ABRACADABRA

 

 

 

 

 

 

 

 

Para dizer toda a verdade, menti quanto à morte de Shiva. Foi a primeira vez que disse uma coisa de-todo-em-todo falsa (se bem que a apresentação do estado de emergência sob a forma duma longa meia-noite com seiscentos e trinta e cinco dias de extensão tenha sido excessivamente romântica, contrariando em tudo os dados meteorológicos). Seja como for e pense-se o que se pensar, é com grande relutância que Saleem consegue mentir e é de cabeça baixa que me confesso... Para quê, então, essa mentira desavergonhada? (Em boa verdade, não sei sequer o que aconteceu ao meu rival após a saída do Lar das Viúvas; tanto pode estar no inferno como no bordel ao fundo da rua e não vejo se haverá grande diferença.) Padma, tenta compreender: é o medo que tenho dele. Há um contencioso aberto entre nós e não posso deixar de tremer com a ideia de que o herói de guerra vai descobrir o segredo do nascimento (alguma vez lhe terão mostrado uma pasta com três iniciais?) e que, furioso com a perda irreversível do passado, me procure para se vingar... irá acabar tudo assim, será um par de joelhos dum super-homem impiedoso que asfixiará a vida em mim?

Foi por isso que menti; pela primeira vez, fui vítima da tentação de todos os que escrevem uma autobiografia, a ilusão de que, visto o passado existir apenas nas suas recordações e nas palavras que em vão se esforçam por fechar na sua cápsula, é possível criar acontecimentos do passado, bastando dizer que eles aconteceram. O meu receio atual meteu uma arma nas mãos de Roshanara; com o fantasma do comandante Sabarmati debruçado sobre o meu ombro, permiti-lhe entrar na cela... Em suma, a recordação de um dos meus primeiros crimes criou as circunstâncias (imaginárias) do último de todos.

Fim da confissão. E estou a aproximar-me perigosamente do fim das minhas recordações. É noite, Padma dispõe-se para me ouvir; na parede, sobre a minha cabeça, um lagarto acaba de papar uma mosca; o calor de agosto, que tudo decompõe e que é suficiente para me curtir o cérebro, cantarola alegremente aos meus ouvidos; há cinco minutos, o último comboio local amarelo-acastanhou ruidosamente ao sair da estação de Churchgate e mal ouvi o que Padma me disse com uma timidez que ocultava uma determinação tão poderosa como o petróleo. Tive de lhe pedir que repetisse e os músculos da incredulidade começaram logo a vibrar-lhe nas barrigas das pernas. Tomo nota de que a nossa lótus da bosta me fez uma proposta de casamento, «para poder tomar conta de ti sem ficar coberta de vergonha diante de toda a gente».

Exatamente o que eu receava! Mas agora ficou dito claramente e Padma (posso dizê-lo) não admite um não! Protestei como uma donzela tímida: «Não estava nada à espera. E a ectomia, o que os cães vadios comeram, não te põe problemas? E, além disso, Padma, há aquilo-que-corrói-os-ossos, Padma, ficarias viúva!... E pensa na maldição de morte violenta, pensa em Parvati... tens a certeza de ter a certeza?» Mas Padma, cerrando os dentes com uma expressão majestosa de resolução inquebrantável, replicou: «Patrão, não interessam os mas. Não quero saber das tuas histórias. Importa pensar no futuro.» A lua de mel será em Caxemira.

Ao calor ardente da determinação de Padma, sou assaltado pela ideia louca de que talvez seja possível, apesar de tudo, modificar o final da minha história com a força monumental da vontade dela, talvez as fissuras (e até a morte) cedam ao poder da sua solicitude insaciável... «Importa pensar no futuro», afirmou ela e é possível (penso nisso pela primeira vez desde que iniciei esta história), é possível que haja futuro! É toda uma série de novos finais que gira na minha cabeça, zumbindo como insetos de calor... «Vamos casar, patrão», propõe ela, e as traças da excitação dão-me volta às entranhas, como se ela me tivesse dito uma fórmula cabalística, um terrífico abracadabra, como se me tivesse libertado do destino. Mas a realidade põe-me na ordem. O amor não consegue conquistar tudo, só nos filmes de Bombaim, não é uma simples cerimónia que vai vencer as fissuras gretas roturas; e o otimismo é uma doença.

«No dia dos teus anos, que te parece? – sugere. – Aos trinta e um anos, um homem é um homem e tem de ter mulher.»

Que hei de eu dizer? Como lhe vou dizer que há outros planos para esse dia, que sempre fui vítima dum destino maluco que gosta de fazer estragos nos dias assinalados... como, numa palavra, falar-lhe da morte? Não posso; em vez disso, humilde e fingindo-me reconhecido, aceito a proposta. Fico noivo uma vez mais esta noite; que ninguém me leve muito a mal por consentir a mim mesmo – e à minha noiva – este prazer inconsequente.

Padma, ao propor-me este casamento, revelou a sua vontade de ignorar tudo quanto eu lhe tenho contado sobre o meu passado e as minhas histórias «fantasistas»; e quando eu, regressando, me encontrei de novo com Singh da Fotografia, feliz da vida, sob a ponte do caminho de ferro, fiquei claramente convencido de que até os próprios mágicos estavam a perder a memória. Durante as inúmeras andanças por bairros de lata volantes, tinham perdido algures a capacidade de recordar, e agora também a de julgar, visto não terem pontos de referência a que comparar o que lhes acontecia. Até o próprio estado de emergência foi rapidamente esquecido e os mágicos concentraram-se no presente com a monomania dos caracóis. Não viam o que tinha mudado; esqueceram-se de que agora eram outros que mandavam. O comunismo tinha-se-lhes escapado do corpo e, lépido como um lagarto, sumira-se na terra sequiosa. Começaram até a esquecer os truques, tão grande era a confusão da fome, da doença, da sede e das perseguições policiais. Para mim, porém, esta mudança havida nos meus antigos companheiros parecia-me quase obscena. Saleem tinha atravessado a amnésia e conhecia o seu carácter imoral; no seu espírito, o passado ia-se tornando cada vez mais nítido, ao passo que o presente (de que fora para sempre privado à facada) se lhe afigurava baço, confuso, sem importância; eu, que recordava perfeitamente cada um dos cabelos dos meus carcereiros e cirurgiões, não podia deixar de ficar chocado com a repugnância dos mágicos em olharem para o passado. «As pessoas são como os gatos – disse para o meu filho. – Aprendem tudo o que se lhes queira ensinar.» Olhou para mim com a seriedade fúnebre que se impunha, mas conteve a língua.

Quando encontrei a colónia fantasma dos ilusionistas, o meu filho Aadam Sinai tinha perdido todos os vestígios da tuberculose que o atormentara durante a primeira infância. Eu, evidentemente, estava convencido de que a doença tinha desaparecido com a queda da Viúva; mas Singh da Fotografia disse-me que a cura era obra duma lavadeira, Durga de seu nome, que o tinha criado e todos os dias o deixava compartilhar da superabundância dos seus seios colossais. «Essa Durga, capitão – dizia-me o encantador de serpentes com uma voz reveladora de que nos seus últimos dias se dobrara diante do encanto insinuante da dhoban. – Que mulher!»

