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— Tira isso, por favor.

— O rádio?

— Sim, desliga-o.

— Mas agora vão dar as notícias.

— Precisamente por isso.

Estavam os dois sentados na cozinha, cada um numa banqueta de madeira. No canto havia uma prateleira, e sobre ela um aparelho de rádio da marca Invicta que parecia ter alguns anos. Lola estava mesmo debaixo dele e Matías no extremo oposto da mesa, a enrolar um cigarro de tabaco a granel. A cozinha era pequena, estreita. De um lado havia uma chapa de carvão flanqueada por meio metro de pequenos azulejos brancos, e por baixo alojavam-se o depósito de água quente e um lava-louça de granito não muito fundo. Do outro lado, encostada contra a parede, estava a mesa na qual Matías e Lola acabavam de comer. Entre uma parede e outra havia pouco mais de meio metro.

— Então não sei para que é que temos um rádio, se depois não o podemos ligar.

Matías não respondeu. Encostou-se contra os azulejos e acendeu o cigarro que acabava de enrolar.

— Os meus pais pagaram quase mil pesetas por ele — insistiu Lola enquanto levantava os pratos e no rádio começava a soar a sintonia do noticiário —, e agora não posso ouvir as notícias.

Uma voz empolada de homem estava a recitar o telex da agência oficial do regime. Fazia-o com tanta ênfase que parecia uma leitura teatral.

«Sua Excelência o Generalíssimo Franco encontra-se em visita à província de Badajoz. Ali inspecionou as magnas realizações do Instituto Nacional de Colonizaciones. Na zona do Montijo, inaugurou uma barragem e visitou duas novas aldeias que significaram a transformação de oito mil hectares, com a compra e parcelamento de sessenta e dois prédios, onde se estabelecerão um total de cinco mil novecentas e uma famílias.»

Matías fez um gesto com a mão, indicando algo que parecia flutuar no ambiente.

— Não são notícias, Lola. É a propaganda deles.

Lola secou as mãos no avental e desligou o rádio. Um silêncio triste apoderou-se da cozinha.

Sem dizer uma única palavra, ela deixou-se cair na banqueta. Parecia resignada. Tinham passado doze anos desde o final da guerra e as coisas pouco tinham melhorado. Estavam sozinhos, rodeados de mentira, repressão e medo. Por isso Lola gostava de ter o rádio ligado, porque ouvia música, e não só notícias ou novelas. Às vezes tinha a sorte de ouvir um lied de Schubert e outras uma copla de Concha Piquer, e isso enchia a sua mente de imagens reconfortantes.

— Não sei o que achas, mas eu já não posso ouvir nem mais uma palavra sobre essa maldita lei do Foro dos Espanhóis — acrescentou Matías com amargura. — Hoje não consigo, a sério.

Lola preparou um púcaro de café com a chicória que restava no pacote. Coou-o com a manga cujo tecido estava cosido ao aro com uns pontos de barbante. As chávenas de louça também estavam lascadas, e uma não tinha uma parte da asa. De repente desatou a chorar. Sem o conseguir evitar. Com a manga do café numa mão e a outra apoiada nos pequenos azulejos quentes.

— Mas, rapariga — exclamou Matías consternado —, não fiques assim. A sério. Não sabia que ter o rádio ligado ou não fosse tão importante para ti.

Tinha-se aproximado e agarrou-a pelos ombros. Lola não se virou; continuou a chorar em silêncio enquanto Matías a abraçava por trás. Algum tempo depois endireitou-se e limpou o nariz com o lenço que levava no bolso do avental.

— Vá, mulher. Anima-te.

Virou-se e tentou sorrir. Matías olhou-a muito sério.

— Mas o que tens? Porque foi isso?

Ela encolheu os ombros.

— Não sei — disse. — Há dias em que tudo me parece horrível.

Matías acariciou-lhe o cabelo. Ela deixou-se consolar e, de seguida, o seu olhar ficou repentinamente crispado e virou o rosto.

— Tiraram-nos tudo, não percebes? — disse com a voz quebrada de quem precisa de desabafar. — A editora, a casa da tua mãe, os móveis, os amigos…

Tinha-se exaltado e voltava a chorar. Matías não gostava de a ver assim.

Fez uma pausa. Não conseguia continuar a enumerar tanto espólio. Sentia que tudo na sua vida requeria um esforço esgotante.

— Sabes o que é que eu tenho? — disse abrindo as mãos no ar, como se fosse mostrar um segredo guardado há muito tempo. — Tenho saudades da vida quando era nossa.

