas inocente e interessada. Procuro conter a emoção.

Entro na sala principal com um pano e um pulverizador de detergente para poder bisbilhotar enquanto finjo que limpo. Apercebo-me de que as senhoras estão a contar a história da vinda da Mamie para Cape Cod.

– Todas as raparigas da cidade estavam apaixonadas pelo teu bisavô Ted – assegura Mrs. A Koontz.

– Meu Deus! – a Mrs. Sullivan usa o jornal como um leque. – Eu costumava escrevinhar o nome dele e o meu num caderno todos os dias quando era finalista no liceu.

– Ele era mais velho do que nós – diz a Mrs. Koontz.

– Quatro anos mais velho – concorda a Mrs. Sullivan. – Ele estudava (em Harvard, sabes?), mas vinha visitar a cidade com alguma frequência. Tinha um belo carro, o que, nessa altura, era invulgar por aqui. E as raparigas simplesmente desmaiavam.

– Era tão amável – concorda a Mrs. Koontz. – E, como muitos outros rapazes, alistou-se no Exército depois de Pearl Harbor.

As duas mulheres fazem uma pausa ao mesmo tempo e fitam as mãos. Sei que estão a pensar noutros jovens que tinham perdido há muito tempo. A Annie endireita-se na cadeira e volta à carga.

– E o que aconteceu depois? Ele conheceu a minha bisavó na guerra, não foi?

– Em Espanha, creio – diz a Mrs. Koontz, olhando para a Mrs. Sullivan para confirmar a informação. – Abateram o seu avião algures no norte de França ou na Bélgica, se bem me lembro. Nunca ouvi a história completa; aqui, todos acreditaram durante meses que ele tinha desaparecido em combate. Eu estava convencida de que ele tinha morrido. Mas ele conseguiu, de alguma forma, fugir para Espanha, onde estava também a tua bisavó.

A Annie acena afirmativamente, com uma expressão solene, como se soubesse esta história de cor, apesar de o meu avô ter morrido doze anos antes de ela nascer.

– A tua bisavó Rose é francesa, como sabes. Mas penso que os seus pais morreram quando ela era jovem e que ela tinha vontade de abandonar a França porque o país estava em guerra, não foi? – A Mrs. Sullivan tenta achar o fio à meada, olhando para a Mrs. Koontz.

A Mrs. Koontz aquiesce.

– Nunca soubemos exatamente como se conheceram mas penso, de facto, que a Rose estava a viver em Espanha. Foi talvez em… 1944… que soubemos que ele tinha voltado para os Estados Unidos depois de casar com uma rapariga francesa?

– Final de 1943 – corrige a Mrs. Sullivan. – Lembro-me perfeitamente. Foi no dia em que fiz vinte anos.

– Ah, claro, choraste sobre o teu bolo de aniversário. – A Mrs. Koontz pisca o olho à Annie. – Ela tinha uma paixoneta de menina do liceu pelo teu bisavô. Mas a tua bisavó arrebatou-o.

A Mrs. Sullivan faz uma careta.

– Ela era dois anos mais nova do que eu e tinha uma exótica pronúncia francesa. Os rapazes deixam-se encantar muito facilmente pelas pronúncias, sabes?

A Annie volta a acenar com a cabeça, com a mesma expressão solene, como se, por instinto, já o soubesse. Escondo um sorriso enquanto finjo estar concentrada numa mancha particularmente difícil de limpar. Nunca ouvi a minha avó explicar como conheceu o meu avô. Aliás, ela raramente fala do passado. Mais um motivo para eu estar interessada no que estas senhoras sabem.

– Ted conseguiu um emprego qualquer em Nova Iorque, numa escola secundária, depois de concluir o doutoramento – afirma a Mrs. Koontz. – Depois, ele e a tua avó mudaram-se para Cape Cod. Foi então que aceitou o emprego no Sea Oats.

