dez

C oncepción García tinha a boca seca e o paladar meio adormecido devido à aguardente.
Suspirava por um copo grande de
Schorle, aquela mistura feliz de cerveja e limonada, tão boa para curar as ressacas.

O aroma do café acabado de fazer conseguiu reanimá-la um pouco e só então se apercebeu de que a rapariga vestida com um colete azul-escuro em cujas costas se lia a palavra INVESTIGAÇÕES era real, como também o era o homem que, com uma expressão divertida, a observava sentado na outra ponta da mesa.

– Como se sente, minha senhora? – perguntou o homem.

A mulher bebeu um gole de café e quis saber do marido.

– Não sabemos onde está. Batemos, a senhora abriu-
-nos a porta, ofereceu-nos um copo e depois caiu como um saco de batatas, se me permite a expressão. A detective Bobadilla conseguiu reanimá-la. Sou o inspector Manuel Crespo e tenho de lhe fazer algumas perguntas.

A mulher recordou que o marido tinha mencionado qualquer coisa sobre polícias bons e maus.

– Então pergunte.

– Há duas horas, a senhora e o seu marido foram à esquadra participar um roubo de electrodomésticos. Que objectos roubaram os gatunos?

– O meu marido é que sabe, foi ele quem fez a lista.

– E receio bem que a senhora ignore o paradeiro do seu marido. Minha senhora, à primeira vista vejo uma cafeteira eléctrica, uma torradeira, um microondas, um televisor e um vídeo, que são as coisas que os gatunos roubam habitualmente. Repito, o que roubaram?

Scheisse – murmurou a mulher.

– Merda, em alemão. Não, senhora, os larápios não roubam merda – insinuou o inspector.

A mulher apoiou os cotovelos na mesa e levou as mãos à cabeça. Fechou os olhos com força, aquele maldito truque alguma vez teria de resultar e fazê-la desaparecer.

Sentiu a mão da detective no ombro, abanando-a com suavidade, sem apertar.

– O que aconteceu na rua? – perguntou a detective.

Concepción García abriu os olhos, olhou para a superfície escura do café, viu-se numa manifestação juntamente com milhares de pessoas que gritavam em coro palavras de ordem repletas de confiança, viu as bandeiras vermelhas do Partido Comunista, as bandeiras vermelhas socialistas, as vermelho e pretas do MIR1 e lá atrás, quase no fim da manifestação, um jovem levando um cartaz descomunal com a imagem de um gordinho risonho que lhe era desconhecido. Viu-se a si própria a aproximar-se e ouviu o eco da sua ingenuidade perguntando quem era o gordinho. «É o Presidente Mao, o Grande Timoneiro», tinha respondido o jovem, apresentando-se seguidamente como Jorge, Coco para as amigas, e convidando-a para um reconfortante copo de mote con huesillos2 no fim da manifestação. Viu-se cativada por aquele tipo que estava contra tudo e para quem aqueles cem mil que se manifestavam não passavam de marionetas do social-imperialismo soviético, pequeno-burgueses essencialmente contra-revolucionários ou lúmpen. Um tipo capaz de proferir insultos tão pouco habituais cativava, e ela, operária da fábrica têxtil Vestex, achou que era um sujeito divertido.

Pelo ecrã escuro do café viu passar, impetuosa, a sua vida, o romance curto, o casamento, a decepção da família ao vê-la casada com um meia-leca que resistiu ao casamento católico argumentando que a religião era o ópio do povo e que transformou a cerimónia do registo civil, já de si triste, numa espécie de festividade a meio caminho entre amish e congresso de ascensoristas, porque levou as suas testemunhas rigorosamente vestidas de igual, com uns casacos fechados até ao pescoço e o missal vermelho Sobre o Tratamento Correcto das Contradições no Seio do Povo encostado ao peito como um seio rubro. Mas também perdeu a esperança de que algum dia Coco deixasse de ser um energúmeno, sobretudo quando às insinuações sobre a necessidade de procurar um trabalho, respondia brandindo um caderninho vermelho com capas de plástico que de longe parecia um livrinho de primeira comunhão, embora o título revelasse que eram as Cinco Teses Contra o Liberalismo. Pela chávena de café passaram, uma por uma, todas as suas colegas da fábrica, implacáveis nos argumentos deste teor: «Aonde foste buscar esse maoista de merda?», «qual quadro político, qual carapuça! Alergia ao trabalho é o que tem», «eu no teu lugar há que tempos lhe tinha dado um pontapé no rabo».

O café espessou-se na chávena quando as imagens do golpe de Estado deram lugar a um Coco Aravena empenhado em justificar o governo chinês, que fechou a sete chaves as portas da sua embaixada para que nenhum chileno procurasse asilo entre as paredes da casa do Grande Timoneiro. Pela chávena passaram mortos flutuando nas águas mais densas e escuras do rio Mapocho, cadáveres de dirigentes sindicais da fábrica crivados de balas à porta da própria fábrica em horas de recolher obrigatório, até o rosto desdentado de uma vizinha a avisar que fosse para casa a correr porque o marido estava ao telefone. «Estou na embaixada alemã, já não resisto à repressão», foi o que lhe disse o cônjuge, tendo ela respondido «pelo amor de Deus, Coco, mas se a ti ninguém te persegue…». E finalmente viu com toda a nitidez o seu longínquo apartamento de Kreuzberg, numa Berlim definitivamente perdida.