Matías achou que era uma frase demolidora, mas muito própria dela. No fundo, por debaixo do pesar, sentiu o orgulho que sempre tinha tido por esta mulher corajosa, esperta e cheia de entusiasmo que hoje parecia prestes a render-se.

— Pois — aceitou aproximando-se de novo da mesa para pegar no cigarro que se estava a consumir antes de cair na toalha. — Às vezes eu também fico desesperado. — Pegou no pacote do tabaco e meteu-o no bolso. — Mas, olha — disse com um tom mais animado, que certamente não era real, mas por um instante pareceu —, não vou permitir que nos estraguem o dia.

Lola inclinou a cabeça.

— O que queres dizer com isso? — murmurou tão baixinho que quase não conseguiu ouvir-se a ela própria.

— Tira o avental. Hoje vamos tomar o café fora. E depois vens comigo para a loja.

— Ao domingo?

— Sim, só duas horas — respondeu Matías esmagando a ponta do cigarro no cinzeiro de estanho. — Quero mudar a montra antes de abrir amanhã.

Lola lavou a cara no lava-louça. Depois sentiu-se melhor, mais animada.

— Mas vamos tomar aqui o café, preparo-o num instante — disse enquanto se enxugava com a ponta do avental.

— Nada disso. Hoje tomamos um café dos verdadeiros, no Metropol.

Lola encolheu os ombros, parecendo hesitar, mas Matías sabia o quanto lhe agradavam esses pequenos gastos que lhe devolviam o tempo em que ainda se podiam permitir jantar num restaurante ou fazer uma viagem ao estrangeiro.

— Onde é que está o atril?

— O atril? — estranhou Lola.

— Sim, o atril do meu pai.

— Acho que está no desvão do quarto pequeno. Mas não o vás buscar agora.

— Não demoro nada.

— Tens de levar o escadote.

— Vai vestindo o sobretudo, eu volto já.

Lola foi ao quarto e arranjou um pouco o cabelo em frente ao espelho da cómoda. Tinha o nariz vermelho. Aplicou pó de arroz de uma caixa que estava quase no fim, e depois pintou os lábios. Ao ver-se com a cara cuidada sentiu necessidade de vestir também outra roupa, por isso tirou do armário um fato de saia e casaco e mudou-se. Vestiu as meias de seda grossa e calçou os sapatos de salto alto. Depois voltou a olhar-se ao espelho. Era outra mulher. De repente, tinham-se apagado as desgraças e a decadência dos últimos anos e voltava a ser a jovem e cosmopolita tradutora que colaborava com a editora de Matías, que deixava os homens boquiabertos e sabia mantê-los à distância apesar de tudo. A todos menos a Matías, que a deslumbrou aniquilando todas as suas defesas, até que ela ficou presa numa teia de aranha da qual nunca tinha conseguido escapar.

Ele era casado e divorciou-se. Depois disseram-lhes que esse divórcio não era válido, mas os dois não se importaram. Amava-o. Profundamente e com todas as suas forças. Talvez porque o amor dele também fosse tão exclusivo que quase não deixava espaço para a mediocridade. Amava-o porque era honrado sem ser heroico, porque ao seu lado tudo parecia possível. E porque o admirava. O seu comportamento durante e depois da guerra demonstrou-lhe que era um homem sereno. Esteve prestes a ser fuzilado; Lola julgou que nunca mais o voltaria a ver, mas depois o pai de Lola, que era um médico de renome e tinha alguns pacientes entre os mandachuvas do novo regime, conseguiu que lhe comutassem a pena. Levaram-no para um campo de prisioneiros, na Galiza, e passou lá três anos até que a virulência das represálias amainou e pôde voltar a casa. Quando regressou já não restava nada da sua vida anterior. A sua mãe tinha morrido, Lola tinha-se refugiado em casa dos seus e a pequena editora que publicava os melhores autores franceses e ingleses do século XX tinha desaparecido. No edifício da rua Argensola havia agora uma alfaiataria religiosa de dois andares. Lola tinha conseguido salvar algumas centenas de exemplares que guardavam no armazém e meia dúzia de manuscritos por traduzir, antes de uns tipos, que não se identificaram, entrarem e esvaziarem o imóvel. Conseguiu guardar uma parte dos livros em casa dos seus pais e o resto no sótão de uns amigos.

Tinham passado vários anos desde então. Demasiados para terem esperança e muito poucos para se acostumarem a viver dessa forma.

