sete

O quartel das Investigações, a polícia criminal chilena, ficava à frente de um edifício de tijolos vermelhos que começara a ser demolido. Era a antiga prisão, uma demonstração arquitectónica do barroco turinês à moda chilena que, nos seus tempos de cadeia, nada teve a invejar a Alcatraz como universidade do delito.

Do seu gabinete, o inspector Crespo via chover rogando por uma aberta quando amanhecesse, mas o boletim meteorológico previa mais chuva para Santiago e ele não pôde evitar um sorrisinho ao pensar que nos bairros proletas, a essa mesma hora, os desavergonhados do costume estariam a entupir as sarjetas com lixo. Dessa forma, as ruas transformar-se-iam em rios caudalosos e os próprios herdeiros da maldita picaresca trazida pelos conquistadores estariam nas esquinas, vestidos com impermeáveis de plástico e botas de borracha, oferecendo-se como cavalos que, em troca de alguns pesos, passavam de um passeio para o outro os cidadãos que não queriam molhar-se. Uma vez repreendeu uns sujeitos que tapavam os esgotos e imputou-lhes essa acção delituosa.

Os tipos não se alteraram, alegaram que isso se chamava liberdade de mercado e continuaram com a missão de fazer de Santiago uma réplica triste de Veneza.

Nesse momento entrou Adelita Bobadilla, a detective orgulhosa de fazer parte do primeiro curso de polícias com as mãos limpas, daqueles que em 1973 ainda não tinham nascido ou eram novos de mais para serem torturadores e aliados do narcotráfico. Vinha a pingar, tirou o impermeável de oleado azul, pendurou-o perto do aquecedor e ao o que se anda a cozinhar por aí do inspector respondeu estendendo-lhe algumas folhas.

– Lê tu, tens uma voz bonita e quando chove gosto que me contem histórias – ordenou o inspector.

– Temos um morto encontrado na via pública. Varão de uns setenta anos, um metro e oitenta de estatura, 95 quilos, vestia calças pretas, camisola preta, casaco preto também e estava descalço.

– Estava descalço ou encontraram-no sem sapatos?

– Não sei, inspector. Apresentava uma ferida na cabeça feita por um objecto contundente e de arestas afiadas, com fractura do parietal direito; a perda de massa encefálica e a hemorragia são as possíveis causas do óbito. Não trazia nenhum documento que permitisse a sua identificação, mas a análise das impressões digitais deu resultado positivo.

– O único resultado positivo possível seria esse pobre tipo continuar vivo.

– Trata-se de Pedro Nolasco González – informou a detective que, ao ver a expressão paralisada do inspector, interrompeu o seu relatório. Conhecia aquela expressão de gato alerta.

– Pede um carro-patrulha e veste novamente a farda de estrumpfe. Vamos à morgue – ordenou o inspector.

O calor do carro-patrulha convidava a refastelar-se e a pedir ao condutor que os levasse a qualquer parte, sob a chuva. A detective esperava que o inspector abrisse a boca, pois a expressão enrugada indicava que a mioleira estava a trabalhar a todo o vapor.

– Suponho que viste o cadastro.

– Sim, inspector. Mas não sei se se pode chamar cadastro àquilo. É uma longa lista de denúncias e condenações ligeiras por delitos menores, estranhos, inusuais. A última coisa que temos acerca dele é que em 1982 atacou uma criação de visons na Patagónia, soltou dois mil e tal exemplares avaliados em várias centenas de milhares de pesos, animais que se misturaram com a fauna local e perderam todo o seu valor. A denúncia foi feita por uns peleiros parentes do general Arellano.

– E todo o Chile se partiu a rir quando soube. Como tu és tão jovem, Adelita, e te ensinaram História com base num folheto de duas páginas, desconheces que durante o governo militar, o regime autoritário, como dizem aqueles que desterraram a palavra ditadura do dicionário, Pinochet ofereceu o país a um genro, um delinquente com apelidos que soam a xarope para a tosse, Ponce Leroux, como recompensa por se ter casado com a sua filha mais tonta. Nada disso é novo, em todos os países se premeia aqueles que aguentam a prole estúpida dos manda-chuvas. A que propósito seriam diferentes os chilenos? O genríssimo é hoje um dos homens mais ricos do mundo, fez fortuna comprando a preço de banana as indústrias nacionais, que mais tarde vendeu com lucros que nunca serão conhecidos. Deve ser duro dormir agarrado às pernas peludas de uma tonta, de modo que, em compensação, recebeu os bosques do Sul e os transformou em aparas. Um belo dia, um punhado de oficiais preocupados com os preços das peles que as suas mulheres compravam nas lojas de Miami, encarregou-o de impulsionar a produção chilena de peles finas.

Importaram-se vários milhares de visons canadianos que foram colocados numas quintas da Patagónia. Mas não contaram com os coelhos patagónios, uns tarados sexuais que montam qualquer bicho que se mexa. Desta forma, a espécie degenerou, nasceram uns visons com orelhas compridas e um pompom no rabo que se transformaram numa praga e que foi preciso exterminar a tiro. Eu tinha-lhe dado uma medalha – ponderou o inspector.

