17

Quando Matías chegou a casa, Lola já tinha almoçado. Eram quase quatro da tarde.

— Estava preocupada — disse quando ele se aproximou para lhe dar um beijo.

— Fui ver a Adela.

— Já imaginava. Como é que ela está?

Matías abanou a cabeça com pesar. Lola não precisou que acrescentasse nada mais.

— Queres que vá esta tarde à loja? Tu podes passar a tarde com ela. Não me importo.

— Não, não é preciso. Amanhã é sábado, vou lá depois do almoço.

— Bem, então eu também vou aproveitar e vou ver os meus pais um bocadinho.

Tinha-se metido alguma coisa entre os dois, algo escuro, feio, desolador. Lola sentia-o perfeitamente. Tinha acontecido de repente, mas era inútil julgar que a culpa tinha sido apenas da doença de Adela. Sentia que tinham esgotado uma época e que começava outra. Isso provocava-lhe uma tristeza infinita.

Matías comia em silêncio. Acendeu um cigarro sem ter acabado o grão e um pequeno pedaço de papel queimado caiu sobre ele, planando no ar com a sua efémera brasa incandescente, o que confirmou a Lola que ele estava realmente preocupado. Aproximou-se e passou-lhe a mão pelo cabelo. Ele levantou o olhar e fitou-a com esses olhos pretos que de repente pareciam vazios de qualquer sentimento.

Evitavam-se? Talvez. Sem dúvida, não se procuravam um ao outro. A casa tinha-se enchido de repente de palavras ocas e sem sentido, palavras que andavam pelo chão e que eles iam pisando ao passar de uma divisão para outra. À noite, quando se deitavam na mesma cama, as palavras vazias criavam um saco opaco que os separava.

Aos sábados de manhã a rádio estava muito animada. Lola tinha estado a limpar os vidros e os caixilhos das janelas ao som dos hits musicais do momento, Luis Mariano, Juanito Valderrama, Jorge Sepúlveda — que cantava com muito sentimento «Monasterio de Santa Clara» — e o melhor de tudo, a orquestra de Pérez Prado a tocar «Qué rico el mambo», uma música alegre que fez com que Lola se lembrasse de Rita Hayworth e do filme que tinham visto no cinema há pouco tempo.

Tinha dançado um pouco enquanto passava os jornais com amoníaco pelos vidros. Era divertido desempenhar as tarefas da casa assim, com essa música para dançar que a convidava a imaginar que estava num salão de festas elegante. Durante a guerra, era do que mais tinha saudades, a música para dançar que deixou de se ouvir na rádio. Teria gostado de pô-la com o volume no máximo quando os Junkers alemães tentavam aproximar-se de Madrid e os «aviões mosca» russos iam ao seu encontro. Ouvia-se o zumbido, primeiro longe, depois mais perto, e tinha sempre medo de que esse ruído de motor fosse seguido pela explosão de uma bomba. Tinha visto cair várias, todos os que ficaram em Madrid o viram uma ou outra vez, e era sempre igual: primeiro o fumo, os gritos sufocados, o terrível silêncio que se produzia como se a bomba tivesse acabado com o mundo inteiro e já não restasse vida em lado nenhum, o pó dos edifícios a ruir, uma poeirada que se elevava por cima dos telhados e que se podia ver a uns quilómetros de distância, e finalmente essa peregrinação em busca das ruínas e dos corpos esmagados. Escombros. Odiava os escombros.

Uma vez. Durante a guerra.

A cidade retumba do outro lado de uma janela cinzenta. Ela está na casa onde o seu pai dá consultas; não sabe exatamente o que foi ali fazer, não o quer recordar. Talvez suplicar.

Não há pacientes, hoje não é dia de consulta. O pai pediu-lhe que fosse encontrar-se com uma pessoa.

— É muito influente — disse —, se ele não conseguir, ninguém consegue.

Agora está em frente desse homem. Não é um militar, nem sequer um polícia, e no entanto parece as duas coisas ao mesmo tempo.

— Com que então trata-se do seu marido?

Tem a voz pausada, o olhar sombrio e a expressão de quem está disposto a fazer mal. Madrid ainda não caiu nas mãos dos nacionais, mas todos sabem que é inevitável.

— É verdade — responde ela com todo o aprumo de que é capaz.

O homem vira-se para o pai.

— Mas eu tinha percebido que o tal Matías Reguero era casado com a Adela Ramírez. Não estamos a falar de um bígamo, pois não?

Lola baixa o olhar. Esforça-se por ser atenciosa, mas a irritação nota-se na sua cara, e o seu pai, que está presente durante toda a conversa, olha para ela com severidade.

— Casámo-nos pelo civil quando ele se divorciou.

O homem solta um risinho breve.

— Mas em Espanha somos católicos. Aqui não há divórcio que valha.