— Com que então… Vestida de ponto em branco… — Matías tinha ido buscá-la ao quarto. Olhava-a com esse brilho nos olhos tão típico dele. — Estás lindíssima, meu amor. E se mudássemos de planos?

Tinha o sobretudo vestido e o atril debaixo do braço. Lola pegou-lhe na manga e arrastou-o até à rua. O café do Metropol ia ser o seu único luxo em muitos meses.

Estavam de bom humor quando chegaram à loja. Ainda assim, não conseguiu evitar pensar no que sentiria ele todos os dias ao levantar a persiana desse pequeno alfarrabista que tinha instalado no cubículo de um relojoeiro. Entrava-se pelo átrio, onde estava o balcão. Era necessário levantá-lo e abrir uma portinhola com fechadura para poder entrar na loja. O melhor, sem dúvida, era a pequena montra cuja parte mais larga, apenas metro e meio, dava para a rua. Era pouco menos que nada, mas tinha que ver com o que sabiam fazer. Com aquela ideia romântica da cultura que os tinha unido. Os livros tinham sido a sua vida, a dos dois, e de alguma forma ainda o eram.

— Tens alguma coisa nova? — perguntou Lola tirando as luvas e levantando uma pilha de revistas empoeiradas. — Ontem disseste que o Garrido tinha vindo.

— Há alguma coisa — respondeu ele. — Mas não precisamente aí.

Lola conhecia esse tom.

— O quê? — perguntou impaciente.

Matías continuou a retirar o leque de romances de Salgari e Júlio Verne que tinha expostos na pequena montra. Alguns pareciam novos. Havia dois ou três que tinham vinhetas no interior.

— O quê? — insistiu Lola.

— Paciência — murmurou ele enquanto amontoava nos dois extremos os lápis de cor e os cadernos escolares que se via obrigado a vender para que o negócio não fosse totalmente ruinoso.

Lola continuou a bisbilhotar por sua conta. Aos sábados de manhã Matías recebia a discreta visita de um conhecido crítico do ABC, que lhe vendia os exemplares enviados pelas editoras para que fizesse uma resenha. Eram livros totalmente novos que já tinha lido ou nunca ia ler. Normalmente eram estes últimos que interessavam a Matías.

— Vais sujar-te. E, além disso, por aí não vais encontrar nada.

— Vamos brincar ao quente ou frio? — protestou ela.

— Não, mulher, espera um pouco, já te mostro. Vais adorar.

Lola sentia uma estranha ambivalência pelo negócio de segunda mão. Por um lado, sabia que era o melhor que Matías podia fazer neste momento: comprar e vender livros. Mas magoava-a que se visse obrigado a práticas tão mesquinhas como a troca de romances cor-de-rosa ou de westerns. Os clientes do bairro, jovenzinhas e adolescentes sobretudo, compravam um romance em segunda mão, liam-no, e depois por cinquenta cêntimos podiam devolvê-lo à loja e levar outro. Matías dizia que esse sistema criava leitores. Lola ficava desanimada ao ver aqueles exemplares deformados, amarelados, sujos… Não se imaginava a si própria a ler aquele lixo com dezasseis ou dezassete anos.

— Bem, aqui o tens.

Por fim tinha acabado de colocar o atril no centro da montra. Agora tinha na mão um exemplar de capa dura, com uma ilustração ao mais puro estilo art déco. Representava uma mulher elegante a descer pela prancha de desembarque de um barco. O desenho lembrou-lhe a encenação de uma ópera de Wagner que tinham visto juntos antes da guerra.

— O que é? Outro desses romances cor-de-rosa? — perguntou, abrindo-o para ler a badana interior.

Matías deixou que ela encontrasse a resposta sozinha.

— Ah… memórias…

Continuou à espera. Tal como tinha previsto, Lola sentiu um calafrio.

— Uma filha secreta do duque de Ashford… E garante que lutou em Espanha com as Brigadas Internacionais. Será que é verdade?

Olhava para ele assombrada. Matías assentiu em silêncio.

— Mas de onde é que este livro saiu? Parece completamente novo.

— É uma edição mexicana — esclareceu ele. — De 1946.

— Leste-o?

— Ontem. De uma assentada. E tu também devias fazê-lo.

Lola negou várias vezes em silêncio.

— Mas não te dás conta — insistiu Matías — de que essa tua rejeição em ler qualquer coisa que tenha que ver com a guerra é um pouco infantil? Este livro não foi publicado aqui; garanto-te que não sofreu a mínima censura.

