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Cresci numa pequena aldeia da Normandia, sem que ninguém me dissesse que era filha do duque de Ashford.
Devo ter chegado a casa dos Hervieu quando tinha pouco mais de três anos. Sempre soube que não eram meus pais, de facto nunca os tratei assim; para mim sempre foram Madame e Monsieur Hervieu. Eles tinham os seus próprios filhos e, embora fossem boas pessoas e me tratassem mais ou menos bem, não podiam evitar que eu sentisse claramente que não era um deles. Algum de vocês sabe o que significa crescer sem carinho, quando o verdadeiro carinho, instintivo, quase animal, mora na mesma casa que nós e todos o partilham? As crianças que crescem num orfanato fazem-no privadas do amor de uns pais, mas todas são iguais nisso, todas vivem a mesma situação. O meu abandono era pior. Tinha um aroma estranho; era como se me estivessem a dizer permanentemente que não pertencia a esta casa, a esta terra, que nunca seria um deles e, ao mesmo tempo, me negassem a possibilidade de encontrar o lugar no mundo ao qual pertencia. E, contudo, nunca perguntei a Madame Hervieu quem eram os meus verdadeiros pais. Nunca. Não tenho lembranças deles. Nem uma. Nem um rosto, nem um aroma, nem uma voz.
É curioso. A minha vida parece começar na Normandia, como se tudo o que se passou antes não tivesse existido. Mas sei que essa vida desconhecida está armazenada em algum sítio. Suponho que a conservo por aí, mas a minha memória é um lugar onde está tudo muito confuso e, por mais que queira pôr alguma ordem, não consigo.
Nesse passado confuso da minha vida anterior aos Hervieu, há apenas um barco. É um barco enorme. Subo por uma prancha de madeira. Uma mulher vai à minha frente, usa uma capelina debruada de pele e umas anquinhas que parecem um nó mal feito. Os seus pés são pequenos, e tropeçam uma e outra vez nas travessas de madeira que servem para que as pessoas não escorreguem rampa abaixo. Sou uma criança, mas já sei este tipo de coisas. Também sei que essa mulher contratou o carregador que leva a bagagem atrás de mim, e que nessas malas de pele de bezerro vão os meus vestidos de rendas galesas e as minhas bonecas de porcelana.
Depois apaga-se tudo. Tudo menos o olhar severo dessa mulher com quem durmo num camarote de primeira classe. Contudo, não consigo recordar o momento em que cheguei à casa dos Hervieu. Era uma quinta na costa ocidental da Normandia, perto da cidade de Coutances. Acho que não me lembro porque esse foi, durante muitos anos, o único cenário que os meus olhos viram, e depois, quando tinha idade para me questionar, a única infância da qual podia falar. Era paradoxal, tudo era e não era, pertencia e nunca tinha pertencido… Também era injusto. Mas defendi-me como consegui, por isso apaguei coisas que certamente já não encontravam lugar na vida que me tinham obrigado a viver, apaguei a chegada à casa dos Hervieu e só mantive a lembrança daquele enorme barco que me trouxe para a Normandia.
A quinta era um lugar relativamente confortável. Os Hervieu tinham uma boa casa, soalheira nos escassos dias em que aparecia o sol, e não muito exposta aos ventos normandos, pois tinha sido construída ao abrigo de uma pequena elevação do terreno e rodeada por sebes de quase dois metros. Só tinha um andar, com o telhado de duas águas, e os estábulos estavam afastados do edifício principal, do outro lado de um curral rodeado de macieiras, o que era muito mais civilizado porque nos deixava a salvo dos cheiros, dos moscardos e das moscas. Por dentro estava toda distribuída à volta da grande cozinha onde passávamos a maior parte do tempo. Não havia corredores, só alcovas sem janelas que davam para a cozinha, com uma cortina em jeito de porta. As crianças dormiam ali. O calor da lareira, sempre acesa, mantinha-nos quentes durante a noite.
Perto da porta, paredes-meias com o saguão, estava o quarto dos Hervieu, muito maior, quase como todas as alcovas juntas. O que mais se destacava desse quarto era a cama de ferro, que tinha nas extremidades duas bolas de cerâmica com cenas da infância da Virgem Maria e um grande medalhão com uma Imaculada Conceição cheia de arcanjos e querubins na parte central da cabeceira. Aos pés da cama havia duas pinhas de ferro fechadas. Ainda hoje me parece uma bela cama. Pergunto-me muitas vezes o que terá sido dela.