27

As manhãs de primavera em Paris são muito bonitas. Os parisienses gostam de se sentar nas esplanadas dos cafés, ou nos elegantes salões de chá e pastelarias, muito mais do que irem aos parques, como os ingleses. Se está sol, todos os cafés se enchem de pessoas aparentemente desocupadas, por isso não fiquei surpreendida ao observar que, enquanto esperava que Frances saísse do cabeleireiro, um grupo de dois homens e uma mulher se sentasse ao meu lado no salão da Ladurée, na rua Royale. Não estávamos ao ar livre, mas as mesas encontravam-se colocadas perto de grandes janelas, o que tornava a minha espera um pouco mais animada.

Eu não tomo chá, não gosto de chá. Nisso sou absolutamente francesa. Tinha à minha frente um maravilhoso café au lait, com esse toque ligeiramente salgado que lhe proporciona a nata. Quente. Fumegante. Aromático. Acompanhado por um pratinho dos melhores macarons de Paris, com o seu refinado sabor a clara de ovo e amêndoa moída… Não sei porque é que, depois de me ter sentido perdida e infeliz há apenas duas noites, de repente me sentia bem, como se aquela Paris de 1922 fosse o meu lugar no mundo. Senti exatamente isso outras vezes, tenho de reconhecer, noutros lugares muito diferentes, mas essa foi a primeira vez que alguma coisa sussurrava dentro de mim: Rose, este é o teu lugar, vais ficar aqui e serás feliz. Agora, quando penso nisso, depois de tantos anos, acho que estava simplesmente a proteger-me de uma possibilidade: que Frances me pedisse para ir com ela para os Estados Unidos. Nunca gostei muito das mudanças, isso é evidente, e a ideia de abandonar Paris inquietava-me muito.

Bem, pois ali estava eu, com o futuro debaixo do braço como se fosse uma pochete, o meu café e os meus excelentes macarons da Ladurée.

A verdade é que reparei neles antes de entrarem, quando os vi parar no passeio. Sobretudo na rapariga. Imagino que tenha sido porque gostei do casaco que levava: cruzado, com um só botão, grande e branco, à altura das ancas. E do seu pequeno chapéu, que tinha uma fita vertical de cetim também branco e umas paillettes em tons dourados que lhe davam um ar muito sofisticado e moderno, desse estilo que agora chamam art déco. A questão é que entraram e se foram sentar na mesa do lado. Havia uma grande janela e as mesas estavam coladas ao vidro, duas em cada janela. O objetivo daquela distribuição era que os ocupantes de cada mesa dirigissem o olhar para o exterior, não para as mesas vizinhas. Exceto, claro está, que não se tivesse nada para fazer, como eu naquele momento, e que os recém-chegados criassem tanto alvoroço como eles. Comecei a prestar atenção aos risos e ao acentuado sotaque americano da mulher e de um dos cavalheiros. Num lugar como a Ladurée, onde as damas falam quase aos sussurros e às vezes até se houve o som da chávena de porcelana a pousar no prato, qualquer coisa dita em voz alta não é apropriada.

Pediram alguma coisa para beber.

A empregada ofereceu-lhes vários tipos de chá, cafés ou chocolat.

— Não têm nada com álcool? — perguntou a rapariga do chapéu de paillettes em voz alta.

Eram onze da manhã e aquilo era um salão de chá. Ninguém no seu perfeito juízo teria pedido álcool na Ladurée.

Também ninguém poderá ficar indiferente ao facto de, nesse momento, eu estar especialmente sensível ao que vinha do outro lado do oceano. Digamos que os americanos não contavam com muita simpatia na minha escala de valores. Acho que até recordei vagamente que Monsieur Hervieu costumava garantir que tudo o que era mau vinha do mar, empurrado pelo vento de oeste. Nesse momento aquela gente pareceu-me mal-educada, vociferante e estive tentada a dar-lhes a entender que talvez uma brasserie de Montparnasse fosse mais indicada para eles. Mas não foi preciso. As empregadas da Ladurée eram boas profissionais. Ouvi como lhes respondia em voz baixa e firme:

— Nós não, mademoiselle. Mas, se querem tomar um aperitivo, encontrarão o Hôtel Regina um pouco mais à frente. Talvez aí vos possam servir bebidas espirituosas quando abrirem o bar.

Achei graça à requintada observação da empregada sobre o quão cedo era para beber álcool, até num lugar como o Regina. Não sei se eles detetaram o desdém com que lhes tinha aconselhado que se fossem embora.