O meu avô, que era doutorado em Pedagogia, fora o primeiro diretor do Sea Oats, um prestigiado colégio privado da cidade vizinha. Noutros tempos, o Sea Oats agrupava todo o ensino básico e secundário, mas agora é apenas um liceu. É lá que a Annie vai estudar a partir do nono ano, graças a uma bolsa concedida aos familiares dos antigos professores.

– E… a minha avó já tinha nascido? – pergunta a Annie. – Quando a Mamie e o meu bisavô se mudaram para cá?

– Sim, a tua avó Josephine teria talvez… cinco anos? Seis anos quando eles se mudaram? – diz a Mrs. Sullivan. – Vieram para Cape em 1950. Lembro-me bem, pois foi o ano em que casei.

A Mrs. Koontz confirma.

– Sim, se bem me recordo, Josephine começou a frequentar o primeiro ano quando eles se mudaram para cá.

– E a minha Mamie fundou a confeitaria nessa altura? – indaga a Annie.

– Penso que o fez alguns anos mais tarde – diz a Mrs. Koontz. – Mas a tua mãe deve saber. Hope, querida?

Finjo não ter ouvido a conversa.

– Sim? – pergunto, olhando para cima.

– A Annie gostava de saber quando é que a tua avó fundou a confeitaria.

– Em 1952 – digo. Olho de relance para a Annie, que me observa. – Os seus pais tinham sido proprietários de uma confeitaria em França, creio. – Isto era tudo o que eu sabia sobre o passado da Mamie. Ela nunca falou sobre o período anterior à relação com o meu avô.

A Annie ignora-me e volta-se para as duas senhoras.

– Não conhecem então ninguém com o nome de Leona? – pergunta.

– Não – diz a Mrs. Sullivan. – Talvez fosse uma amiga que vivesse em França.

– Na verdade, ela nunca teve amigos aqui – diz a Mrs. Koontz. Olha para mim com uma expressão arrependida e apressa-se a acrescentar: – É muito simpática, naturalmente. Era apenas reservada.

Aceno que sim, mas pergunto a mim mesma se, no fundo, a culpa seria toda da Mamie. Ela é calma e reservada, sem dúvida, mas não me parece que a Mrs. Koontz, a Mrs. Sullivan e as outras mulheres da cidade a recebessem de braços abertos. Sinto uma tristeza angustiante por ela.

Consulto novamente o relógio.

– Annie, é melhor ires. Vais chegar atrasada à escola.

Ela fita-me, irritada, e os vestígios da antiga Annie desaparecem; já me odeia outra vez.

– Não mandas em mim – murmura.

– Na verdade, minha menina – diz a Mrs. Koontz, lançando-me um olhar incisivo –, manda, sim. É a tua mãe, logo manda em ti até fazeres dezoito anos. No mínimo.

– Tanto faz – diz a Annie, em voz baixa.

Levanta-se da mesa e entra com estrondo na cozinha. Aparece pouco depois com a mochila.

– Obrigada – diz a caminho da porta. – Quer dizer, obrigada por me falarem sobre a minha bisavó. – Não olha sequer para mim quando sai pela porta da frente para a Main Street.

O Gavin entra na confeitaria à hora de fecho para me devolver as cópias das chaves que eu lhe emprestei dois dias antes. Veste o mesmo par de calças de ganga com o buraco na coxa, o qual parece ter aumentado ligeiramente desde a última vez que o vi.

– O cano está reparado – diz-me, enquanto lhe sirvo o que resta do café que fiz para a parte da tarde. – A máquina de lavar louça está como nova.

– Nem sei como te agradecer.

– Claro que sabes – o Gavin sorri. – Conheces as minhas fraquezas. Tartes das estrelas. Strudel de canela. Café frio. – Olha para a chávena e arqueia a sobrancelha mas, ainda assim, bebe um gole.

Rio-me, apesar do embaraço.

– Sei que não te devia pagar em bolos, Gavin. Desculpa.