– Eu matei-o – disse Concepción García.

A detective Adela Bobadilla e o inspector Crespo entreolharam-se. Sabiam ambos que a confissão de um crime sobre o qual não tinham inquirido carecia de credibilidade, ainda mais vinda da boca de uma mulher acordada no melhor da ressaca.

– Beba o seu café, minha senhora. Se quiser aqueço-o um pouco – propôs a detective, mas a mulher afastou a chávena.

– Não, acabemos com isto quanto antes. Eu matei-o. Coloquem-me as algemas.

– Minha senhora, vamos por partes. Quem diabo matou? – perguntou o inspector.

Então Concepción García fez uma descrição bastante coerente e pormenorizada de uma vida frustrada pelas dívidas, pela ausência de esperança e pela indolência de um marido que – conforme compreenderam os dois polícias – passou de um radicalismo político extinto nos anos oitenta, para uma vida entregue à sétima arte na condição de espectador doméstico.

À medida que avançava no seu relato, a mulher ia serenando, e foi assim que os levou ao quarto para que vissem a janela de vidros partidos, coberta por um cobertor que já começava a pingar, e daí ao móvel onde fora buscar os objectos atirados à rua.

– Sei que não serve de nada, mas foi sem querer. Nunca fiz mal a ninguém e agora sou uma assassina – foi a última coisa que disse.

– Beberia com muito gosto um cafezinho – sugeriu o inspector, sentindo vontade de falar da chuva, porque chove para isso, para dizer que antigamente, sim, chovia, lembram-se dos temporais de 62?, mas preferiu deitar duas colheres de açúcar, mexer com movimentos lentos e pensar como é fácil cruzar a linha entre a vida e a morte. À sua memória chegou um facto aparentemente motivado pelo descuido e que ceifou duas vidas. Um condutor virou à esquerda numa rua e deu de caras com uma carrinha que, segundo ele, vinha em contramão. O choque tinha sido ligeiro e, no entanto, bastou para que uma faísca fosse parar ao depósito de gasolina tapado com uns trapos. A explosão e o incêndio matou os dois ocupantes da carrinha, o condutor do veículo causador da tragédia fugiu, entregando-se poucas horas depois.

Era um retornado do exílio, um homem que tinha vivido quinze anos em Praga e em sua defesa alegava que os factos tinham ocorrido no seu bairro, que toda a vida aquela rua ia de norte a sul e que não sabia quando tinha mudado de sentido. Os que voltavam do exílio andavam desorientados, a cidade não era a mesma, procuravam os seus bares e encontravam lojas de chineses, na farmácia da sua infância havia um bar de topless, a velha escola era agora um concessionário de automóveis, o cinema do bairro uma igreja dos irmãos pentecostais. Sem os avisarem, tinham-lhes mudado o país.

– A senhora não é uma assassina. Foi um facto acidental, bastante imprudente, com certeza, embora, se nos disse toda a verdade, e acreditamos que o tenha feito, estivesse cega de fúria – disse o inspector.

– Mas vão prender-me, não é verdade? – perguntou a mulher.

– Não. O que ganharíamos com isso? Além disso continua a chover a cântaros. A senhora ficará aqui, sossegadinha, e amanhã às oito da manhã apresenta-se na sede de Investigações. Leve umas mudas de roupa, produtos de higiene, algum livro, porque talvez a tenhamos de deter sob a acusação de imprudência temerária resultante numa morte. Terá de passar uns dias presa até o tribunal estipular a fiança. E agora temos de falar com o seu marido.

Concepción García ignorava o paradeiro do cônjuge. Referiu os dois locais que costumava frequentar, o clube de vídeo e o cibercafé do centro comercial, que àquelas horas da noite já estavam fechados.

Os polícias fizeram tenções de se ir embora e nesse momento viu-se debruçada na janela partida enquanto o cônjuge examinava o morto. Voltou ao quarto e levantou o colchão.

– Há uma coisa que não disse. O morto tinha uma arma de fogo, o meu marido guardou-a aqui e já cá não está.

Adelita Bobadilla recordou o primeiro dia de trabalho junto do inspector Crespo. Enquanto a instruía em assuntos gerais, mencionou que trabalhava com calma, que o seu único método era a calma porque dessa forma os imponderáveis não o imobilizavam. E que não existia nenhuma investigação a salvo dos imponderáveis.

– Minha senhora, tem telefone em casa? – perguntou.

A mulher assentiu com a cabeça e Adelita escreveu-lhe o número do seu telemóvel.

Antes de pôr em marcha o carro-patrulha, deixou que o inspector se descontraísse. O dilúvio continuava sobre Santiago, os relâmpagos rasgavam a noite e o timbale dos trovões abanava os candeeiros de iluminação pública.

– A primeira pergunta é: o que fazia Pedrito com aquele canhão? A segunda é: o que faz agora o nosso marido extraviado com a arma? Uma vez li um romance policial estupendo, de Chester Himes, intitulado Um Cego com uma Pistola e gostei tanto que o reli várias vezes. Esperemos que o Marido Armado não o supere – murmurou o inspector.

– Qual é o passo seguinte? – perguntou a detective.

– Vamos procurar homens com cara de casados.

1 MIR: Movimento de Izquierda Revolucionaria. (N. da T.)

2 Refresco não alcoólico muito popular no Chile, feito à base de trigo pilado e de pêssegos secos. (N. da T.)