— Não, não, está bem — retificou a americana enquanto acendia um cigarro na sua boquilha de âmbar. — Vamos tomar um chá e alguns desses bolinhos de cores.

Apontou para a minha mesa.

A empregada olhou-me e inclinou a cabeça, como que a pedir desculpa pela falta de discrição daquela gente.

Acho que foi então que Frances chegou. Vinha com o chapéu na mão e o cabelo perfeitamente ondulado e brilhante. Não levava casaco, só uma capelina de lã a condizer com o vestido. Avançava para a minha mesa. A rapariga americana estava situada de frente, eu via-a fumar com ar indiferente, como se não estivesse ali, mas os cavalheiros estavam de costas. E de repente um deles levantou-se e foi ter com Frances. Fiquei petrificada. Ela também se mostrou surpreendida, mas depois cumprimentaram-se com carinho.

— Querido — ouvi Frances exclamar em voz baixa. — Há quanto tempo…

Pegaram nas mãos um do outro e estiveram assim uns instantes, sem que os outros conseguissem ouvir o que estavam a dizer. Sem dúvida, eu estava expectante, e devo acrescentar que não era precisamente pela positiva. Como era possível que Frances tivesse alguma coisa que ver com aqueles clientes tão mal-educados? De seguida pensei que eram amigos de Freddie. Não havia outra hipótese. Até os amigos boémios de Frances eram menos vulgares. Sem dúvida, nenhum deles se teria lembrado de entrar na Ladurée e pedir bebidas alcoólicas às onze da manhã.

Frances apontou para mim com um gesto. O homem e ela aproximaram-se da minha mesa. Eu não o reconheci. Imagino que ele também não me reconheceu. Tinha envelhecido e usava um desses casacos grossos de três botões que se tinham tornado antiquados, sobretudo num dia soalheiro onde a maior parte dos cavalheiros usava fatos claros e leves.

— Rose, querida, olha quem está aqui.

Eu sem saber quem era aquele homem de cabelo grisalho e dedos manchados de nicotina…

— Não te lembras? Esteve connosco em Elsinor Park.

Primeiro. Num clarão da memória, doloroso e inacessível, lembrei-me de James, morto e totalmente desaparecido, como só podem desaparecer aqueles que insistimos em esquecer. E nesse instante de natureza incerta, no qual as imagens se apertam como numa mala mal feita, vi Frances na casinha do rio… e também esse homem que me sorria.

Sim, não havia dúvida, era ele. Owen Lawson. Acabava de chegar a França. Pelo menos foi isso que disse.

Beijou-me a mão e o seu farfalhudo bigode branco tocou levemente nos meus dedos.

Os que estavam com ele também era escritores, pelos vistos. Apresentámo-nos. Um americano e a sua esposa. Nunca consegui recordar os seus nomes, porque certamente não cheguei a ouvi-los, mas lembro-me perfeitamente daquela rapariga que devia ter mais ou menos a minha idade, com o seu bonito chapéu, a fumar e a desdenhar o doce sabor dos macarons, enquanto desejava uma bebida com o queixo levantado e o olhar perdido.

Acho que Frances se apercebeu do meu incómodo e arranjou uma desculpa para ficarmos na Ladurée o menos tempo possível. Quando saímos, contou-me que Owen, era assim que ela lhe chamava, se tinha alistado como voluntário e tinha ficado gravemente ferido na batalha do Somme.

— Foi declarado herói de guerra e desde então vive em Inglaterra. Mas diz que está farto do campo, que quer vir para Paris. Casou com uma pintora australiana e têm uma filha, sabias?

Julguei recordar que naquela altura já era casado. E que a sua mulher era inglesa.

— Correu mal com a Violet; ela e a Mary Nicholson, a mulher anterior de Owen, estão sempre com litígios e pleitos. É por isso que mudou de nome.

Não percebi nada. Também não me interessava muito. Não gostava de Owen Lawson. Podia ser um grande escritor, mas como pessoa não me agradava nada. Nunca tinha gostado dele.

Chegámos ao restaurante onde Freddie nos esperava. Desta vez achei-o charmoso e até discretamente distinto. É incrível a rapidez com que podemos mudar de opinião sobre as pessoas.

Dois dias depois.

Dentro de poucos dias, Frances e ele apanharão um barco e atravessarão o Atlântico. Tal como eu temia, Frances sugeriu que os acompanhasse.

— Vais gostar da América. É um sítio fantástico, cheio de coisas novas, sobretudo para alguém da tua idade. Eu estou desejosa de ver aqueles enormes arranha-céus. E os clubes de jazz da 54th Street. E os teatros da Broadway…

Digo-lhe que não quero ir com eles, digo-lho sem rodeios.

