24

— O que vamos fazer hoje? — pergunta Lola.

O fogão, de ferro fundido e com ferragens de latão, serve de aquecedor no inverno. Tem um depósito de água que alimenta os radiadores, por isso Lola acendeu-o a meio da manhã. É domingo, está a chover e é possível que tenha de passar todo o dia em casa, por isso pelo menos quer estar quentinha. Todos os invernos se lembra de quando viviam na outra casa, naquela onde fica agora a livraria; havia aquecimento central, ligava-o todos os dias, e em alguns andares, sobretudo nos mais baixos, às vezes estava tanto calor que tinham de abrir as janelas de par em par.

— Vais ver a Adela?

Matías respira fundo. Quase parece um suspiro, uma queixa.

— Acho que sim — diz com pesar.

Lola aproxima-se e passa-lhe a mão pela cabeça. Já tem alguns cabelos brancos aqui e ali, mas ainda possui essa cor preta e esses caracóis rebeldes que tenta moldar com o pente molhado todos os dias. Quando não se penteia, como agora, cai-lhe uma madeixa encaracolada sobre a testa.

— Não deviam levá-la para um hospital?

Matías olha para ela. Lola vê a impotência refletida nos seus olhos.

— Já não — diz com uma voz estranha, uma voz neutra e fria, que não parece a sua. — Sabes perfeitamente que a mandaram para casa para morrer.

— E até quando é que isto vai durar?

Matías levanta-se bruscamente.

— Não sei! O que queres que eu te diga? Não sei!

De repente, é como se o teto da cozinha caísse em cima deles. Ficam os dois em silêncio. Ela sente que a pergunta não foi muito oportuna. Ele, por sua vez, sabe que perdeu totalmente as estribeiras, mas ninguém pede desculpa, porque não sabem como o fazer.

Matías saiu sem se despedir. Lola ficou sentada na cozinha, a remoer a angústia. Não vai chorar, não quer chorar, Rose não choraria… Alice também não, tem a certeza. Mas ela não é nenhuma das duas, é apenas uma mulher de trinta e oito anos que está há demasiado tempo a esforçar-se por erguer a sua vida sobre uma realidade presa por arames… Oxalá a sua vida fosse como a das suas amigas do colégio… preparar o pequeno-almoço, levar as crianças à escola, ir ao cabeleireiro… Defender com unhas e dentes o confortável espaço doméstico que todas têm, esse mundo seguro onde ninguém arranca as coisas das mãos de ninguém e onde não há represálias. Não vai chorar. De forma alguma. E se chorar, qual é o problema? Não vão ser lágrimas de fraqueza, mas sim de raiva, de indignação, as mesmas que brotaram dos seus olhos quando aquela bomba caiu de um avião italiano.

É meio-dia e meia. Se se despachar talvez apanhe a sua mãe à saída da missa. Não sabe onde é que Matías pode ter ido, nem quando pensa regressar. Mas não se preocupa com isso. Ela vai almoçar a casa dos seus pais e se ele vier, que se desenrasque, que aqueça a sopa que deixa no fogão.

Apanhou o metro até Argüelles. Recorda o tempo em que vivia nesse bairro. Era a filha de um médico. Estudava em Paris. Podia viver despreocupada, alheia ao preço do café ou da carne. Está a tornar-se avarenta? Porque é que ultimamente só pensa no dinheiro? Este assunto começa a preocupá-la; a princípio parecia-lhe normal, concedia-se a si própria o direito de se lamentar porque se encara sempre mal a perda do bem-estar económico, e ninguém gosta de ter menos, mas depois olhava para a frente, e ali estava Matías, que tinha perdido muito mais do que ela: uma editora de renome, uma posição na vida intelectual da Madrid dos anos trinta, uma confortável casa num bom bairro… E depois tudo se desmoronou. Caiu. Esteve prestes a perder a vida e talvez por isso ele não se importasse de ter perdido tudo o resto. Conforma-se com estar vivo.