— Não interessa, não quero.

Matías pegou no livro que ela lhe entregou e encolheu os ombros. Depois colocou-o com cuidado sobre o atril, no meio da montra.

— O que estás a fazer?! — exclamou ela alarmada e baixando instintivamente a voz. — Não me digas que vais vendê-lo…

— Não — respondeu ele com a sua habitual calma —, vou oferecê-lo.

Lola tinha-se sentado no pequeno banco que estava debaixo do balcão.

— Não te percebo, Matías, juro que não te percebo.

Estava a começar a zangar-se.

— Espera, mulher, espera… Já vais perceber.

Escreveu alguma coisa sobre uma cartolina branca. Reforçou os traços com várias passagens de tinta para que se lesse bem. Depois colocou o cartaz à frente do atril, debaixo do livro.

— Fazes-me um favor?

Agora foi Lola quem encolheu os ombros.

— Vai lá fora e diz-me como é que se vê do passeio, se se lê bem.

Levantou o balcão para que ela pudesse sair. Quando a viu do outro lado da montra, atenta e disciplinada, com o seu fato cinzento impecável e o cabelo castanho afastado do rosto, ficou comovido. «Tenho saudades da vida quando era nossa», tinha ela dito duas horas antes. Não era justo. Não era justo que esta mulher inteligente, atraente e culta tivesse uma vida tão miserável.

Lola tentava compreender o que é que Matías queria fazer com o livro. Leu várias vezes aquele cartaz de caligrafia grande e legível. «Este livro será oferecido à primeira pessoa que o ler todo», dizia em letras garrafais. E por baixo, num tamanho mais pequeno: «Todos os dias serão expostas duas páginas nesta montra, e o leitor que chegar ao final da história poderá levar o livro grátis.»

Quando regressou ao interior estava séria e parecia preocupada.

— Mas para quê? — perguntou sem perceber ainda os motivos de Matías.

Ele passou a língua pela mortalha e selou o cigarro que acabava de fazer. Uma madeixa de cabelo preto e brilhante caía-lhe sobre a testa.

— Para sentir que ainda posso fazer o que me apetece — respondeu com calma.

Tirou o isqueiro do bolso das calças e bateu várias vezes na roda com a parte lateral da mão, até que as chispas acenderam o pavio amarelo. Depois soprou, aproximou o cigarro e encostou-o à brasa.

— E também pelo gosto de mudar as coisas — acrescentou olhando para Lola com intensidade —, para que alguma coisa saia do seu sítio. Sabes o que é que me agrada nesta situação? Pensar que pode haver alguém que hoje, domingo, não o quer e não o procura, e que amanhã vai conhecer este livro.

Lola estava de pé, junto ao banco. Ele apoiou-se na parede, como costumava fazer quando fumava.

— Teria sido muito mais fácil para mim vendê-lo ao senhor Fernando, ao Luis ou a qualquer outro dos meus clientes habituais; sei que o teriam recebido com agrado. Mas não é uma história para os que têm o hábito de ler, que também o seria, sem dúvida. De repente, hoje de manhã pensei no que poderia sentir uma dessas raparigas que vêm trocar romances cor-de-rosa se o livro caísse nas suas mãos. Imaginei as emoções que podia proporcionar a alguém que, pela sua própria vontade, nunca o compraria. Percebes?

Lola percebia. As coisas podiam ser difíceis naquela pequena divisão empoeirada, mas com Matías havia sempre uma janela invisível que se abria para uma nova paisagem. Algo que não existia noutro lugar, que mais ninguém lhe podia proporcionar. Sorriu. Ele retribuiu-lhe o sorriso através do fumo que pairava entre os dois.

Tinha passado toda a manhã sem que ninguém parasse em frente da montra. Quando baixou a persiana à hora do almoço pensou que talvez não fosse tão boa ideia como tinha pensado a princípio. Quem ia querer ler um livro de duas em duas páginas? Nem sequer tinha conseguido calcular quanto se demoraria a terminá-lo; era um exemplar bastante grosso, por isso, de repente, não lhe pareceu um chamariz nada acertado.

Em algum momento desse dia, Matías pensou no estranho que era que Garrido tivesse trazido esse livro. Costumava vender-lhe os exemplares que as editoras ou os próprios autores lhe mandavam para que fizesse uma resenha ou falasse deles no jornal; mas este, em concreto, estava editado no México e, além disso, tinha uma data bastante recente. Imaginou que alguém lho tivesse oferecido e que ele nem sequer o tinha aberto. Se o tivesse feito, Matías tinha a certeza de que Garrido teria ficado com ele.