Era uma mulher de peitos avantajados; cujos seios sobrenaturais libertavam uma torrente de leite suficiente para mais de um regimento; e que (diga-se à puridade, mas estou em crer que era ela a origem desse rumor) tinha dois úteros. Falava tanto e originava tantos mexericos quanto produzia leite: dos lábios dela saíam todos os dias dúzias de histórias novas. Tinha a energia inesgotável das profissionais da barrela e, enquanto batia as camisas e os saris no lavadouro de pedra, parecia acumular novas forças, como se extraísse todo o vigor da roupa que, no final, tinha perdido todos os botões e toda a vitalidade. Era um monstro que ignorava as horas a que termina o dia. Foi com muita repugnância que aceitei metê-la nestas páginas. Antes mesmo de a conhecer, já o nome dela tinha para mim o cheiro das coisas novas; representava a novidade, o começo, o advento de novos acontecimentos histórias perplexidades, e eu já não estava interessado em coisas novas. Mas, quando Foto me informou de que pretendia desposá-la, não tive outro remédio; vou, porém, limitar-me a dizer o mínimo possível.

Resumindo, pois: a lavadeira Durga era um súcubo! Um lagarto chupador de sangue em forma de gente. E o que ela fazia a Singh da Fotografia só tinha comparação com o poder que exercia sobre as camisas que esfregava na pedra, isto é, espalmava-o. Mal a vi uma vez, percebi logo porque é que Singh da Fotografia tinha aquele aspeto velho e gasto; privado do guarda-chuva da harmonia, sob o qual os homens e as mulheres se haviam reunido em busca de sombra e conselhos, parecia cada vez mais engelhado; a possibilidade de ele vir a ser um segundo Zângão tornava-se cada vez mais remota aos meus olhos; Durga, por seu lado, estava florescente: o seu palavreado tinha cada vez mais um tom escatológico, a voz era cada vez mais forte e mais esganiçada, a pontos de me parecer a da Reverenda Mãe no final da vida, quando ela ia alargando, ao mesmo tempo que o meu avô encolhia. Esta recordação dos meus avós era o único aspeto que me parecia interessante na personalidade da ríspida lavadeira.

Mas a generosidade das suas glândulas mamárias era inegável: aos vinte e um meses, Aadam mamava à farta no seio dela. A princípio, achei que era altura de ser vedado, mas lembrei-me de que o meu filho só fazia o que lhe apetecia, e resolvi não insistir. (E foi o bem que fiz, pelo que depois vim a saber.) Quanto ao tal útero duplo, não senti ganas de averiguar a verdade e não me dei ao trabalho de investigar.

Falo da Durga, da dhoban, sobretudo porque, numa noite em que estávamos a comer uma ceia de vinte e sete grãos de arroz para cada um, ela predisse a minha morte. Eu, exasperado com a vaga imparável dos seus mexericos e falatórios, atirei-lhe com esta: «Durga bibi, as tuas histórias não interessam a ninguém!» E ela, imperturbável: «Saleem baba, tenho sido simpática para contigo, porque Foto me disse que, vindo da prisão, devias estar feito num caco; mas, falando francamente, vê-se que a única coisa que te interessa é o presente. Hás de compreender que, quando um homem não se interessa por coisas novas, abre a porta ao Anjo Negro.»

Singh da Fotografia disse calmamente: «Não sejas dura com ele, capitoa», mas a flecha da dhoban Durga tinha atingido o alvo.

No esgotamento do meu regresso, sentia que o vazio dos dias me ia cobrindo com uma película gelatinosa; e embora na manhã seguinte Durga, talvez com remorsos sinceros de me ter dito palavras tão duras, tivesse proposto dar-me forças, permitindo-me mamar no seio esquerdo, enquanto o meu filho chupava o direito, e «talvez depois comeces a pensar normalmente», a ideia da morte passou a ocupar por completo os meus pensamentos; e foi então que descobri o espelho da humildade na garagem de autocarros de Shadipur, e tive a certeza da proximidade da morte.

Era um espelho situado sobre o portão da garagem; andando a passear sem motivo algum no pátio da garagem, a minha atenção foi atraída pelo sol que o espelho refletia. Dei conta de que não me via a um espelho há muito tempo, talvez há anos, e aproximei-me até ficar diante dele. Levantei os olhos para o espelho e vi-me transformado num anão de cabeça grande; nessa imagem deformada e humilhante de mim próprio, vi que tinha o cabelo cinzento como as nuvens da chuva; o anão do espelho, de cara enrugada e olhos cansados, fez-me lembrar o meu avô Aadam Aziz no dia em que nos disse ter visto Deus. Tinham regressado todas as enfermidades que a feiticeira Parvati havia curado: nove dedos, têmporas cornudas, tonsura, manchas na cara, pernas torcidas, nariz de pepino, castração e agora velhice precoce. Vi no espelho da humildade um ser humano a quem a história não podia fazer mais nada, uma criatura grotesca liberta da ordem do destino, um destino que, à força de pancadas, a deixara semi-insensível; com um ouvido surdo e outro são, ouvi os passos abafados do Anjo Negro da morte.

No espelho, o rosto velho e novo do anão mostrava uma expressão de profundo alívio.

Estou a ficar soturno; mudemos de assunto... Vinte e quatro horas antes de os remoques dum vendedor de paan terem levado Singh da Fotografia a partir para Bombaim, o meu filho Aadam Sinai tomou uma decisão que nos permitiu acompanharmos na viagem o encantador de serpentes: de um dia para o outro, sem avisar e para grande consternação da ama que assim se viu obrigada a ordenhar o próprio leite para barricas de cinco litros, o Aadam de orelhas grandes vedou-se a si próprio, recusando o seio sem mais explicações e exigindo (sem dizer palavra) uma dieta sólida: arroz descascado, lentilhas e bolos secos. Era como se tivesse decidido permitir que eu alcançasse a minha linha de chegada própria e agora próxima.

Autocracia muda dum bebé com menos de dois anos: Aadam não nos dizia quando tinha vontade de comer, dormir ou fazer as necessidades. Esperava até que nós descobríssemos. A constante atenção que ele exigia é porventura uma das razões pelas quais, não obstante as previsões contrárias, eu consegui continuar vivo... Incapaz, na época posterior à libertação da prisão, de trabalhar fosse no que fosse, dediquei toda a atenção ao meu filho. «Fica sabendo, capitão, que foi uma sorte teres vindo – dizia-me Singh da Fotografia, zombeteiro –, senão este obrigar-nos-ia a ser ayahs dele.» Compreendi que Aadam fazia parte duma segunda geração mágica, muito mais resistente do que a primeira, e que não iria procurar o seu destino nas profecias ou nas estrelas, mas que o forjaria na fogueira da sua vontade. Olhando para os olhos daquela criança que era a um tempo não-meu-filho e muito mais meu herdeiro do que o poderia ter sido o filho da minha carne, descobri nas suas pupilas vazias e límpidas um outro espelho, um segundo espelho da humildade onde aprendi que dali em diante o meu papel seria tão secundário como o de qualquer velho ocioso: a função tradicional dum contador de histórias... Perguntei a mim mesmo se, nas outras regiões, os bastardos de Shiva exerceriam tiranias semelhantes sobre os adultos desamparados; e pela segunda vez vi essa tribo de garotos terríveis e possantes, crescendo esperando ouvindo e imaginei o momento em que o mundo se ia tornar no brinquedo deles. (Modo de os identificar: o umbigo deles sai em vez de se meter para dentro.)

Mas são horas de pôr as coisas em movimento: um sarcasmo, um último comboio rumo ao sul sul sul, uma batalha final... Um dia depois de Aadam ter deixado de mamar, Saleem acompanhou Singh da Fotografia até à Praça Connaught, para o ajudar na sua atividade de encantador de serpentes. A dhoban Durga concordou em levar o meu filho com ela para o dhobi-ghat e Aadam passou o dia a ver como o súcubo espremia o poder das roupas dos ricos e o absorvia.

