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Gostei que não me quisesse deixar no passeio. Também não começámos a ler de imediato.

Eu tinha estado à espera no átrio do prédio da frente até o seu marido sair. Sei que às terças e quintas-feiras costuma distribuir os seus livros e só regressa à hora de fechar. Abandonei o meu esconderijo assim que o vi virar a esquina. Pareço uma criança a fazer isto, mas diverte-me, é… não sei… uma pequena travessura imprópria da minha idade. Tal como seguir um livreiro pelas ruas de Madrid. Enfim, também tenho esta faceta.

Esperei calmamente em frente da montra enquanto ela atendia um senhor que comprava um tinteiro. Depois entrei, ela perguntou-me se tinha trazido os óculos e eu confessei-lhe que me sentia muito desajeitada e que me cansava muito ler numa língua que não era a minha. Como é evidente, abusei da sua simpatia quando lhe pedi que o fizesse por mim.

Parece que o meu atrevimento não a incomodou, porque me fez passar para o interior da loja e disse:

— Tem pressa?

Eu olhei-a sorrindo à inglesa, ou seja, sorrateiramente, que é como a minha vizinha chama ao meu sentido de humor.

— Olhe para mim — respondi. — Sou velha, não tenho nada para fazer.

Ela riu-se espontaneamente. Então apresentou-se.

— Chamo-me Lola. E a senhora?

— Alice — respondi-lhe de repente, talvez porque todos vivêssemos há muito tempo num país de patéticas maravilhas. — Mas se quiser pode-me chamar Alicia, já que é mais comum em Espanha.

— Não, não… Alice está bem. O nome de cada um é muito importante, é a sua identidade, e a identidade não admite tradução.

Era uma mulher que de repente dizia coisas surpreendentes. Imagino que era desse tipo de pessoas que em determinadas situações também era capaz de o fazer.

— Perguntava-lhe se tem pressa porque tenho de arrumar um pedido de papelaria. É uma coisa mecânica, podemos conversar enquanto o faço, mas tenho mesmo de terminar esta tarefa.

Concordei. Como era possível não fazê-lo?

Acomodámo-nos; eu tirei o casaco, ela sentou-se no banco, ao pé da mesa, e foi espalhando em pequenos grupos as lapiseiras, as borrachas de duas cores, os aparos e os cadernos de espiral.

— Aproveito para lhe contar uma coisa. — A verdade é que estava desejosa de encontrar o momento. — A senhora perguntou-me ontem se eu era inglesa. Não sou, embora tenha um passaporte britânico. Já sei que não pretende ser curiosa e por isso aceitou que eu não respondesse no outro dia, mas gostaria muito de lhe contar, se não for um incómodo.

Lola deixou de ordenar a mercadoria. Fez um simples gesto de assentimento. Pôs as mãos no colo e esperou. Eu afinei a entoação. Acho que, de facto, pus o tom de quem começa a contar um conto.

— Fui criada em África, no país onde hoje é o Zimbabwe. O meu pai tinha uma quinta de mil e duzentos hectares. Vivíamos numa casa de paredes de argila e telhados de palha que a minha mãe e ele tinham construído provisoriamente, quando a minha mãe morreu de repente. A casa ficou sempre assim. No mais absoluto abandono. Como eu.

Vi o efeito que as minhas palavras tinham nela. Desta forma, continuei.

— O meu pai ficou viciado na caça, no álcool e nas criadas negras. Eu andava sozinha pelas selvas e savanas com um cão e uma espingarda. Ninguém se preocupou com a minha educação. Mas não pense que era tão dramático como agora pode parecer. Lá não tinha importância. Era muito mais importante saber disparar ou guiar-se pelo Sol e pelas estrelas, intuir quando chegaria a temporada de chuvas e como cuidar das cabras para ter sempre leite. Sabia tudo isso na perfeição.

Lola tinha abandonado há algum tempo o seu pequeno inventário de papelaria. Estava tão atenta ao meu relato que me deu pena.

— Parece uma infância apaixonante, a sério — disse com uma atitude sonhadora. — Muito livre, não é?