Chegou a tempo. Ainda não saíram da missa do meio-dia. Não se lembra de que ordem são os padres deste convento… Agostinhos? Possivelmente. Lembra-se, pelo contrário, de que foi aqui que fez a primeira comunhão. Foi um dia horrível. O seu pai e a sua mãe já estavam a discutir ao início da manhã e, quando acordou, ouvia na cozinha as censuras resmungadas com uma voz que feria. O seu pai gritou duas vezes. Depois chegaram todos à igreja no meio de uma tensão aterradora; a mãe colocou-lhe o véu à toa, sem pensar no que fazia, e ela, essa menina pequena com uma coroa de botões de organdi a tapar o medo, tentou fazer tudo muito bem para que ninguém se zangasse ainda mais… Tinha muita vontade de chorar, ia aguentando as lágrimas porque aquele devia ser o dia mais feliz da sua vida… E só conseguia sentir um medo impreciso, tão próximo que parecia vir de dentro, não de fora, que surgia do seu próprio corpo, como a saliva ou o sangue. Agora pensa nisso. Agora que Matías e ela também discutiram como os seus pais nesse dia. Agora entende tudo muito melhor. Era medo de si própria. Medo de deixar que a felicidade lhe fosse arrebatada de repente, de não ser suficientemente forte, ou hábil, para defender essa felicidade dos embates de uma vida que, a partir desse dia, já não lhe ia parecer tão previsível e segura como antes. Nesse momento, odiou os seus pais.

— Filha! O que estás aqui a fazer? Que surpresa.

A sua mãe tinha a mantilha posta. E o velho missal na mão.

Dá-lhe dois beijos e despede-se das suas amigas.

— Vão vocês, eu fico com a minha filha.

Lola dá-se conta de que o diz com orgulho, como se lhes quisesse demonstrar que as suas relações familiares são firmes e cordiais. Não são. Nunca foram.

— Queres ir tomar um aperitivo? Nós vamos sempre beber qualquer coisa quando saímos da missa.

Entrega-lhe a sua mala durante um instante e calça a luva na mão nua.

— Há maridos que vêm buscar algumas delas, mas o teu pai… Já sabes como ele é.

Sim, Lola sabe. Autoritário e egoísta. Acostumado a governar uns pobres doentes que não são capazes de tomar decisões.

— Apetece-te ir ao Niza? Há séculos que não vou lá. É esse o casaco que te arranjei?

— Sim, ficou muito bem, mãe. Estava-me largo na cintura.

— É que eu não sei como é que consegues estar cada vez mais magra, a sério. Eu estou numa fase em que não passa um mês sem que engorde meio quilo. Tenho de alargar continuamente a costura das saias.

— É a idade, mãe. Dizem que o metabolismo se torna preguiçoso.

— O que é isso?

— Não sei muito bem, é a forma como os alimentos se digerem e se transformam, acho eu. Se estiver bem, queimas energia. Se andar lento, acumulas as gorduras.

— Ah… — diz a mãe sem entusiasmo. — Mas comes bem?

— Claro.

— Comem carne?

— Sim, mãe. Comemos carne.

— Compra fígado, agora já não há racionamento. O fígado alimenta muito.

Dá-lhe o braço para atravessar a rua.

— E como é que disseste que se chama isso que me faz engordar? O meta…

— O metabolismo, mãe.

— Pois. Tudo se torna lento para as mulheres da minha idade — comenta sem qualquer amargura. — No outro dia estava no cabeleireiro…

De repente, Lola sente que a empurra bruscamente.

— Cuidado, filha.

Um carro passa com o sinal vermelho.

— Andam como loucos. Eu digo-o ao teu pai; não andes tão depressa por Madrid porque algum dia ainda vais levar alguém pela frente… Mas não me ouve. Como sempre, claro; o teu pai nunca admite que lhe digam como tem de fazer as coisas.

Chegaram ao Niza.

— Estavas a dizer alguma coisa sobre o cabeleireiro…

— Ah, sim… Conto-te agora, quando nos sentarmos.

Procuram uma mesa. O estabelecimento está a rebentar pelas costuras. Há homens sozinhos, grupos de senhoras que bebem mosto e famílias inteiras com crianças.

— Vamos lá para cima? Lá pelo menos não deve haver carrinhos de bebé. Já viste bem o que isto ocupa…?

Di-lo em voz alta, enquanto evita um carro de grandes rodas do qual sobressaem folhos e laços cor-de-rosa, tendo especial cuidado para que as meias de seda não fiquem lá presas. Uma mulher com uma criança nos braços olha-a furiosa, mas cala-se: ninguém, ou quase ninguém, se atreve a responder às impertinências da sua mãe.

— Vais tomar um Cinzano ou queres outra coisa?

— Não, um vermute está bem, está-me a apetecer; mas que tragam azeitonas ou batatas, que depois o álcool sobe-me à cabeça.

