31

Às vezes ainda me lembro de como eu e Roger fazíamos amor. Tenho vergonha de o confessar; ainda por cima, até tenho vergonha de pensar nisso. Era certamente a única coisa que havia entre nós: uma grande atração sexual.

No outro dia pensei nisso. Era por ele? Era por mim? Porque éramos semelhantes? Ou era simplesmente porque tínhamos a idade e a oportunidade perfeitas para isso? Não vou revelar aqui detalhes escabrosos, mas gostaria de fazer justiça a tantas e tantas tardes, noites e manhãs nas quais, entre os lençóis da sua cama ou da minha, deixávamos passar as horas banhados pelas carícias e pela urgência. Sei que é injusto dizê-lo, até inadequado, mas não tive outro amante como Roger. E, apesar de tudo, ele não conseguiu ser…

Agora vejo-me ao volante do velho Bullnose pelas ruas da Normandia. Está um bonito dia. Desses com nuvens e abertas. Um dia normando. Vou sozinha. Sinto-me livre.

Não avisei os Hervieu. Acho que vão ter uma grande surpresa quando me virem aparecer.

Depois de Caen, sigo pela estrada de Saint-Lo, começo a ver as quintas de madeira e adobe, as propriedades cercadas por sebes e esse céu incomparável da Baixa Normandia. Não tinha regressado desde aquele verão em que a guerra estalou e Miss Abbott me levou para Inglaterra. Tenho uma espécie de nó no estômago.

Paro em Saint-Sauveur-Lendelin durante pouco mais de meia hora. Quero comprar uma caixa de tabaco. Levo um lenço de seda a Madame Hervieu que comprei numa das modernas lojas de Deauville, mas de repente lembrei-me de que o seu marido gostava de se sentar junto ao muro da casa, no banco de pedra, e que ali, ao acabar as tarefas do campo, Monsieur Hervieu enrolava um cigarro de tabaco de má qualidade e fumava-o com grande prazer. A lembrança desses momentos devolveu-me uma coisa que julgava ter perdido para sempre: um modelo de vida que não é nada parecido com a minha. Sei perfeitamente o que me está a acontecer e não me oponho. Todos os meus pensamentos circulam à volta da mesma ideia. E, no entanto, não farei nada porque ainda não sei como fazê-lo.

Passo ao lado da école communale des filles com os seus muros de pedra e as suas portas em forma de arco. Estava sempre tanto frio neste lugar… Agora a escola está fechada, as crianças acabaram as aulas, mas mesmo assim espreito por uma das janelas de vidros sujos que permitem ver o interior da sala na qual recordo ter estudado. Está praticamente tudo igual. Nem sequer me dou conta da deterioração que o tempo causa. É um espaço cheio de vida e devolve-me uma estranha energia.

Há um mercado ao ar livre em frente da igreja e da mairie. Os camponeses trouxeram todo o tipo de produtos locais: os queijos, a manteiga envolvida em grandes folhas de parreira, a sidra e as compotas ou doces de marmelo e de maçã. Quase recupero os sabores destes simples prazeres assim que os vejo. Um jovem dá-me os seus queijos para provar. Sorri satisfeito quando vê a expressão do meu rosto. Eu também lhe sorrio. Não preciso de um queijo, mas mesmo assim compro-lho. É muito estimulante verificar que a memória é capaz de relacionar dois sentidos tão longínquos como a visão de hoje e o gosto da infância. Há algo de mágico nisso.

Em frente da igreja há uma banca com uma mulher que vende sabonetes feitos por ela. Embrulha-os nuns tecidos de flores ou de quadrados, cada aroma num tom; há de alfazema, de mel, de lavanda… Falo algum tempo com essa mulher, ouço o seu sotaque normando que me é tão querido; conta-me que elabora os sabonetes como a sua avó lhe ensinou, mas que ela lhes acrescenta umas gotas de óleos essenciais que compra em Caen, e que a sua cunhada, que tem uma loja de tecidos, lhe oferece os mostruários para embrulhar as peças. Confessa-me que faz as barras de sabão à medida dos recortes de tecido que lhe oferecem. A apresentação dos seus produtos é tão bonita que não consigo evitar pensar no sucesso que uma coisa assim teria em Paris. Compro um de cada para dar uma prenda de boas-vindas à Frances. Tenho a certeza de que vai gostar.

São quase onze horas. Receio bem que vou chegar à casa dos Hervieu precisamente à hora do almoço, mas acho que não se vão importar. Conforme me vou aproximando da quinta sinto-me um pouco mais nervosa. Talvez devesse tê-los avisado. Como estarão? Como serão agora os rapazes?

Avanço pelo caminho de terra e vejo a casa de um só andar, um edifício comprido com vasos de flores nas janelas. Parece a casa de um conto infantil. Um desses contos nos quais as crianças são abandonadas no bosque. E, bem vistas as coisas, talvez seja.