– Não tens nada por que pedir desculpa – diz, erguendo os olhos. – Estás claramente a subestimar a minha dependência dos teus bolos. – Finjo uma expressão severa, o que o faz rir. – A sério, Hope, não faz mal. Estás a fazer o que podes.

Suspiro enquanto coloco a última rosa de amêndoa do dia numa Tupperware que vai passar a noite no frigorífico.

– Acontece que aquilo que posso fazer não é suficiente. – O Matt trouxe uma pilha de documentos de manhã, mas eu ainda não os comecei a ler, mesmo sabendo que é obrigatório fazê-lo. Essa tarefa assusta-me.

– Não te valorizas o suficiente – diz o Gavin. Antes de eu poder responder, acrescenta: – Parece que tens passado muito tempo com o Matt Hines. – Bebe outro gole de café. Interrompo o que estou a fazer e olho-o nos olhos.

– São só negócios – digo, apesar de não perceber porque me sinto obrigada a dar-lhe explicações. «Hum…» é tudo o que o Gavin tem para dizer.

– Fomos namorados no liceu – acrescento.

O Gavin cresceu na North Shore, perto de Boston. Contara-me, aliás, tudo sobre o seu liceu de Peabody, certa tarde, no alpendre. Presumo, pois, que não conheça o meu passado com o Matt.

É com surpresa que o ouço dizer:

– Eu sei. Mas isso foi há muito tempo.

– Há muito tempo – confirmo.

– Como é que a Annie se está a aguentar? – pergunta o Gavin, mudando novamente de assunto. – Tendo em conta os problemas com o teu ex-marido e tudo o resto?

Levanto a cabeça e observo-o. Há muito que ninguém me fazia esta pergunta, e surpreende-me o facto de eu ficar muito agradecida por isso.

– Está bem – digo-lhe. Faço uma pausa e retifico: – Na verdade, não sei porque te dei esta resposta. Não está bem. Ultimamente, parece furiosa e eu não sei o que fazer. É como se eu soubesse que a verdadeira Annie está algures ali dentro mas que ela, neste momento, só me quer magoar.

Não sei porque lhe estou a fazer confidências mas a verdade é que o Gavin, enquanto acena lentamente que sim, não aparenta qualquer sinal de reprovação, o que me deixa muito grata. Começo a esfregar o balcão com um pano molhado.

– Aquela idade é difícil – diz. – Eu era pouco mais velho do que ela quando os meus pais se divorciaram. Ela está apenas confusa, Hope. Há de ultrapassar esta fase.

– Achas que sim? – pergunto baixinho.

Sei que sim – diz o Gavin. Levanta-se e vem ter comigo ao balcão, onde coloca a sua mão sobre a minha. Paro de esfregar e olho para ele. – Ela é boa miúda, Hope. Apercebi-me disso este verão, no tempo todo que passei em vossa casa.

Sinto lágrimas nos olhos, o que me deixa embaraçada. Pestanejo várias vezes para as fazer desaparecer.

– Obrigada. – Faço uma pausa e retiro a minha mão.

– Se eu puder fazer alguma coisa… – diz o Gavin. Em vez de acabar a frase, olha para mim com tal intensidade que tenho de desviar o olhar, sentindo o rosto muito corado.

– É uma oferta muito amável, Gavin – reconheço. – Mas deves ter coisas melhores para fazer do que preocupares-te com a velhota que gere a confeitaria.

O Gavin arqueia a sobrancelha.

– Não vejo aqui velhotas.

– Essas palavras são muito simpáticas – murmuro –, mas tu és jovem, solteiro… – Faço uma pausa. – Espera lá, és solteiro, não és?

– Da última vez que vi, era.

Ignoro o inesperado sentimento de alívio que se apodera de mim.

– Pois, mas eu tenho trinta e seis anos, vou fazer trinta e sete; sou divorciada; estou a afundar-me financeiramente; tenho uma filha que me odeia. – Faço uma pausa e baixo os olhos. – Tens coisas melhores para fazer do que preocupares-te comigo. Não devias andar por aí a fazer… não sei, o que as pessoas solteiras fazem?