O seu pai fica visivelmente pálido.

Lola percebe nesse preciso momento que o homem a quem recorreram não fará nada por eles. Então, quando assume que é impossível salvar Matías, levanta o rosto e olha-o de frente.

Os torturadores têm essa expressão perante a sua vítima. Lola apercebe-se disso. Está a fazer troça dela.

— Houve divórcio — responde com insolência. — E ainda há. Os senhores ainda não ganharam a guerra.

E então cai a bomba. Depois disseram que tinha caído na rua Alcalá, perto do edifício da Junta de Defensa, mas naquele momento, quando o estrondo atravessou a janela cinzenta e entrou no consultório, quando se apagaram todas as luzes e o homem quis abusar dela na escuridão, pondo as mãos onde não devia com essa exasperante lentidão de dono e senhor, pareceu-lhe que a bomba tinha caído na divisão em que se encontravam. E foi então que ela gritou, pensando que o seu pai faria alguma coisa para a defender…

Escombros. Na rua. Um homem com uma braçadeira e um sobretudo. Silêncio. Pó. As tropas nacionais estão prestes a entrar em Madrid. Matías foi preso e já não há nada a fazer. O mundo será desta gente.

Nunca o disse a Matías, mas nessa tarde, quando atravessava até Cibeles, confusa e derrotada, sem energia, pensou que, se o fuzilassem, nem sequer ia ser a viúva de Matías Reguero. E, como não tinha ninguém próximo a quem odiar, odiou Adela por isso.

E agora Adela está a morrer.

É curioso. Lola sempre se sentiu culpada. E, embora Adela se tenha portado muito mal com eles, desculpou com frequência o seu comportamento. Talvez por entender os seus motivos. Matías deixou-lhe tudo, a casa, os móveis, o pouco dinheiro que havia no banco, mas não lhe pôde deixar o que nunca tinha tido em absoluto, o seu amor, e os três sabiam disso. E enquanto este segredo de polichinelo convertia Lola na vencedora de uma guerra secreta, a ela, Adela, deixava-a humilhada e ressentida, com a certidão de vítima atualizada.

Na rádio Tomás de Antequera canta o «Romance de la reina Mercedes». Que desenxabido se tornou tudo nestes anos, que ridículo, piroso e falso. Matías tem razão. A rádio retransmite mentiras. Até quando só põem música.

Outra vez Adela. E a culpa ali, intacta, sem remédio. Às vezes zanga-se consigo própria. Culpa de quê? Por acaso ela não tem o mesmo direito ao amor que Adela? Será que não acredita na liberdade de escolher e decidir acima de tudo? Ou vai dar razão ao pai quando diz que o seu casamento com Matías não é moralmente lícito? Para em frente ao vidro reluzente. Vê a sua imagem refletida sobre uma sombra escura que lhe serve de fundo e na qual ela reconhece a parede oposta da sua própria casa. Ali está ela. O cabelo protegido sob um lenço com um nó em cima e o sobrolho franzido, de repente com mais idade, mais velha do que se imagina a si própria. E vê também, quase refletida no vidro, essa dúvida permanente sobre o que está bem e o que está mal. Sabe que há alguma coisa no seu interior que é burguesa e convencional; a obsoleta educação à qual a submeteram durante toda a sua vida está tão enraizada que, às vezes, se surpreende a pensar que o seu destino foi o da outra, da amante, da amancebada, da ilegal.

Mas agora Adela está a morrer. E as coisas podem mudar.

Ficou em cima da banqueta e junto à janela limpa. Vê a rua, o passeio sob as árvores de folhas mortas, uma vista surpreendente, como se de repente estivesse a voar. Todo o seu corpo está no ar, suspenso sobre o vazio estreito das fachadas enegrecidas e das janelas sem flores. Há um colchão sobre o parapeito da varanda da casa da frente. E Lola lembra-se da única vez em que viu Adela.

Matías e ela ainda não viviam juntos. Foi dois dias depois de ele lho dizer. Que havia outra mulher e que ia viver com ela. Que se queria divorciar. Que já não a amava. Que precisava de ser livre para começar de novo. Certamente não o disse desta forma, precisamente com estas palavras. Mas talvez tenha sido assim que Adela o entendeu.

E numa tarde, quando regressava a casa depois de ter estado a beijar Matías até à extenuação num banco do parque, deu de caras com uma mulher sentada na sala da casa dos seus pais. Não era feia. Nem bonita. Tinha um vestido simples de fundo azul com pequenas flores brancas, o cabelo apanhado num simples coque e uns sapatos abotinados com a biqueira preta. Estava sentada, muito direita, as pernas cravadas no bordo do tapete, tensa, agarrada à mala de verniz com tanta força como se tivesse medo de que alguém lha quisesse roubar.