— É demasiado longe para mim — acrescento sucintamente.

— Demasiado longe? — repete Frances como se não acreditasse em mim. — Longe de quê? De quem?

Percebo o que quer insinuar. Não tenho um marido, um namorado, um amante de quem ter saudades; não tenho uma mãe de quem cuidar, nem irmãos com os quais celebrar o meu aniversário. Só a tenho a ela.

Encolho os ombros e nego uma e outra vez, absolutamente convencida. Não consigo encontrar uma desculpa e ela dá-se conta disso. Acho que sabe que não sairei de Paris de forma alguma.

Porque é que me sinto tão atada a este velho continente? A América parece-me estranha; não percebo esse mundo elementar e simples que pretendem exportar para além das suas fronteiras. Frances diz que os americanos são pessoas com um extremo sentido prático, que não se preocupam com ninharias e que com eles é muito fácil saber sempre com o que podemos contar. Não discuto com ela. Mas não sei muito bem para que é que isso serve. Para os negócios, de acordo, pode ser. Mas há outras coisas na vida. E não me refiro só à arte. Como podem prescindir do que é ambíguo, improvável, incerto?

Estamos de novo no Blue Storm. Hoje nem sequer insisti para irmos ao L’Oiseau Sauvage. Já não penso contrariar os desejos de Freddie; afinal de contas, para quê?

Entrámos precisamente quando a rapariga do outro dia começava a cantar. Hoje tem um casaco preto com um grande decote em bico e uma saia curta, com três camadas de franjas sobrepostas que se mexem continuamente embora ela mal o faça. Freddie, como sempre, pede uma garrafa de champanhe.

— Eu vou tomar um cocktail — digo ao empregado. — Um daqueles que têm uma ginja e uma rodela de laranja.

Frances olha-me com assombro. Freddie também.

E depois, quando trazem o meu copo e Frances vê a cor avermelhada da minha bebida, solta uma gargalhada.

— Quando estiveres nos Estados Unidos — digo visivelmente ofendida —, vais ver que toda a gente os toma. É um Manhattan. Devias saber, tu que és tão moderna.

Pego no meu copo e levanto-me. Vou até ao palco. A cantora reconhece-me e pisca-me o olho quando vê o copo na minha mão. Sorrio-lhe. Hoje canta uma melodia diferente da do outro dia; simula que fala com o seu namorado e chama-lhe baby todo o tempo. Esta rapariga parece-me muito divertida, deixa-me de bom humor. Quando decido esquecer a minha irritação e regressar à mesa, vejo que, infelizmente para mim, Frances e Freddie estão acompanhados.

Estou rodeada.

Sitiada.

Acho que me devia render.

Aquele casal, os amigos de Owen Lawson. Aquela mulher de cujo nome não me lembro e a sua boquilha de âmbar… O Owen não está com eles.

— Não, não — está a ordenar ao empregado. — Para nós é uma garrafa de bourbon.

Chega mais alguém e também se senta. Há apresentações informais e nomes que ninguém ouve. São todos americanos. Americanos em Paris.

— Em La Gazette du Bon Ton — diz alguém à Frances. — A sério, tens de ler.

— O que é isso? Uma espécie de Vanity Fair?

E depois aquele homem que fala de La Gazette também olha para mim, com os olhos toldados de quem já bebeu demasiado. Nunca gostei das pessoas que não sabem esperar.

A mesa vai ficando maior, como acontece frequentemente no L’Oiseau Sauvage. Mas aquele não é o lugar, nem aqueles são os meus amigos do costume.

— A cenografia é do tal espanhol, Pablo Picasso, e a coreografia de Léonide Massine — grita Frances ao homem que está na outra ponta da mesa.

— Mistinguett e Maurice Chevalier — ouço alguém dizer. — É uma opereta.

— Mas ele é comandante de navios — protesta a mulher que está sentada ao meu lado. De certeza que só ela sabe a quem é que se refere.

Há outro americano. Sei o nome deste: Roger, e é de Cincinnati. Pelo menos não está bêbedo como os outros.

Falo com ele. Não tenho outro remédio. Pergunta-me pelas reuniões na casa de Gertrude e de Alice. A sua voz consegue elevar-se por cima da música. É grave, potente, viril.