Nesse dia fatal, quando o tempo quente caiu sobre a cidade como um enxame de abelhas, fui apanhado pela nostalgia e pensei na minha escarradeira de aço bulldozerizada. Singh da Fotografia tinha-me dado outra escarradeira de recurso, uma lata de Dalda Vanaspati vazia, e, tendo-a eu embora usado para divertir o miúdo com a minha destreza na arte de acertar-na-escarradeira, vendo os repuxos do sumo de bétel atravessar a atmosfera nojenta do gueto dos mágicos, não me senti consolado por isso. Uma pergunta: porquê tamanho desgosto por mor dum simples recipiente para sumo de bétel? Respondo que não se deve subestimar nunca uma escarradeira. Elegante no salão da rani de Cooch Naheen, permitia aos intelectuais praticarem a arte das massas; reluzindo numa cave, transformou o mundo subterrâneo de Nadir Khan num segundo Taj Mahal; acumulando pó numa velha mala de lata, não deixou por isso de estar presente ao longo de toda a minha história, assimilando secretamente incidentes numa mala de roupa suja, visões fantásticas, congelamentos e degelos, secagens, exílios; caindo do céu como um crescente de Lua, perpetrou uma transformação. Ó escarradeira encantada! Ó magnífico recetáculo perdido das recordações e dos escarros! Não há pessoa sensível que não sinta simpatia diante da terrível nostalgia que o teu desaparecimento me causa.

... Ao meu lado, nas traseiras dum autocarro a abarrotar de humanidade, vai Singh da Fotografia sentado com os seus cestos de serpentes inocentemente poisados nos joelhos. Depois de tantos trambolhões pela cidade cheia de fantasmas das Delis recentes e mitológicas, o Maior Encantador do Mundo tinha uma expressão de desânimo, parecia ter chegado ao fim uma batalha num subterrâneo remoto e escuro... Até eu regressar, ninguém tinha percebido que o medo autêntico e secreto de Foto era estar a envelhecer, a perder poderes, pouco faltando para ficar completamente acabado e impotente num mundo que não compreendia: tal como eu, Singh da Fotografia agarrava-se à presença do pequeno Aadam, como se o miúdo fosse uma tocha no fundo do túnel: «Um miúdo maravilhoso, capitão – dizia ele, cheio de dignidade. – As orelhas mal se notam!»

Mas naquele dia o meu filho não ia connosco.

Farejei uma certa agressividade na Praça Connaught... o perfume dos biscoitos nas tabuletas de J. B. Mangharam, a palidez funérea do reboco a desfazer-se; o cheiro trágico dos homens dos riquexós motorizados, condenados à fome pela subida do preço da gasolina; os cheiros da relva verde dos canteiros redondos no meio da via, à mistura com o perfume dos escroques que convenciam os estrangeiros a cambiarem a moeda no mercado negro à sombra dos pórticos. Da Casa do Café, diante de cujas vitrinas se podiam ouvir boatos sem fim, vinha o cheiro menos agradável de novas histórias: intrigas casamentos disputas cujo aroma se misturava com o do chá. O que eu farejei naquela Praça Connaught: a proximidade duma rapariga de cara retalhada que em tempos fora Sundari-a-excessivamente-bela; perfumes das recordações perdidas, de olhemos-para-o-futuro e de nada-afinal-muda-nada... distraem-me destas sensações olfativas e obrigam-me a concentrar-me nos cheiros omnipotentes e mais simples da urina (humana) e da bosta animal.

Sob as arcadas do edifício F., na Praça Connaught, perto dum quiosque, havia a barraca dum vendedor de paan. Ficava sentado de pernas cruzadas atrás do vidro verde duma guarita, como uma divindade secundária feita de gelo; permito que ele entre nestas derradeiras páginas porque, exalando embora os aromas da pobreza, era efetivamente um homem remediado, proprietário dum carro com a marca Lincoln-Continental, que deixava estacionado longe da praça e que tinha pago com o que ganhara no contrabando de cigarros e transístores; todos os anos passava quinze dias de férias na prisão e, no resto do tempo, pagava bons salários a vários polícias. Na cadeia era tratado como um rei, mas, ali atrás do vidro verde da sua guarita, tinha um aspeto inofensivo, vulgaríssimo, e não era fácil (a não ser para o nariz sensível de Saleem) dar conta de que aquele homem sabia tudo sobre tudo, que a sua rede de contactos lhe permitia conhecer os segredos... Lembrou-me agradavelmente uma personagem que em Carachi tinha conhecido no decorrer das minhas viagens de lambreta; fiquei tão deliciado a inalar os perfumes familiares da nostalgia que me surpreendi quando o ouvi falar.

Tínhamo-nos instalado perto da guarita: enquanto Foto limpava as flautas e punha um enorme turbante amarelo-açafrão, eu cumpria a minha função de pregoeiro, uivando: «Venham... venham ver... Uma oportunidade única na vida... Senhoras e senhores, venham ver venham ver! Quem está aqui convosco? Não é um bhangi qualquer; não é um vagabundo desses que dormem nas ruas; senhoras e senhores, convosco o Maior Encantador do Mundo! Sim, venham ver venham ver: a Eastman-Kodak tirou-lhe a fotografia! Cheguem-se aqui sem medo... Apresento-lhes SINGH DA FOTOGRAFIA!» e outros disparates do mesmo género; mas aí falou o vendedor de paan:

«Conheço outro melhor. Esse tipo não é o número um! Não, não é com toda a certeza! Em Bombaim há um homem superior!»

Assim ficou Singh da Fotografia a saber da existência do seu rival; e desistindo logo ali do espetáculo, acercou-se do melífluo paan-wallah e, na sua voz funda e imperiosa, ordenou: «Vais dizer-me toda a verdade sobre esse faquir, capitão, se não queres que te obrigue a engolires os dentes até eles te morderem no estômago!» E o paan-wallah, sem se assustar, sabedor de que tinha três polícias dispostos a defendê-lo, para serem dignos das gorjetas que recebiam, foi-nos cochichando o segredo do seu saber universal, dizendo-nos quem quando e onde, até Singh da Fotografia rematar, numa voz cuja firmeza escondia o medo: «Vou mostrar a esse tipo de Bombaim quem é o melhor. Num único mundo, capitães, não há lugar para dois Maiores Encantadores.» O vendedor de noz de bétel encolheu os ombros e cuspiu-nos aos pés.

 

 

Como um talismã, os remoques do paan-wallah abriram a porta pela qual Saleem retornou à terra da sua naturalidade, ao local da sua mais funda nostalgia. Foi de facto um abre-te, Sésamo e, uma vez nas tendas esfarrapadas sob a ponte dos caminhos de ferro, Singh da Fotografia escavou no chão e desenterrou o lenço da sua segurança (o tecido sem cor em que tinha guardados alguns tostões para a velhice); e quando a lavadeira Durga recusou ir com ele, dizendo: «Julgas que sou uma rica crorepati, Foto, que tenho posses para ir de férias e por aí fora?», ele voltou-se para mim com um olhar suplicante e pediu-me que fizesse a viagem com ele, pois não queria partir para a pior das batalhas que já tivera de travar, para a grande prova da sua velhice, sem um amigo do seu lado... Sim, e Aadam também ouviu, ouviu com as suas orelhas de elefante as palavras do mágico, e vi os olhos iluminarem-se quando eu aceitei e quando nos instalámos na carruagem de terceira classe que seguia para sul sul sul; e nas cinco sílabas monótonas que as rodas produziam decifrei eu a palavra secreta: abracadabra abracadabra abracadabra era o que as rodas cantavam enquanto nos levavam para Bom.