O seu pai estava de pé, com o casaco vestido e uma mão a descansar no bolso do colete.

Toda a cena respirava tensão. Percebeu de imediato, até antes de chegar à conclusão de que aquela mulher sem qualquer atrativo era a esposa de Matías.

O que queria?

Porque é que tinha vindo a essa casa?

Odiou-a imediatamente. Sem remédio. Odiou-a por meter os seus pais no assunto, por o fazer antes de ela lhes conseguir contar alguma coisa, por lhe arrebatar as rédeas da sua vida. Odiou-a.

O pai foi o primeiro a falar. O seu rosto dizia tudo.

— Esta senhora tem uma coisa para te dizer, Lola.

A mulher não falou logo. Olhava-a de cima a baixo, avaliando-a. Depois começou a chorar sem esconder o rosto, nem as lágrimas, nem a expressão desdenhosa, fazendo da sua dor um estandarte que abria perante a sua rival com entusiasmo, porque tinha direito de a odiar e de demonstrar esse ódio sem o mínimo recato.

Lola deixou-se cair no sofá, no canto mais afastado da poltrona onde ela estava sentada. Não a queria ver, mal conseguia olhar para ela, mas ainda era pior aguentar o olhar do seu pai.

— A senhora é muito jovem — ouviu que dizia aquela estranha que se tinha metido na sua casa —, pode encontrar outro homem. Olhe para mim, eu não tenho mais ninguém, nem sequer temos filhos.

Lola ficou em silêncio. O que podia dizer?

— Não tem direito — prosseguiu ela —, é indecente, imoral.

Tentou manter a calma porque todos esperavam que ela dissesse alguma coisa.

— Eu… — balbuciou.

— A senhora não tem vergonha — insistiu a mulher com voz histérica. — Está a destruir um casamento. A senhora é pior do que uma…

Lola começou a sentir algo mais do que ódio ou pena. Começou a sentir fúria.

Levantou-se antes de a outra acabar a frase, antes de ouvir uma palavra que não estava disposta a ouvir.

— Saia desta casa — disse sem qualquer laivo de arrependimento. O seu pai pigarreou, querendo falar. Mas Lola não lho permitiu. — Fale com o seu marido — acrescentou implacável. — É com ele que tem de esclarecer a sua situação. A senhora não tem nada para fazer aqui, estamos entendidas? — Dirigiu-se à porta. — E agora nunca mais volte a aparecer nesta casa.

Depois saiu da sala batendo com a porta, correu até ao seu quarto e chorou durante horas.

Acabou de limpar os vidros e contempla-os com satisfação. Sabe que vai chover a qualquer momento ou que a fuligem dos aquecedores os vai deixar negros rapidamente, mas não se importa porque hoje pensa vestir o seu vestido preto decotado, o casaco cor de cereja e pôr uma fita vermelha no cabelo, e depois, sem outro motivo senão a alegria de estar viva, pensa ir buscar Matías à livraria, dar-lhe o braço e virem juntos para esta casa onde não há palavras no chão porque ela teve a coragem e a vontade de as varrer todas.

Enquanto acontecerem coisas como esta, estarão a salvo. Matías ficou contente ao vê-la entrar uns minutos antes de fechar a loja. Bonita como nunca, com o casaco aberto e um vestido preto decotado que se ata com uma tira larga ao pescoço. E estarão a salvo porque ela é capaz de aparecer de surpresa como se fosse a primeira vez que surge na sua vida. Porque é que a ama tanto? Porque é que ainda a deseja? Estão juntos há mais de quinze anos. Passaram por muita coisa, e um pouco desse muito teria podido destruir o amor e, no entanto, está louco por ela. É verdade. Justamente como não costumam acontecer as coisas nesta vida.

Sorri.

— Meu Deus — diz-lhe em voz muito baixa —, às vezes esqueço-me de como és bonita.

Ela protesta.

— Ah, sim? Quando é que te esqueces?

Ele é rápido de reflexos.

— Quando me porto como um tonto que se distrai com parvoíces. Sabes o que vamos fazer?

Baixou a persiana. Está a pôr o cadeado.

— O quê? — pergunta ela impaciente.

— Vamos tomar um aperitivo. Convido eu!

Desta vez não pensa protestar, de forma alguma.

— É preciso exibir uma mulher assim, seria um verdadeiro crime desfrutar dela sozinho.

Ela ri-se com a ideia.

— De certeza? — provoca-o.

— Eh, ver e não tocar… Que morram de inveja todos esses babosos. Já sabes que às vezes posso ser muito cruel com todos os teus outros admiradores.

Já estão na rua. Sobre os telhados ao fundo há nuvens e abertas, o céu outonal de Madrid. Começam a caminhar um junto ao outro, pelo passeio.

— És tão tolo… — diz Lola pendurando-se do seu braço.

E ele sabe que é verdade.