— Ouvi falar dessas reuniões. Alan Campbell, o marido de Dottie, aconselhou-me a visitar-vos assim que soube que eu vinha a Paris. Estás a ver, Dottie, Dorothy Parker…

Eu não fazia a mínima ideia de quem era a tal Dottie. Também não era assídua nas reuniões na casa de Gertrude Stein, embora tivesse ido algumas vezes com Frances. A verdade é que encontrava sempre demasiados egos juntos naquele salão. As pessoas normais não conseguiam ter um espaço no meio de tantas celebridades e às vezes saía dali sem ter conseguido pronunciar uma única frase completa. Não é que me importasse muito, mas também não achava que os que monopolizavam a conversa tivessem assim tantas coisas importantes para dizer.

Roger é alto, entroncado e simpático. Acho-o bastante atraente.

Retira a sua cadeira do círculo que se formou à volta da nossa mesa e aproxima-a da minha com uma naturalidade surpreendente. Do balcão, a rapariga que canta com a orquestra volta a piscar-me o olho.

— Mas és inglesa ou francesa?

É uma pergunta que odeio. Nunca sei o que responder; às vezes esforço-me, mas isso significa dar demasiadas explicações.

— Cresci em França. Embora a minha família seja inglesa.

Parece ficar satisfeito com esta simples explicação.

— Eu quero viajar pela Europa, pelo sul, sobretudo, não sei se estás a ver, Nice, Riviera… Talvez também a Espanha… Daqui a dois meses vou para a Itália e arrendo alguma coisa lá para o inverno. Acho que a temperatura é agradável.

A música está-se a tornar demasiado estridente. Roger aproxima-se um pouco mais, enquanto lhe conto que eu e Frances estivemos várias vezes na Itália. Conforme vou falando, dou-me conta de que estou a tentar seduzi-lo de alguma forma. Quero-lhe agradar, parecer-lhe interessante, que me admire. Quero que se sinta atraído por mim. Falo-lhe de Siena e das villas do canal do Brenta. Ele só tem referências de Roma e de Florença.

Acha que Veneza é um lugar sujo e cheio de ratos.

— Não tenho bem a certeza se quero lá ir — diz com naturalidade.

A americana da boquilha de âmbar pede outra garrafa de bourbon. Há copos espalhados por toda a mesa. Frances e Freddie desapareceram na pista de dança.

— Talvez não devesses pensar nos ratos nem na sujidade — digo a Roger. — Ninguém o faz quando vê Veneza.

— Mas é assim tão… fascinante?

Dou-me perfeitamente conta de que está desejoso de se deixar convencer. E de que, de alguma forma que certamente nem ele próprio prevê, me está a pôr à prova.

— Sim, claro que sim.

A princípio tento explicar-lhe porquê, e depois decido calar-me porque não tenho palavras para descrever essa cidade sem cair nos clichés.

Olha para mim e sorri.

— Acho que não tenho outro remédio senão ir a Veneza — diz encostando-se na cadeira, com a satisfação daquele que conseguiu o seu objetivo. O seu peito contrai-se e estica a camisa branca.

E depois dobra-se, apoiando o cotovelo no joelho. Inclina-se para mim e fala em voz baixa.

— Virias comigo?

Sorrio. Agora sou eu quem se encosta despreocupadamente para trás.

— À casa de Gertrude e de Alice? — pergunto maliciosa. — Claro, um dia destes.

— Está bem, fica registado. Pode ser amanhã?

Então eu rio-me e ele também. De repente somos duas substâncias químicas que entraram em contacto.

Fizemo-lo. Já podemos voltar a relacionarmo-nos com o resto do mundo. Roger vira-se para o tipo que tem do outro lado.

— O sentido de humor dos ingleses é incrível, não achas?

E o outro olha-me e anui com as pálpebras semicerradas e a boca estupidamente aberta.

Estamos à porta. Alguém fala em irmos ao La Cloche, um clube de jazz que fecha mais tarde que o Blue Storm.

Frances e Freddie já decidiram há algum tempo que vão para casa.

— Ao La Cloche?! — exclama alguém com voz rouca. — Mas nessa espelunca tocam o pior jazz do mundo.

— Têm uísque?

— A jorros…

— Pois então vamos ao La Cloche.

Apanhámos vários táxis. Roger e eu partilhámos o nosso com a rapariga da boquilha de âmbar e o seu marido. Ela perdeu o chapéu e discutem sem parar durante todo o trajeto. Insultam-se da maneira mais azeda que já vi na minha vida e, quando chegamos ao nosso destino, ela recusa-se a sair do táxi.

— Deixa-os — diz Roger sem qualquer compaixão, enquanto deixa duas notas ao taxista. — Fazem sempre a mesma coisa. Esta noite vão expulsá-los do hotel e amanhã ela vai aparecer com um olho negro.

Não sei se Frances vai ser feliz rodeada por esta gente.