Sim, abandonei para todo o sempre o bairro dos mágicos, parti abracadabra abracadabra abracadabra a caminho do coração da nostalgia que iria manter-me vivo até acabar de escrever estas linhas (e criar o número correspondente de frascos de conservas); Aadam Saleem e Singh da Fotografia, apertados como sardinhas numa carruagem de terceira, levando com eles um grande número de cestos amarrados com guitas, cestos que, com os seus silvos incessantes, assustavam a humanidade amontoada na carruagem, a pontos de a turbamulta ir recuando recuando recuando para longe da ameaça das serpentes, permitindo-nos ir mais à vontade; e as rodas cantavam abracadabra às orelhas arrebitadas de Aadam.

No caminho de Bombaim, o pessimismo de Singh da Fotografia ganhou dimensões tais que ele se transformou numa entidade física sem muitas parecenças com o velho encantador de serpentes. Em Mathura, um jovem americano de queixo borbulhento e cabeça rapada como um ovo subiu para a carruagem por entre o alarido dos vendedores de bichos de barro e tigelas de chaloo-chai; abanava-se com um leque de penas de pavão, e o mau agoiro das penas deixou Singh da Fotografia muitíssimo deprimido. Enquanto a infindável planura do vale do Ganges ia passando do outro lado do vidro e o vento quente nos trazia até ao nariz cheiros insalubres, o americano escanhoado explicava aos viajantes as complexidades do hinduísmo e começou a ensinar-lhes mantras, estendendo ao mesmo tempo a escudela das esmolas; Singh da Fotografia mantinha-se cego para este espetáculo admirável e surdo para o abracadabra das rodas. «É uma desgraça, capitão – confidenciava ele, com uma voz soturna –, o tipo de Bombaim deve ser novo e robusto e estou doravante condenado a descer para o posto do segundo Maior Encantador do Mundo.» Já na estação de Kotah, os cheiros da má sorte que emanavam do leque de penas de pavão abatiam tão completamente o velho Foto, mortificavam-no de tal maneira que, tendo todos os passageiros saído e mijado contra o comboio, ele não manifestou qualquer desejo de fazer o mesmo. No entroncamento de Ratlam, quando até eu começava a sentir-me nervoso, caiu numa espécie de catalepsia que não era sono mas a crescente paralisia do pessimismo. Pensei: «Por este andar, nem sequer vai ser capaz de defrontar o rival.» Passámos por Baroda: tudo na mesma. Em Surat, armazém da antiga companhia John, compreendi que tinha de atuar depressa, porque o abracadabra ia-nos aproximando de Bombaim. Finalmente, peguei na velha flauta de Singh da Fotografia e pus-me a tocar, mas tão mal que todas as serpentes se contorciam de dor e o jovem americano ficou petrificado e silencioso. Produzi um som tão infernal que ninguém deu pelas estações de Bassein Road, Kurla, Mahim, e logrei aniquilar os miasmas das penas de pavão; Singh da Fotografia sacudiu o desânimo e disse com um sorriso débil: «É melhor parares, capitão, e deixares-me tocar a mim, senão algumas delas ainda morrem de dor.»

As serpentes enfiaram-se nos cestos; as rodas pararam de cantar; tínhamos chegado; agarrei no Aadam e não pude deixar de gritar: «De novo em Bom!» Para grande espanto do americano, que nunca tinha ouvido essa mantra, repeti repeti e repeti: «De novo em Bom!»

No autocarro de Bellasis Road que nos levava para a rotunda de Tardeo, cruzámo-nos com parsis de olhos encovados, oficinas de reparação de bicicletas e cafés iranianos; e surgiu Hornby Vellard à direita (foi ali que os transeuntes viram morrer Sherri, a cadela rafeira!). As efígies de papelão das lutadoras continuavam a dominar as portas do estádio Vallabhbhai Patel! E, aos solavancos, passámos frente aos sinaleiros que estavam sob os guarda-sóis, pelo templo de Mahalaxmi... e entrámos na Warden Road! As piscinas de Breach Candy! E mais além, reparem, as lojas... mas os nomes estavam todos mudados: onde estava agora o Paraíso do Leitor com pilhas de bandas desenhadas do Super-Homem? E a Lavandaria Band Box e o Bombelli com a sua jarda de chocolate? Ah, meu Deus, olha além no alto duma colina da altura de dois pisos, onde antigamente os palácios de William Methwold se aninhavam entre buganvílias e olhavam altivamente o mar... olha agora aquele prédio enorme, cor-de-rosa e monstruoso, o arranha-céus das mulheres de Narlikar, ereto, ocupando a própria praceta circular da infância... Era a minha Bombaim, de facto, e não era a minha Bombaim, porque o miúdo Kolynos tinha-se ido embora da esquina da casa Kemp, tinha abalado para sempre, e até o Thomas Kemp tinha desaparecido... Cruzavam-se ruas no local onde outrora se tinham vendido medicamentos e onde um duende de boné verde clorofilino tinha visto passar os carros. Disse em tom elegíaco: «Dentes limpos, dentes brilhantes! Com Kolynos dentes superbrancos.» Mas não houve encantamento que lograsse dar vida ao passado; e, aos solavancos, atravessámos a Gibbs Road e descemos à Chowpatty Beach.

Não tinha mudado nada em Chowpatty: era a mesma língua de areia suja onde enxameavam os carteiristas os passeantes os vendedores de channa-quente-quentinha, de kulfi, de bhel-puri e de chutter-mutter; mas, logo a seguir à Marine Drive, vi o que os tetrápodes tinham feito. Na terra tirada ao mar pela empresa Narlikar, viam-se os monstros que se erguiam para o céu e tinham inscritos nomes estrangeiros: o OBEROI SHERATON acenava-me lá ao longe... Mas que era feito do anúncio luminoso com a marca Jeep? «Foto – disse eu finalmente, apertando Aadam contra o peito –, vamos lá onde é preciso ir e depois, fora daqui! A cidade mudou!»

 

 

Que dizer do Clube Confidencial Meia-Noite? Que é subterrâneo e secreto (mas conhecidíssimo dos paan-wallahs omniscientes); uma porta sem nada de especial; a clientela é constituída pela fina flor de Bombaim. E que mais? Ah, sim, tem à cabeça um tal Anand «Andy» Shroff, playboy-homem-de-negócios que passa a maior parte do tempo a bronzear-se no Hotel Areia e Sol da praia Juhu, entre estrelas de cinema e princesas falidas. Pergunta-se: um indiano a bronzear? Pelos vistos, é normalíssimo, um playboy tem de respeitar à letra as regras internacionais incluindo, parece-me, a que estipula a adoração quotidiana do Sol.

Como sou ingénuo (eu que tinha o costume de dizer que Sonny, a vítima marcada pelos fórceps, é que era inocente!), não suspeitava de que existissem locais como o Clube Confidencial Meia-Noite! Mas é claro que existem; e, apertando bem as flautas e os cestos, batemos à porta.

Movimentos atrás dum ralo à altura dos olhos: a voz doce duma mulher perguntou o que desejávamos e Singh da Fotografia declarou: «Eu sou o Maior Encantador do Mundo. Está aqui um outro encantador de serpentes a dar espetáculo e eu quero desafiá-lo para provar a minha superioridade. Não quero que me paguem nada, capitoa. É só uma questão de honra.»

Era já tarde, felizmente. Mr. Anand «Andy» Shroff estava lá; e para não perder tempo, direi desde já que foi aceite o repto de Singh da Fotografia e que penetrámos no lugar cujo nome me tinha intrigado por incluir a palavra Meia-Noite. E porque as iniciais são as do meu mundo secreto. Eram as do meu grupo de Lobitos e as da Aliança dos Filhos da Meia-Noite. O clube usurpava os meus domínios. Em suma: senti-me invadido7.