A mãe abana a cabeça e olha-a com ironia.

— Minha filha, não acredito, que pouco aguentam as mulheres de agora. Ficam estonteadas com qualquer coisa.

— Mãe, é que eu não bebo todos os dias.

— E o que queres dizer? Que eu bebo?

— Bem, bebes vinho ao almoço, não é?

— Isso não conta. Quem te ouvir…

Lola tem vontade de recordar à sua mãe que também bebe um copinho de moscatel à sobremesa, na maior parte dos dias, e um Marie Brizard quando joga às cartas com as suas amigas…

— Pois o que te dizia do outro dia no cabeleireiro… Estavam-me a pintar o cabelo, porque eu agora, se quero estar apresentável, tenho de pintar o cabelo uma vez por mês, caso contrário a raiz aparece logo e dá a impressão de que não me arranjo… Bem, a questão é que estava a ler uma revista enquanto a tinta repousava, sabes como é, deixam-te ali, à espera durante uma hora, e ficas a ler ou a ouvir as conversas das cabeleireiras.

Chega o empregado com os vermutes. E as azeitonas.

— Traga também umas amêndoas salgadas. Ou uns amendoins.

O homem olha para ela. Não diz que sim, nem que não.

— Para a minha filha — acrescenta ela. — Porque, caso contrário, o vermute sobe-lhe à cabeça.

— Mãe! — exclamou Lola enquanto o empregado se virava.

— O que é que se passa?

— Não precisas de contar tudo ao empregado.

— Mas eu não lhe disse nada… Sem dúvida, estás cada vez mais melindrada, María Dolores.

Quando se zanga, chama-lhe sempre María Dolores. O nome tem um efeito imediato em Lola: sente-se de novo uma rapariguinha e não tem outro remédio senão obedecer.

— Bem, e o que se passou no cabeleireiro?

A mãe reage de imediato.

— Ah, sim… Havia uma mulher… Acho que era mais velha do que eu. Sim, tinha de ser.

Bebe um pequeno gole de Cinzano Rosso.

— Era dessas… não sei se estás a ver, dessas mulheres descaradas que apesar de tudo são fogosas, das que falam muito alto…

Lola pensou que sim, que sabia muito bem.

— Bem, então vai e diz à cabeleireira — e de seguida, inexplicavelmente, a mãe baixa muito a voz: — «Sim, minha filha, chegas a uma idade na qual te cai o cabelo de onde deves tê-lo e te nasce onde não deve.» E solta uma enorme gargalhada. Eu viro-me para ela e vejo que lhe estão a depilar os pelos da barba. Olha, menina — diz subitamente preocupada —, a mim não me está a aparecer barba, pois não? — Aproxima-se por cima da mesa, mas antes olha para um lado e para outro, como se tivesse medo de ser observada. — Olha bem para mim, porque eu já não vejo como antes… E não se pode contar com o teu pai para estas coisas.

— Não, mãe — diz-lhe Lola —, não tens barba. Podes ficar descansada.

Não é verdade. De há um tempo para cá nasceu no queixo da sua mãe uma espécie de penugem branca. Não chega a ser barba, mas nota-se, sobretudo quando põe pó de arroz.

— Enfim… — conclui, tirando o alfinete de dama que segura a mantilha. — Uf… que calor.

Dobra a mantilha preta com muito cuidado, renda por renda, e coloca-a sobre o missal. Depois passa as duas mãos pelo cabelo.

— Não vais adivinhar o que temos para o almoço…

Lola não sabe, como é evidente.

— Paelha. Ainda bem que vens almoçar, porque fiz demasiado refogado para o teu pai e para mim.

Levanta uma mão e pede a conta. De repente, Lola sentiu um clarão de ternura.

Efetivamente, almoçaram paelha. Com chocos e caranguejo. Comeram lombo e queijo. E filhós à sobremesa. Um almoço que Lola não se pode permitir na sua casa há séculos.

De repente, pensa nele. O que estará a fazer Matías? Já terá regressado a casa? Agora custa-lhe não lhe ter deixado um bilhete.

O seu pai saiu assim que acabou de almoçar. Jogar e tomar café no lugar de sempre, disse quando pegava no sobretudo e no chapéu. Lola e a mãe ficaram na sala, cada uma num cadeirão.

— Mãe.

Não estava a dormir, porque fazia tricô, mas assusta-se como se o estivesse.