À tarde, assim que abriu, uma mulher jovem com uma criança nos braços entrou para comprar um afia-lápis e dois cadernos quadriculados. Matías viu que parava em frente da montra sem muito interesse. Foi-se embora de seguida. Certamente não tinha tido tempo de ler nem o primeiro parágrafo. Mais tarde, um rapaz de cerca de dez anos que tinha ido trocar um pequeno romance ilustrado, leu o cartaz e perguntou-lhe: «Tem imagens?», «Não», respondeu Matías, «é só texto», e o rapaz afastou-se dececionado. No final da tarde, quando estava quase a fechar, outra mulher que tinha entrado algumas vezes na loja parou um momento em frente da montra. Matías reconheceu-a porque se lembrava de que era estrangeira. Algo no seu rosto fê-lo pensar que estava a ler, mas não tinha a certeza; a senhora parecia confusa, transtornada. Ficou ali, a olhar fixamente para o livro. Depois levantou o olhar e procurou-o no interior da loja. Ia vestida com um sobretudo simples de lã, um cachecol feito à mão e tinha o cabelo, de um branco intenso, cuidadosamente apanhado. Olhava-o com insistência. Às vezes Lola também olhava para ele assim.

Na terça-feira o livro continuava na primeira página porque ninguém tinha parado para o ler. Abriram a loja juntos e Matías esteve a classificar alguns exemplares antigos, enquanto Lola arrumava um pouco as estantes mais próximas do balcão.

— Deixa isso, mulher.

— Mas tu já viste a confusão que tens aqui? Não se consegue encontrar nada…

— Confusão nenhuma. Tenho tudo perfeitamente localizado.

Lola tinha pegado numa parte da pilha que estava numa cadeira, perto da montra.

— Eh… Não lhes toques, tenho de os classificar.

— São os que o Garrido te trouxe?

— Sim, mas tenho de lhes dar outra vista de olhos.

— E este autor novo? Este que se chama Sánchez Ferlosio? Que título… Andanças e Façanhas de Alfanhuí… Parece um título de Baroja. O que achaste?

— Original, um pouco fantasioso. Quero levá-lo ao Luis, acho que ele vai gostar.

— Escreve bem?

— É bom, sim. Sobretudo diferente do habitual.

Lola tinha deslocado a pilha de livros para um dos cantos da mesa que tinha sido o banco de trabalho do relojoeiro. Levava um simples vestido preto rodado com pequenas flores brancas, atado à cintura com um cinto forrado. Desta vez não usava meias de seda; só meias brancas com os sapatos atados ao tornozelo, como os das bailarinas, uma moda que já não estava na moda, mas era confortável.

— Tens de pedir ao Garrido que te consiga o romance daquela rapariga, Carmen Laforet, a que ganhou o Prémio Nadal há uns anos; gostava de lê-lo. Nada, acho que se chama assim… Não achas que é um título muito mais sugestivo do que Andanças e Façanhas de Alfanhuí?

— Talvez…

Matías ia dizer algo mais quando a viu. Outra vez a mulher do cabelo branco, parada em frente da montra. Não olhava para o livro, só bisbilhotava o interior da livraria. Lola reparou na estranheza de Matías e virou-se. A mulher sorriu da rua.

— Quem é? — perguntou a Matías.

— Não sei, às vezes aparece. Ontem também andou por aqui. Mas não entrou.

— Se calhar vem por causa do livro.

— Não me parece que lhe interesse. Acho que não.

Matías tinha metido meia dúzia de exemplares num saco de lona.

— Já estou atrasado.

— Vens cá ter ou espero por ti em casa?

— Venho-te buscar e fechar a loja.

— Se te atrasares não te preocupes, eu fecho.

Às terças e quintas-feiras de manhã era Lola quem ficava na livraria. Ele fazia visitas ao domicílio, como um médico, costumava dizer. Tinha quatro ou cinco clientes fixos, aos quais levava as novidades ou as encomendas a casa. Gente solitária, como Luis, a quem faltavam as duas pernas e que se deslocava num carrinho com a ajuda das mãos, ou leitores idosos como o senhor Anselmo, que preferiam recebê-lo com um copinho de vinho e conversar tranquilamente durante algum tempo sem o incómodo de gente a entrar e a sair pelo átrio. Não vivia desse tipo de clientes, mas preferia isto a vender cadernos e borrachas durante os seis dias da semana. Gostava de estar com eles; conversavam sobre gostos literários, sobre as notícias do mundo e, às vezes, muito raramente, comentavam com precaução a política nacional. Eram os seus dois meios dias de folga. Lola encarregava-se da loja sem resmungar, embora ele soubesse perfeitamente que ela não gostava muito de estar ali. Vendia os artigos de papelaria, trocava os romances e, se por acaso chegava um cliente que procurava um determinado livro, pedia-lhe para voltar quando o seu marido estivesse presente.