O duplo problema da juventude mundana e cosmopolita da cidade: como consumir álcool num estado em que o álcool é proibido e como fazer a corte às raparigas em moldes ocidentais, onde namorar com elas, em segredo total, para evitar a muito oriental vergonha do escândalo? O Clube Confidencial Meia-Noite era a solução que Mr. Shroff proporcionava aos tão aflitivos problemas da juventude dourada da cidade. Naquela cave da licenciosidade, tinha ele criado um universo de trevas digno das profundezas estígias, negro como os infernos. No segredo duma meia-noite escura, encontram-se os amantes da cidade, bebendo álcool de importação e namorando; ao abrigo da escuridão e do isolamento artificial, apalpavam-se impunemente. O inferno é uma visão dos outros: todos os romances incluem pelo menos uma descida ao Jahannum e eu desci com Singh da Fotografia ao negrume do clube, com um bebé ao colo.

 

Caminhámos sobre uma alcatifa negra – negra como a noite, a mentira, o negro corvo, a peste negra, o negro com que se mete medo às criancinhas, em suma, uma alcatifa preta. Éramos precedidos por uma empregada de beleza arrebatadora, com o sari mais erótico que se possa pensar, deixando-lhe à mostra as ancas, e uma flor de jasmim espetada no umbigo; mas, quando nos embrenhávamos nas trevas, voltou-se para trás, sorrindo de forma tranquilizadora, e vi que tinha os olhos fechados; tinha uns olhos estranhamente luminosos pintados por cima das pálpebras. Não pude deixar de perguntar: «Porquê...» Ao que ela simplesmente respondeu: «Sou cega; quem aqui vem não quer ser reconhecido. Este mundo aqui é um mundo sem rosto e sem nome; quem aqui vem não tem recordações, nem família, nem passado; este lugar é para agora, só para agora e para nunca mais.»

E fomos engolidos pelas trevas; ela guiou-nos através daquele abismo de pesadelo donde tinha sido desterrada a luz, através daquele espaço fora do tempo, daquela negação da história... «Sentai-vos – disse –, o outro encantador de serpentes não vai demorar a aparecer. Quando forem horas, acende-se uma luz que vos iluminará; é o momento de começar o concurso.»

Ficámos sentados durante – o quê? minutos, horas, semanas? –, enquanto os olhos luminosos das mulheres cegas conduziam os clientes invisíveis até aos seus lugares; pouco a pouco, no escuro, dei conta de que me rodeavam suaves murmúrios amorosos, um sussurro de ratos de veludo copulando; ouvia o tilintar de copos agarrados por mãos enlaçadas e o doce contacto dos lábios; com um ouvido surdo e outro são, ouvia os ruídos da sexualidade ilegal que pairava no ar da meia-noite... mas a mim não me interessava o que se passava à minha volta; embora o meu nariz fosse capaz de farejar no silêncio sussurrante do clube toda a casta de novas histórias, de novos começos, de amores exóticos e proibidos, e de pequenos contratempos invisíveis e de quem-está-a-ir-longe-de-mais, ou seja, de milhentas lascívias deliciosas, tudo isso eu ignorei, porque se tratava de um mundo novo onde não havia lugar para mim. Mas o meu filho Aadam estava ao meu lado e ardiam-lhe as orelhas, fascinadas; os olhos dele brilhavam no escuro, enquanto ouvia, memorizava, aprendia... e foi então que se acendeu a luz.

Um simples jacto de luz que manchou o solo do Clube Confidencial Meia-Noite. Na sombra, para além da zona iluminada, Aadam e eu vimos Singh da Fotografia sentado, muito direito, de pernas cruzadas, ao lado dum jovem elegante de cabelo luzidio; estavam ambos rodeados de instrumentos musicais e cestos fechados. Um altifalante anunciou o início do lendário concurso para o título do Maior Encantador do Mundo. Mas alguém terá ouvido? Alguém prestou atenção ou estavam todos distraídos com lábios línguas mãos? E o nome do adversário de Foto era: o Maharaja de Cooch Naheen.

(Não sei: um título é fácil de adquirir. Mas é bem possível que ele fosse neto da velha rani que em tempos, há muitos anos, tinha sido amiga do Dr. Aziz; talvez o herdeiro da Partidária-do-Zângão tivesse, ironicamente, de competir com o homem que podia ter sido o segundo Mian Abdullah! É possível; houve muitos maharajas reduzidos à pobreza quando a Viúva revogou a lista civil.)

Durante quanto tempo lutaram eles naquela caverna sem sol? Meses, anos, séculos? Não posso responder. Espantado, vi-os tentarem ultrapassar-se um ao outro, encantando toda a espécie de serpentes, exigindo que lhes fossem trazidas espécies raras dos viveiros de Bombaim (onde noutros tempos o Dr. Schaapsteker...), e o Maharaja desafiava Singh da Fotografia serpente a serpente, conseguia até encantar a cobra constritora, o que antes só Singh era capaz de fazer... Naquele clube infernal cujo negrume era um outro aspeto da obsessão do proprietário pela cor negra (razão pela qual se bronzeava no Hotel Areia e Sol, dia a dia, para ficar cada vez mais negro), os dois encantadores conseguiam façanhas impossíveis, obrigando as serpentes a fazerem nós simultâneos ou a formarem arcos, ou a beberem água dos copos, a saltarem círculos incendiados... Negando a fadiga a fome a idade, Singh da Fotografia jogava a própria vida (mas alguém, uma única pessoa, lhe daria atenção?) e tornou-se evidente que o mais novo já estava cansado; as serpentes deixaram de dançar ao ritmo da sua flauta; e por fim, após uma série de manobras tão rápidas que o adversário nem deu por isso, Singh da Fotografia conseguiu atar uma cobra-real em volta do pescoço do Maharaja.

O que disse Foto: «Diz que sou eu o melhor, senão digo-lhe que morda.»

Terminou assim o concurso. O príncipe, humilhado, abandonou o clube e soube-se mais tarde que veio a suicidar-se num táxi. E no próprio campo da sua última batalha, Singh da Fotografia deixou-se cair como uma árvore banyan... algumas das criadas cegas (a uma das quais eu tinha confiado Aadam) ajudaram-me a retirá-lo dali.

Mas o Confidencial Meia-Noite viria a pregar-me uma partida. Uma vez em cada noite (para dar algum picante) acendia-se um projetor móvel sobre um dos pares ilegais, mostrando-o aos olhos escondidos dos outros; uma espécie de roleta russa luminosa que era mais um motivo de excitação para os jovens cosmopolitas...

E quem foi naquela noite a vítima escolhida? Quem, de têmporas cornudas cara manchada nariz de pepino, ficou encharcado na luz do escândalo? Quem ficou tão cego como as criadas sob a curiosidade dos projetores que por pouco não tinham decepado as pernas do seu amigo inconsciente?

Saleem regressou à cidade onde tinha nascido para ser iluminado numa cave, enquanto os bombaítas se riam dele no escuro.