– Em 1998 foi denunciado por atentar contra as produções de salmão de Puerto Aysen.

– Outro acto mais meritório de reconhecimento que de castigo. Sabes porque é tão caro o peixe? Porque os nossos economistas entregaram os fiordes austrais a empresas estrangeiras. Para produzir um quilo de salmão, além das hormonas e dos corantes, são necessários oito quilos de peixe transformado em alimento que nós, país generoso e líder da liberdade de mercado, damos gratuitamente. Nunca foi provado que ele estivesse com o grupo ecologista que explodiu uns diques e deixou fugir vários milhares de salmões.

– O mais estranho é que ainda existe um mandado de captura de 1971, mas não se indica o delito nem se já prescreveu – comentou a detective.

– Tu nasceste em 73, não é verdade, Adelita?

A detective assentiu e o inspector juntou as mãos, como os avós que se dispõem a contar uma história de Pedro Urdemales1.

– Três anos antes de vires ao mundo, Salvador Allende ganhou as eleições presidenciais e, um ano mais tarde, em Junho de 71, uma organização meio anarquista, meio lúmpen, chamada Vanguarda Organizada do Povo (VOP), assassinou um ex-ministro do governo anterior, Edmundo Pérez Zujovic que, por sua vez, era responsável por um massacre em que morreram mulheres e homens em Puerto Montt. Tinham ocupado ilegalmente uns terrenos para erguerem aí as suas barracas e terem um lugar onde passar o Inverno do Sul, que é de um frio pérfido. Nessa altura eu era um jovem como tu, um fedelho acabado de sair da Escola de Detectives. De cima chegou uma ordem: encontrá-los e matá-los a todos. Quem deu a ordem? Isso a história acabará por revelar, no dia em que os chilenos deixarem de ser uns desgraçados com medo do seu próprio passado. Os assassinos eram dois rapazes de apelido Rivera Calderón. Primeiro encontraram uma irmã deles e torturaram-na até ter denunciado os irmãos. Depois foram atrás deles e liquidaram-nos. Passadas algumas semanas, outro militante da VOP, um homem já velho chamado Heriberto Salazar Bello, aproximou-se do quartel de Investigações carregado de explosivos sob o sobretudo. Esperou pela mudança de turno e voou pelos ares.
A explosão matou três detectives que entravam ao serviço. O caso foi encerrado com um fugitivo, Pedro Nolasco González, mas nunca houve provas que o relacionassem indubitavelmente com o crime do antigo ministro.

– E porquê, nesse caso, o mandado de captura? – perguntou a detective.

– Porque somos um país rancoroso. O avô de Pedro Nolasco González, que também se chamava Pedro, assaltou um banco em 1925 juntamente com três anarquistas espanhóis.

– O famoso assalto ao Banco do Chile, o primeiro crime desse tipo que se cometeu no país?

– Sim, Adelita, mas com um matiz. O primeiro assalto a um banco na História do Chile foi cometido por uns bandidos yankees em Punta Arenas. A 20 de Dezembro de 1905, Etta Place, Butch Cassidy e Sundance Kid assaltaram o Banco de Londres y Tarapacá, levando um saque de cem mil pesos em ouro. O tempora, o mores! – exclamou o inspector.

O cadáver do veterano estava numa mesa de autópsias em aço, coberto com uma lona verde. Tinham-lhe prendido uma etiqueta ao dedo grande do pé direito, que o inspector leu antes de levantar a lona.

– Que coisa, Pedrito. Olha que acabar assim, com todas as tuas ideias a fugir por um buraco… – murmurou o inspector. – O que achas, Adelita?

– Bom, é evidente que a pancada o matou.

– Adelita, este homem media um metro e oitenta e apesar da idade tinha uma presença imponente. Para lhe dar uma pancada tão contundente o assassino tinha de medir obrigatoriamente mais de dois metros e neste país não abundam os jogadores dos Lakers. Inclino-me mais para uma morte acidental, um vaso que caiu, por exemplo. Encontraram restos de qualquer coisa junto do corpo?

– Não, inspector, mas uns moradores que vivem justamente na rua onde foi encontrado denunciaram um roubo de electrodomésticos.

O inspector pediu uma lupa e examinou demoradamente a ferida. Depois pediu uma pinça, esgaravatou com ela a parte de trás da orelha direita do morto e extraiu uma fina lâmina de metal.

– Gostas de ouvir música, Adelita?

– Sim, inspector. Nos meus tempos livres, claro.

– E ouves como?

– Bem, tenho um leitor de CDs e também um MP3.

– Apresento-te um bocado de arqueologia musical. Uma agulha de gira-discos.

A detective guardou o objecto num saquinho de plástico e quis saber o que fariam a seguir.

– O mais sensato é procurar um lugar onde nos sirvam uma boa chávena de chá e umas sopaipillas pasadas. Está a chover e é o mais aconselhável nestes casos.

A detective soube então que a noite ia ser muito longa.

1 Pedro Urdemales – Personagem da mitologia popular da América Latina, particularmente no Chile, que representa o típico pícaro e espertalhão. (N. do E.)