A meio da manhã, quando já organizara um pouco a confusão das últimas aquisições, Lola tentou arrumar os exemplares que tinham salvado da editora e com cujo fundo haviam aberto o negócio. Matías tirava livros das estantes e nunca os colocava no mesmo sítio. Num lugar tão pequeno como aquele, a ordem era absolutamente necessária. Acariciou as lombadas que estavam ordenadas. Alguns daqueles velhos textos tinham sido traduzidos por ela, quando ainda era jovem, impaciente e feliz. Agora já não se sentia capaz de nada. Tinha apenas trinta e oito anos, não tinha filhos e todo o seu mundo era Matías. Matías e só Matías. Às vezes tinha medo de que lhe desse um arrebatamento e tivesse vontade de abandonar tudo. Ou seja, Matías.

Não soube muito bem por que razão, nem em que determinado momento decidiu sair até ao passeio para ver esse novo sistema de promoção da leitura que o seu marido tinha inventado e que não estava a dar — e certamente não ia dar — o mínimo resultado. Tinha uma relação ambivalente com o facto de o livro estar ali, exposto, como o leitão com uma maçã na boca da Casa Botín: por um lado parecia-lhe ridículo e desnecessário, por outro achava graça; era tão próprio de Matías que só podia aceitá-lo com uma certa cumplicidade. Pôs um casaco de malha pelos ombros, levantou o balcão e ficou no passeio a olhar para o atril e para aquela página de elegante caligrafia inglesa. Sem se dar conta, começou a ler.

— Que curioso, um livro aberto…

Lola sobressaltou-se. A mulher tinha aparecido sem se dar conta.

— Desculpe?

— Digo que não se pode ver a capa.

— Ah… — Estava desconcertada, custou-lhe raciocinar. — Refere-se à página de rosto.

— Sim, isso. A senhora sabe como se chama?

Era a mesma mulher que tinham visto em frente da montra no dia anterior. Matías tinha-lhe dito que não era a primeira vez que parava diante da loja.

A Rapariga dos Cabelos de Linho.

A mulher usava um lenço de seda na cabeça, possivelmente francês. Lola reparou nisso, enquanto ela assentia.

— Belo título.

Lola pensou nele durante uns segundos.

— É verdade. É sugestivo.

— Sabe que há um prelúdio do Debussy que tem o mesmo título? Eu não costumo ler muito, mas gosto de música. O livro é sobre o quê?

— São as memórias de uma mulher que diz ser a filha de um duque inglês. Pode ler a primeira página. Está aqui para isso.

— Oh, não, não consigo… — titubeou um instante, como que querendo encontrar uma explicação para a sua recusa. — Não trouxe os óculos — disse por fim com um gesto de desculpa.

— Quer que eu a leia?

— Não é muito incómodo?

— De modo algum. Estava a começar a fazê-lo agora mesmo. — Lola baixou um pouco a voz e sorriu. — Porque eu também não o li — confessou, enquanto os seus olhos escuros se rasgavam num gesto de cúmplice malandrice.

A mulher devolveu-lhe o sorriso. Lola reparou pela primeira vez no seu rosto. Tinha a pele fina e muito branca, como o cabelo. Ao sorrir, pequenas rugas sulcaram-lhe as maçãs do rosto e teceram sob os seus olhos uma rede de linhas que lhe lembrou as folhas de um caderno milimétrico. Tinha os dentes pequenos e limpos, e os olhos de um azul semelhante ao anil, com muita luz, o que lhe dava um ar muito mais jovem ao sorrir, como se todo o seu rosto se iluminasse.

O que mais surpreendeu Lola foi que a mulher não olhava para a montra, mas sim para ela. Pensou que talvez lhe quisesse dizer alguma coisa e não tivesse coragem. Começou a ler porque lhe tinha prometido, mas a verdade é que já estava arrependida. Estava frio e aquela absurda ideia de Matías pareceu-lhe, agora mais do que nunca, algo que não fazia qualquer sentido.