 

 

Apressadamente, porque estamos a chegar ao fim, registo aqui que, numa sala negra onde a luz era autorizada, Singh da Fotografia voltou a si; e, enquanto Aadam dormia profundamente, uma das criadas cegas trouxe-nos uma ceia de congratulação para restabelecermos as forças perdidas: samosas, pakoras, arroz, dal, puris. E chutney verde. Sim, uma tigelinha de alumínio com chutney verde, verde como os gafanhotos... e o puri não tardou a vir para a minha mão; e sobre o puri vinha o chutney... E eu provei e pouco faltou para não cair desmaiado como Singh da Fotografia, porque dei comigo a recordar o dia em que saí do hospital com nove dedos e parti para o exílio em casa de Hanif Aziz e comi o melhor de todos os chutneys... O gosto daquele chutney era mais do que o simples eco do chutney de antigamente... era de facto o mesmo, sem tirar nem pôr, tinha o poder de ressuscitar o passado como se ele não tivesse passado... Tomado por uma excitação frenética, agarrei a criada cega pelo braço; incapaz de me conter, pus-me a dizer: «O chutney, quem foi que o fez?» Devo ter gritado, porque Foto disse: «Calma, capitão, olha que acordas a criança... que é que se passa? Parece que viste o fantasma do teu pior inimigo.» E a criada cega, bastante secamente: «Não gostas do chutney?» Tive de reter um mugido profundo: «Gosto – disse, fechando o mais possível a voz entre grades de aço –, gosto muito... Mas quero saber donde vem!» E ela, alarmada, ansiosa por sair dali: «Das conservas Bragança, as melhores de Bombaim, toda a gente sabe.»

Mandei pedir o frasco; no rótulo estava o endereço dum edifício com uma deusa de néon amarelo-açafrão e verde sobre o pórtico, uma fábrica guardada por uma Mumbadevi de néon, junto à qual amarelo-acastanhavam os comboios: Conservas Bragança, Lda. (particular) no subúrbio norte da cidade.

Novamente abracadabra abre-te, Sésamo: os dizeres dum frasco de chutney abriram a última porta da minha vida... Empurrava-me a irresistível determinação de conhecer o fabricante do impossível chutney da memória e disse: «Foto, tenho de ir...»

Não sei como acabou a história de Singh da Fotografia; recusou acompanhar-me nas buscas e vi nos olhos dele que o esforço despendido no combate o deixara quebrado por dentro, vi que a vitória tinha sido uma derrota; pode ter ficado em Bombaim (a trabalhar possivelmente para Mr. Shroff) ou voltado para junto da lavadeira; pode estar vivo ou morto, não sei dizer... «Como posso eu abandonar-te?», perguntava eu, desesperado, mas ele respondeu-me: «Não sejas parvo, capitão, faz o que tens de fazer. Vai, que a mim tanto se me dá. Foi o que te disse a velha Resham: vai-te embora, vai depressa!»

Peguei no Aadam e fui.

Final da viagem: da cave das criadas cegas, rumei para norte norte norte, com o filho ao colo; e cheguei finalmente ao sítio onde os lagartos abocanham as moscas, onde fervem as tinas e onde as mulheres de braços grossos dizem piadas obscenas; ao mundo das vigilantes de lábios finos e seios cónicos, ao universo onde os frascos tilintam na máquina de enchimento... E quem, no termo da viagem, me apareceu pela frente, de mãos nas ancas e os pelos dos braços húmidos da transpiração? Quem, direta como sempre, me perguntou: «Tu, patrão, que é que queres daqui?»

«Eu? – exclama Padma, excitada e pouco à vontade. – Sim, quem havia de ser? Eu eu eu!»

«Bom dia, begum – disse eu (e Padma atalha: «Ah, tu, cheio de delicadezas!»). – Bom dia, posso falar com a diretora?»

Padma, sinistra, teimosa, na defensiva: «É impossível, a diretora está muito ocupada. Só marcando, volta mais tarde, sai, faz o favor!»

Se querem que lhes diga, eu estava na disposição de ficar, de persuadir, de ser bruto, teria recorrido à força para passar a barreira dos braços de Padma; mas ouviu-se um grito na passarela – sim, Padma, esta passarela que fica defronte deste escritório! – passarela sobre a qual alguém, cujo nome eu ainda não quis dizer, observava as tinas e o chutney que fervia, alguém que veio logo a correr, fazendo grande barulho nos degraus de metal e gritando: «Oh meu Deus, meu Deus! Ai, Jesus Senhor! Baba, meu filho, deixa-me beijar-te, vem cá, toma bolo!»

Como eu suspeitava, a senhora diretora das Conservas Bragança e C.a, que dava pelo nome de Mrs. Bragança, era evidentemente a minha ayah de antigamente, Miss Mary Pereira, a única mãe que me restava neste mundo.

 

 

Meia-noite, mais ou menos. Um homem de guarda-chuva preto e novo caminha direito à janela; vem do lado da via férrea, para, agacha-se, caga. Vê depois o meu vulto recortado na janela iluminada e, em vez de se ofender com o meu voyeurismo, diz: «Olha-me para isto!» e deita para fora o maior cagalhão que já vi em toda a minha vida. «Quinze polegadas! – exclama. – De que tamanho são os teus?» Em tempos, quando me sentia com forças, desejei contar a história deste homem; a hora e o facto de ele ter um guarda-chuva seriam as conexões de que eu precisava para o relacionar com a minha vida, e acabaria certamente por demonstrar que ele era indispensável a quem quer que desejasse compreender a minha vida e a minha época de trevas; mas agora fiquei desnorteado, fora de mim, sem mais nada para escrever do que epitáfios. Acenando, pois, ao campião do cagalhão, respondo: «Sete polegadas, nos melhores dias», e esqueço-o.

Amanhã. Ou outro dia. As fissuras vão esperar até 15 de agosto. Falta ainda algum tempo. Amanhã acabarei.

 

 

Hoje fiz feriado e fui visitar Mary. Um trajeto de autocarro ronceiro e poeirento, ao longo de ruas que começam a animar-se, à espera do Dia da Independência, se bem que ao meu nariz cheguem perfumes mais anódinos: desilusão, venalidade, cinismo... Trinta e um anos passados, o mito da liberdade já não é a mesma coisa. São necessários outros mitos. Mas eu não tenho nada a ver com isso.

Mary Pereira, que agora se chama Mrs. Bragança, vive com a irmã Alice, agora Mrs. Fernandes, num apartamento do prédio róseo das mulheres de Narlikar, sobre a colina da altura de dois pisos onde outrora, num palácio hoje demolido, dormira numa esteira de criada. O quarto dela situa-se mais ou menos no cubo de ar onde o dedo estendido do pescador guiava o olhar da criança até ao horizonte; numa cadeira de balouço de teca, Mary embala o meu filho, cantando: «Velas Vermelhas ao Sol-Poente». As velhas vermelhas dos dhows recortam-se no céu distante.

Um dia bastante aprazível, recordando os velhos tempos. Um dia em que percebi que um antigo canteiro de catos tinha escapado à revolução das mulheres de Narlikar; pedi uma enxada emprestada ao mali e fui desenterrar um mundo há muito sepultado: um globo de metal que tinha dentro uma fotografia dum bebé, grande formato, roída pelas formigas, com a assinatura de Kalidas Gupta, e a carta do primeiro-ministro. E os dias a passarem: pela duodécima vez, conversámos sobre as mudanças que se deram na vida de Mary Pereira. Como devia tudo à sua querida Alice. Cujo infeliz Mr. Fernandes havia morrido por ser incapaz de ver as cores, porque o seu Ford Perfect se tinha enganado num dos raros sinais vermelhos da cidade. Como Alice a foi visitar a Goa e lhe disse que as patroas, as terríveis e empreendedoras mulheres de Narlikar, queriam aplicar o capital ganho com os tetrápodes numa fábrica de conservas. «Eu disse-lhes que ninguém fazia chutney como o da nossa Mary – disse Alice –, porque põe no que faz todo o seu sentimento.» Alice acabou assim por ser uma boa rapariga. E como é que eu ia adivinhar, baba, que todo o mundo queria comer as minhas pobres conservas, até a própria Inglaterra? E para aqui fiquei, no sítio onde era a minha querida casa, enquanto a ti te acontecia só-Deus-sabe-o-quê e te vias obrigado a mendigar, ai que vida, baapu-ré!