— Totalmente livre. Mas não sei se isso é muito bom, sabe? Às vezes penso que o limite, a fronteira entre a liberdade e o caos é muito imprecisa: não sabemos quando vamos cruzar essa fina linha… Quando já não temos uma mãe que vele por nós, ninguém se preocupa em indicar-nos onde está a beira do precipício.

Ficou pensativa durante uns instantes. Tive a sensação de que aplicava a minha reflexão a alguma coisa que tinha na sua própria vida.

— É verdade — disse passado um tempo. — Evidentemente. Não gostamos das fronteiras nem das normas, temos sempre a tentação de cruzá-las e transgredi-las, mas até para saltar precisamos de cercas. — Agrupou os lápis e as borrachas distraidamente. — E todos precisamos dessa segurança de vez em quando, não acha? — acrescentou enquanto colocava o seu precioso espólio de grafite e borracha nas gavetas que tinha de um lado do balcão.

Depois foi à montra e pegou no livro.

Mas não começou a ler. Sentou-se com ele no colo, de costas para o balcão, e perguntou uma coisa que eu não esperava:

— E depois? Como é que chegou a Espanha?

Pensei numa saída rápida, e a verdade é que não precisei de me esforçar muito. Bastou-me substituir a minha vida pela da minha amiga Doris.

— Quando tinha catorze anos, casei com um funcionário de Salisbury e mudei-me para a capital da Rodésia. Era um homem medíocre e odioso. Nunca quis que me sentisse igual a ele.

Ficou com uma expressão contrariada. Pareceu-me que ela também começava a odiá-lo.

— Vivíamos numa cidade onde a cultura era uma coisa secundária, mas deu-me para ler. A toda a hora, todos os livros que vinham parar às minhas mãos. Aprendi noções de direito, de física, de arte. Só pelo prazer de aprender. Lia e ouvia música num velho fonógrafo que o meu marido tinha. Engravidei, tive um filho, e quando fiz dezoito anos o meu pai morreu e deixou-me a quinta como herança. Sabe o que fiz? Peguei no meu filho e voltei para o sítio onde tinha sido feliz. Divorciei-me daquele homem. Acho que às vezes não me lembro nem do seu nome.

Vi que Lola assentia com um leve sorriso nos lábios.

— Vivi mais vinte anos em África. Mas mandei o meu filho estudar em Inglaterra para que não lhe acontecesse o mesmo que a mim.

De repente dei-me conta de que me olhava de uma forma diferente, como se acabasse de me conhecer nesse preciso instante. E acho que, de certo modo, era assim.

— É mesmo uma vida apaixonante.

Decidi concluir. Não estávamos aqui para ouvir esta história, mas sim a outra.

— E agora estou no seu país. Gosto de Espanha. Vim porque o meu filho é engenheiro e trabalha nas minas de Río Tinto, que como sabe ficam em Huelva. Mas ele não quer que eu viva lá; pensa que de momento estou melhor em Madrid e eu ouço tudo o que ele diz. Ele trata de todos os meus assuntos. Tenho um rendimento mensal e nenhuma preocupação.

— Estou a perceber. Não sei como é em Inglaterra, mas aqui as mulheres perderam a pouca liberdade que tinham conquistado antes da guerra. Não é fácil encontrar alguém como a senhora.

— Pois se quer que lhe diga a verdade, eu também não sei muito bem como é que são as coisas em Inglaterra. Nunca lá vivi. Embora o meu passaporte seja britânico e a minha pele clara, devo confessar que sou africana. — Tentei não acrescentar nem mais uma palavra. Era melhor. — Enfim, esta é, em linhas gerais, a história da minha vida.

Na proximidade da loja o aspeto daquela mulher jovem era quente e afetuoso, apesar de mal nos conhecermos. Olhámo-nos nos olhos com uma confiança surpreendente, como se olham os amigos de toda a vida ou os pais e os filhos. Ela também se apercebeu, porque de repente baixou o olhar e disse:

— Então, começamos?

Tirou o livro do colo, abraçou-o como se fosse um objeto muito querido, e começou a ler.