— Mãe — repete Lola.

O tom é um pouco urgente.

— O que foi?

Hesita. E depois atreve-se.

— O que se passou no dia da minha primeira comunhão?

A mãe fica quieta, com as agulhas na mão, como se se tentasse lembrar.

— Não te estou a perceber…

— Porque é que tu e o pai estavam a discutir?

— Não sei a que te referes.

— Nessa noite o pai não dormiu em casa, pois não?

Largou o tricô. Ficou muito quieta, como que atordoada. Depois reage com uma certa agressividade.

— Que disparates são esses? Não sabes o que dizes.

— Mãe, o pai passou uma semana a dormir fora. Atiraste-lhe à cara nessa manhã, antes de irmos para a igreja. Eu ouvi-vos.

De repente essa mulher inofensiva transforma-se noutra pessoa. O seu rosto fica mais duro até ao ponto de Lola ter dificuldade em reconhecer a sua mãe. Volta a pegar nas agulhas, estica o novelo e dá por terminada a questão de uma vez por todas. Da única forma possível nesta altura.

— O teu pai não faltou a esta casa nem uma única noite de toda a sua vida.

Não olha para ela. Cruza as agulhas e puxa o fio com uma velocidade frenética.

— Mãe, o pai não vai ao bar jogar. Tu sabes muito bem disso. Vai à casa da outra. Virá dormir todas as noites, se tu o dizes, mas vive praticamente lá.

O novelo cai no chão. Roda uns metros e só para quando tropeça com a perna do aparador.

— Porque me fazes isto?

Ficou vermelha e desatou a chorar, não com pena, mas sim com uma estranha fúria que parece dirigir contra Lola.

— Que prazer encontras em fazer-me sofrer desta forma? — lamenta-se a mulher; está a falar mais alto do que é costume, quase aos gritos. — Não te percebo, juro-te que por muito minha filha que sejas não te consigo perceber.

Algo parecido acontece com Lola. Um enorme desencontro. Ela também não entende os motivos da mãe, nem como decidiu viver a sua vida. Não sente pena. De todo. Antes pelo contrário. Vê-la negar a evidência com essa teimosia insana não é, na sua opinião, a forma mais adequada para enfrentar uma situação que dura há demasiado tempo. Toda a vida, que ela se lembre. Ama a sua mãe, mas não pode sentir compaixão; pelo contrário, sente-se com frequência tão irritada com ela que tem impulsos cruéis: às vezes gostava de a abanar para que deixasse de fabricar mentiras nas quais já ninguém consegue acreditar.

— Porque é que não o deixas, mãe? — Ouve-se a si própria. E tem medo daquilo que possa dizer. — É um egoísta que nunca pensou em mais ninguém senão em si próprio. Deixa-o ir com essa mulher, que seja ela a aguentá-lo quando for velho. Que falta te faz a ti?

A mãe está a olhar para ela horrorizada.

— Deixar o teu pai? Estás louca?

— Mãe, não é assim tão grave. As pessoas separam-se. Sempre aconteceu e sempre vai acontecer.

— Mas achas que nós somos como esse… não sei como lhe chamar… esse teu Matías? — Furiosa. A tirar forças de umas convicções carregadas de fraquezas. — Ah, não. Nem pensar nisso. Nós acreditamos no matrimónio, é um sacramento. Isto não se apaga com uma dessas borrachas que vendes nessa tua lojeca de segunda.

Sim. A atacar com o estandarte da religião como se fosse um cruzado da Idade Média. A atacar como os ricos atacam os pobres: com desprezo. Mas é sua mãe… O que é que aquela mulher disse no outro dia? Que se pode chegar a matar por um filho. Matar para defendê-lo de um perigo. A sua mãe nunca o faria… Jamais a defenderia até esse ponto. O seu pai ainda menos. Teve a oportunidade de o fazer uma vez e fingiu que não viu. Nesta família esse é um princípio básico: olha-se sempre para o lado contrário àquele onde as coisas acontecem. Em especial as más.

— Tu é que sabes, mãe — disse levantando-se com calma. — O pai engana-te. E fá-lo embora tu te esforces por negá-lo. Toda a gente sabe. E tu também.

Pega no casaco e sai sem se incomodar em bater com a porta. Tem vontade de chegar a casa, de que Matías lá esteja. De o abraçar e de sentir o seu cheiro na escuridão da cama. Tem vontade de verificar que não se enganou.