E outros lamentos agridoces: Ai, coitadinhos dos teus pais! A minha senhora, tão boa, morta! E aquele meu pobre patrão que não sabia a quem amava nem como! E até a Macaca... Interrompo-a, não, não está morta! Entrou para um convento onde come o pão do segredo.

Mary, que tinha roubado o nome da pobre rainha Catarina, a que deu estas ilhas aos britânicos, ensinou-me o segredo das conservas (no termo de toda uma educação que começou neste mesmo local; quando eu brincava na cozinha e ela ia misturando a culpabilidade com o chutney verde). Presentemente, está em casa, retirada na sua velhice de cabelos brancos, novamente feliz por ser ayah e ter um bebé para criar. «Agora que acabaste a escrita, baba, vais ter mais tempo para te ocupares do menino.» Mas é por ele que eu faço isto, Mary. E ela, ignorando a minha resposta, porque, na idade em que está, o espírito dá saltos de pulga: «Ó baba, baba, olha para ti, que velho que tu estás!»

Mary, mulher rica, que nunca sonhou ser tão rica, continua a não ser capaz de dormir numa cama. Mas bebe seis Coca-Colas por dia, sem se importar com os dentes, que, por sinal, já lhe caíram todos. Outro salto de pulga: «Porque é que tu queres casar assim tão, tão de repente?» Porque Padma quer. Não fica nada incomodada, porque havia de ficar, nas minhas condições? «Está bem, baba, perguntei por perguntar, só isso.»

Passou-se calmamente o dia, um dia crepuscular perto do fim, mas é então, com três anos, um mês e duas semanas, que Aadam Sinai deixa ouvir um som: «Ab...»

Arré, meu Deus! Escuta, baba, o pequeno disse qualquer coisa! E Aadam, esforçando-se: «Abba...» Pai. Está a chamar-me pai. Mas não, ainda não acabou, faz um esforço visível e, finalmente, o meu filho, que vai ter de ser mágico para conseguir defrontar o mundo que eu lhe deixo, termina a sua primeira palavra, uma palavra terrível: «... cadabba.»

Abracadabra! Mas não acontece nada. Não nos transformamos em sapos! Não entra pela janela nenhum anjo! O pequeno está só a exercitar-se. Não assistirei a nenhum milagre... Entre as congratulações de Mary pela façanha de Aadam, parto para junto de Padma, para a fábrica; a primeira e enigmática incursão do meu filho nos domínios da linguagem deixou-me nas ventas uma fragrância inquietante.

Abracadabra: não é palavra indiana, é uma fórmula cabalística derivada do nome do deus supremo dos gnósticos basílidas e contém em si o número 365, o número dos dias do ano, e dos céus, e dos espíritos que emanam do deus Abraxas. E pergunto a mim mesmo pela primeira vez: «Quem é que o rapaz imagina que é

 

 

As minhas receitas especiais: estão postas de lado. Valor simbólico das conservas: os seiscentos milhões de ovos que deram origem a toda a população da Índia caberiam dentro dum único frasco de conserva; seiscentos milhões de espermatozoides caberiam numa colher. Cada frasco de conserva (desculpem lá os floreados a que vou recorrer) contém assim a mais exaltante de todas as possibilidades: a viabilidade da chutneyficação da história; a esperança da compotificação do tempo! No meu caso, enfrasquei capítulos. Esta noite, ao rolhar energicamente um frasco com a etiqueta Fórmula Especial n.o 30, cheguei ao fim da minha longa autobiografia: em palavras e em conserva, imortalizei as minhas recordações, ainda que, num como noutro método, seja inevitável a distorção. Temos de viver, receio bem, com as sombras da imperfeição.

Hoje estou a substituir Mary à cabeça da fábrica de conservas. Alice (Mrs. Fernandes) tem a seu cargo a contabilidade; eu tenho a responsabilidade pelos aspetos criativos do trabalho realizado.

(É evidente que perdoei a Mary o seu crime; preciso de tantas mães como de pais e não se pode acusar uma mãe.) Entre a mão de obra totalmente feminina das Conservas Bragança, sob o piscar incessante da luz amarelo-açafrão e verde da Mumbadevi de néon, escolhi mangas tomates limões dos cestos que pela manhã as mulheres trazem à cabeça. Mary, com o seu antigo ódio aos homens, não aceita nenhum a não ser eu no seu confortável universo... Eu e, evidentemente, o meu filho. Quanto a Alice, desconfio que terá sempre tido as suas pequenas ligações; Padma, essa, apaixonou-se por mim, porque viu em mim um enorme reservatório onde podia despejar a sua solicitude durante tanto tempo recalcada; das outras não quero falar, mas, na fábrica, a extraordinária competência das mulheres de Narlikar reflete-se na enérgica dedicação das que mexem as misturas nas tinas.

O que é preciso para fazer os chutneys? Matérias-primas, evidentemente: frutas, legumes, peixe, vinagre, especiarias. Vindas diárias das mulheres dos koli de sari arregaçado. Pepinos beringelas menta. Mas também: olhos, azuis como o gelo, que não se deixem enganar pelo aspeto tentador e superficial das frutas, que vejam a corrupção sob a casca dos citrinos; dedos que, leves como penas, sejam capazes de apalpar o coração inconstante dos tomates verdes; e, acima de tudo, um nariz capaz de decifrar as linguagens ocultas do que-deve-ser-conservado, o seu humor, as suas mensagens, as suas emoções... Nas Conservas Bragança, sou supervisor da produção das receitas lendárias de Mary... Mas há também as minhas receitas especiais, onde, graças aos poderes das minhas fossas nasais secas, posso incluir recordações, sonhos, ideias, de modo a que, uma vez entradas na produção em massa, todo o consumidor saiba qual o guisado picante que obrou grandes façanhas no Paquistão e o que se sentia nos Sundarbans... Quer creiam, quer não creiam, é verdade. Trinta frascos esperam numa prateleira pela hora de serem postos à disposição da nação amnésica.

(E, ao lado deles, continua um frasco vazio.)

A supervisão é constante e sem fim; não julguem que estou satisfeito com o que fiz! Alguns dos meus motivos de inquietação: um gosto demasiado ácido nos frascos que contêm recordações do meu pai; uma certa ambiguidade no aroma amoroso da «cantora Jamila» (fórmula especial n.o 22), o que poderá levar as pessoas pouco sensíveis a concluírem que inventei toda a história da troca de bebés para justificar um amor incestuoso; algumas coisas pouco plausíveis no frasco intitulado: «Acidente numa mala de roupa suja»: o tempero coloca problemas sem solução satisfatória, como por exemplo: porque tem Saleem necessidade de um acidente para adquirir os seus poderes? Muitos dos outros miúdos não precisaram... E no caso de «Rádio Índia» e outros, há notas discordantes no equilíbrio dos temperos: deveria a confissão de Mary constituir surpresa para um telepata? Por vezes, na versão conservada da história, Saleem aparece como se ignorasse muita coisa; outras vezes, sabe de mais... Sim, eu devia rever uma e outra vez, melhorar mais e mais; mas falta-me o tempo e a energia; não tenho para tudo isso resposta melhor do que esta: tudo se passou desta maneira porque foi desta maneira que tudo se passou.