– O que as pessoas solteiras fazem – repete. – O quê, exatamente?

– Não sei – digo. Sinto-me uma idiota. Há séculos que não me sinto jovem. – Ir a uma discoteca – arrisco com uma voz tímida.

Ele solta uma gargalhada.

– Sim, vim mesmo para Cape por causa da animação noturna. De facto, acabo de chegar de uma rave.

Sorrio, mas sem convicção.

– Sei que estou a dizer tolices – afirmo. – Mas não tens de estar preocupado comigo. Tenho muito em que pensar, mas sempre tratei de tudo no passado. Hei de encontrar uma solução.

– Não morres se deixares entrar alguém na tua vida de vez em quando, sabes? – diz o Gavin num tom baixo.

Lanço-lhe um olhar austero e preparo-me para responder, mas ele fala primeiro.

– Como te disse no outro dia, és uma boa mãe – prossegue o Gavin. – Só tens de deixar de duvidar de ti mesma.

– O problema é que pareço estragar sempre tudo – digo, baixando os olhos. Sinto-me corar e questiono-me. – Não sei porque te estou a dizer isto.

Ouço o Gavin respirar fundo e, pouco depois, ele contorna o balcão e envolve-me nos seus braços. O meu coração estremece, mas retribuo o abraço. Tento ignorar a força do seu peito quando se aproxima um pouco mais; em vez disso, concentro-me na sensação agradável de ser abraçada. Já não há ninguém que me reconforte desta maneira e, até este momento, ainda não tinha percebido como isto me fez falta.

– Não estragas tudo, Hope – murmura o Gavin junto ao meu cabelo. – Tens de ser menos exigente contigo mesma. És a pessoa mais forte que conheço. – Após uma pausa, ele acrescenta: – Sei que, ultimamente, nada te tem corrido bem. Mas nunca se sabe o que vai acontecer amanhã ou no dia seguinte. Um dia, uma semana, um mês, podem mudar tudo.

Volto a olhá-lo severamente e recuo.

– A minha mãe costumava dizer-me isso. Exatamente essas palavras.

– Sim? – pergunta o Gavin.

– Sim.

– Nunca falas nela – afirma ele.

– Eu sei – murmuro.

A verdade é que é demasiado doloroso pensar nela. Sempre acreditei, na infância, que, se me portasse um pouco melhor, lhe agradecesse com mais convicção ou assumisse mais tarefas em casa, ela gostaria um pouco mais de mim. Em vez disso, ela parecia distanciar-se cada vez mais a cada ano que passava. Quando lhe foi diagnosticado cancro da mama, e eu vim para casa para a poder ajudar, repetiu-se o mesmo ciclo; queria que ela, nos últimos tempos, visse como eu a adorava mas, em vez disso, ela continuou a manter-me à distância. Quando me disse, no leito de morte, que me amava, as palavras não me pareceram reais; eu queria acreditar que eram sentidas, mas sabia que, muito provavelmente, ela estava confusa e delirante nos seus últimos momentos, acreditando estar a falar com um dos seus inúmeros namorados.

– Sempre fui muito mais próxima da minha avó do que da minha mãe – digo ao Gavin.

O Gavin coloca a mão no meu ombro.

– Lamento que a tenhas perdido, Hope – diz. Não sei ao certo se está a falar da minha mãe ou da Mamie, pois, de muitas maneiras, já desapareceram as duas.

– Obrigada – balbucio.

Quando ele sai alguns minutos depois com uma caixa de Strudel, acompanho os seus passos, ainda com o coração acelerado. Não sei o que o leva a acreditar em mim quando nem mesmo eu acredito. Mas não posso pensar nisso agora; tenho de resolver a questão mais premente: os planos do banco para a execução do empréstimo. Passo as mãos pelas têmporas, ligo a chaleira elétrica e sento-me numa das mesas da confeitaria para ler os documentos que o Matt me entregou.