Há o problema das especiarias. A complexidade do açafrão e do cominho, a subtileza do feno-grego, em que altura se deita o cardamomo; os múltiplos efeitos possíveis do alho, do garam masala, da canela, do coriandro e do gengibre... não falando já dos contributos perfumados e ocasionais duma gota de esterco (Saleem já não tem a obsessão da pureza). Graças às especiarias, reconcilio-me com as inevitáveis distorções do processo de conservação. Conservar é, afinal de contas, dar imortalidade; peixe, legumes, frutas são embalsamados em especiarias-e-vinagre; uma certa alteração, uma ligeira intensificação do gosto não tem nada de grave. Toda a arte está em modificar o sabor em grau e não na natureza; e, acima de tudo (nos meus trinta e um frascos), dar-lhe forma, ou seja, sentido. (Já referi o meu terror do absurdo.)

Talvez um dia o mundo prove as minhas conservas de história. Elas poderão ser demasiado fortes para alguns paladares, os cheiros poderão ser demasiado ativos, poderão vir as lágrimas a alguns olhos; mas espero que delas se possa afirmar que têm o gosto autêntico da verdade... que são, apesar de tudo, atos de amor.

***

Um frasco vazio... como terminar? Em felicidade, com Mary na cadeira de teca e com o meu filho a dizer as primeiras palavras? Entre receitas e trinta frascos cujos rótulos são títulos de capítulos? Melancolicamente, entre a recordação de Jamila, de Parvati, ou mesmo de Evie Burns? Ou com os garotos prodigiosos... mas, nesse caso, poderei mostrar o contentamento por alguns se terem salvado ou terem acabado tragicamente sob os efeitos desintegrantes da secagem? (Porque é na secagem que têm origem as fissuras: o meu pobre corpo pulverizado, ressequido de alto a baixo, começou a abrir fendas depois de ter secado. Cedeu finalmente aos efeitos de toda uma vida de golpes duros. E agora há gretas lágrimas rangidos e das gretas vem um cheiro que deve ser o da morte. Controlo: tenho de me controlar enquanto for possível.)

Ou fazendo perguntas: agora que vejo (juro-o) as fendas nas costas da mão e entre os dedos dos pés, porque é que não sangro? Estarei assim tão esvaziado, desidratado, conservado? Serei já a múmia de mim próprio?

Ou sonhando: é que na noite passada apareceu-me o fantasma da Reverenda Mãe, que me observava através do buraco de uma nuvem, à espera da minha morte para poder chorar uma monção de quarenta dias... e eu, flutuando fora do corpo, olhei para a imagem de mim mesmo e vi um anão de cabelos cinzentos que em tempos no espelho mostrava uma expressão de alívio.

 

 

Não, assim não, é necessário que eu escreva o futuro como já escrevi o passado, que registe por escrito com a certeza absoluta dum profeta. Mas o futuro não pode ser conservado dentro dum frasco; há um frasco que terá de continuar vazio... O que não pode ser conservado porque ainda não aconteceu é isto: tenho de fazer os meus trinta e um anos, casar-me, é inevitável, Padma terá de ser ilustrada com traços de hena nos pés e nas mãos, e receber um nome novo, talvez Naseem em homenagem ao espírito observador da Reverenda Mãe, e do lado de lá da janela haverá fogos de artifício e juntar-se-á a multidão, porque é Dia da Independência e a turbamulta das múltiplas cabeças invadirá as ruas, e Caxemira terá de esperar. Com os bilhetes do comboio no bolso, entrarei num táxi guiado por um rapaz do campo que em tempos sonhava no Café do Pioneiro ser vedeta de cinema, seguiremos para sul sul sul rompendo pelo meio da turba tumultuosa, as pessoas atirarão bexigas de tinta umas às outras, por sobre as janelas fechadas do táxi, como na festa da tinta de Holi; e ao longo da Hornby Vellard, onde deixámos morrer uma cadela, a multidão, a multidão compacta, a multidão sem limites, que alastra a pontos de ocupar todo o mundo, tornará impossível o avanço, sairemos do táxi e abandonaremos os sonhos do motorista, a pé pelo meio da multidão e, é verdade, sim, serei separado de Padma, a minha lótus da bosta estenderá a mão para mim no meio dum mar revolto, até se sumir entre a multidão e lá fico eu sozinho na imensidão, na imensidão que caminha, um dois três, recebo cotoveladas à esquerda e à direita e as gretas lágrimas fendas atingem o clímax, e o meu corpo uiva, já não suporta tratos destes, mas vejo agora entre a multidão caras conhecidas, cá estão eles, todos, o meu avô Aadam e a mulher Naseem, e Alia e Mustapha e Hanif e Emerald e Amina que foi Mumtaz e Nadir que viria a ser Qasim e Pia e Zafar que mija na cama e também o general Zulfikar, comprimem-se todos à minha volta, empurram amontoam-se e as fendas abrem-se mais, cai-me o corpo aos bocados, lá está Jamila que saiu do convento para estar presente neste dia derradeiro, anoitece anoiteceu, começa a contagem decrescente pelo tiquetaque até ser meia-noite, fogos de artifícios e estrelas, vultos recortados de lutadoras, vejo que nunca mais vou chegar a Caxemira, como Jehangir o imperador mogol, vou morrer com Caxemira nos lábios, incapaz de ver o vale das delícias onde os homens vão para gozarem a vida ou para a terminarem ou ambas as coisas; porque estou agora a ver outras caras no meio da multidão, a cara terrível dum herói de guerra de joelhos mortíferos, conseguiu descobrir como lhe furtei o direito de nascimento, abre passagem entre a multidão toda composta de caras conhecidas, Rashid condutor do riquexó de braço dado com a rani de Cooch Naheen, e Ayooba Shaheed Farooq mais o belo Mutasim e vindo duma outra direcção, da ilha onde se encontra a tumba de Haji Ali, vejo erguer-se uma aparição mitológica, o Anjo Negro, mas, ao aproximar-se de mim, tem a cara verde, os olhos pretos, uma risca ao meio, cabelos verdes à esquerda, pretos à direita e uns olhos que são os olhos das Viúvas; Shiva e o Anjo aproximam-se aproximam-se, ouço mentir no escuro, podes sâr o que tu quiseres sâr, a maior de todas as mentiras, mais fendas, Saleem fende-se, sou a Bomba de Bombaim, vejam-se explodir, ossos que rebentam quebram sob a pressão horrível da multidão, um saco de ossos caindo caindo caindo, como outrora em Jallianwala, mas Dyer parece não estar presente, não há mercurocromo, há apenas uma criatura esmagada a deixar-se cair aos bocados pela rua, porque fui tantas pessoas, pessoas de mais, diferentemente da sintaxe a vida permite ser mais de três e por fim algures o badalo dum relógio bate as doze pancadas, libertação.

Sim, vão espezinhar-me, os números marcham, um dois três, quatrocentos milhões quinhentos seiscentos, fico reduzido a grãos de pó sem voz, exatamente como antigamente, pisarão o meu filho que não é meu filho e o dele que não é filho dele até à milésima primeira geração, até que as mil e uma meias-noites libertem os seus dons terríveis e morram os mil e um filhos, porque é privilégio e maldição dos filhos da meia-noite serem a um tempo senhores e vítimas da sua época, abandonarem a intimidade e serem completamente sugados pelo turbilhão esmagador das multidões e não poderem viver e morrer em paz.

7 Os nomes originais do Clube Confidencial Meia-Noite, do Grupo de Lobitos e da Aliança dos Filhos da Meia-Noite eram, respetivamente, Midnite-Confidential Club, Metro Cub Club e Midnight-Children’s Conference. (N. do T.)