Antes de desligar o motor, a porta abriu-se para dar lugar a uma mulher com o cabelo grisalho, que recolhe o avental para o lado e parece surpreendida ou assustada. Tem um lenço azulado à volta do pescoço. É Madame Hervieu, sem dúvida, reconhecê-la-ia nem que tivessem passado mil anos. Ela a mim nem por isso. Vejo a sua expressão de estranheza enquanto saio do automóvel e me aproximo, com os meus sapatos claros e as minhas meias brancas; as suas sobrancelhas levantam-se em jeito de interrogação quando observa o meu vestuário, e depois vejo a sua enorme alegria quando me aproximo e lhe confirmo que sim, que sou eu.

Não me abraça, vira-se para a casa.

— Bernard — chama aos gritos —, vem cá depressa, olha quem está aqui.

Monsieur Hervieu aparece à porta com o cigarro nos lábios. Tem um casaco de bombazina e um colete velho, talvez o mesmo que usava quando eu vivia com eles.

Ele também não me reconheceu.

— Olha quem é — insta-o a sua mulher; por um momento acho que se vai aproximar dele e o vai abanar para que reaja. — A Rose… é a Rose, a nossa Rose.

Pronuncia-o em francês. Gosto de verificar que em algum sítio deste mundo alguém ainda pronuncia o meu nome assim.

— Mas como é possível que venha aqui, sem avisar? Olhe para o nosso aspeto…

Passa as mãos pela roupa como se quisesse tirar um pó invisível.

— Por favor, madame — peço-lhe —, não me trate por você. Não conseguiria suportá-lo. Peço-lhe mil desculpas por ser inoportuna e por aparecer sem avisar.

— Inoportuna? Rapariga, não digas disparates, não é, Bernard?

E por fim abraça-me. Cheira como antigamente, a campo, a ar limpo, a comida de galinhas, a roupa que secou ao sol. Sinto-me bem. Na minha cabeça, de repente, as palavras de Emily Brönte fazem todo o sentido.

Tantas desculpas e explicações não valem de nada quando enfrento a infância. Está guardada nesta cozinha, aninhada na fruteira, nos pratos de peltre, nos olhos cinzentos de Madame Hervieu. A minha infância. O que eu era.

— Continuas a ser tão estudiosa? — pergunta inocentemente Madame Hervieu; ela não consegue saber o que acontece dentro de mim. — Meu Deus, gostavas tanto de ler… Tinhas sempre um livro nas mãos.

Tem o lenço de seda nas suas. Toca-lhe como se fosse demasiado delicado para ela, mas, mesmo assim, não se decide a metê-lo de novo na caixa. Agradeceu-me de uma forma um pouco tímida, e acho que quer tê-lo em frente para encontrar o modo de mo agradecer de novo com maior entusiasmo. Mas eu gostava que o guardasse de uma vez por todas.

— Na verdade, ultimamente leio pouco. Vivo com a minha tia, a irmã da minha mãe. É uma mulher muito ativa e a vida social ocupa-me muito tempo.

Madame Hervieu acaricia o lenço com os seus dedos nodosos.

— Sempre pensei que chegarias a ser alguém importante.

Dá-se conta de que talvez tenha ido demasiado longe.

— Quero dizer que eu e o Bernard — olha para o seu marido um momento; a caixa de tabaco também está em cima da mesa — comentámos muitas vezes que tu não eras como as outras raparigas que precisam de um marido, já sabes como é; disse muitas vezes ao Bernard que não conhecia ninguém que conseguisse fazer qualquer coisa a que se propusesse na vida, a não ser tu.

Estou prestes a desatar a chorar.

— E os rapazes? — Tento mudar de assunto. — Como estão?

O rosto de Madame Hervieu ilumina-se.

— Ui — exclama —, são os três casados e vivem nas suas próprias casas.

— Até o Marcel?

— Sim, sim, o mais novo também. Tem um filho de dois meses. Como passa o tempo, não é?

Esta vida… Uma linha reta, sem sobressaltos.

— Espero que almoces connosco. Estou a fazer matelote de enguia, lembras-te?

Lembro. As crianças não gostavam nada dessa sopa feita com peixe que ofereciam a Monsieur Hervieu em Pirou e que se cozinhava em lume brando acrescentando cogumelos da época.

— E depois tarte de ameixa. Das nossas, das da casa. De certeza que em Paris não encontras ameixas que durem o verão inteiro, pois não?

Fico com eles. Almoçamos os três. Na mesa gasta, a mesma onde estudava quando era criança, a mesa onde debulhávamos milho ou entrançávamos chalotas. O lugar onde tudo acontecia. O centro do Universo.

Depois de almoçar, Madame Hervieu insistiu para que fôssemos visitar o seu filho Marcel, que vivia a dois quilómetros dali, no caminho de Périers.

— Depois podes ficar a dormir no teu quarto. Está como o deixaste.

Não queria desiludi-la por nada do mundo, mas à medida que as horas passavam sentia-me cada vez mais desconfortável. Não podia ficar a dormir ali de forma alguma. Sabia que algo dentro de mim estava prestes a explodir.

Fomos no meu carro. Quando liguei o motor e os vi aos dois ali, apertados um contra o outro, esse mal-estar diminuiu um pouco. O ar da tarde estava levemente perfumado pela flor tardia das macieiras. E desanuviou a minha cabeça durante alguns instantes.

A quinta era nova. Um edifício de pedra de dois andares com um terreno em frente onde vi um arado, uma carroça com o eixo apoiado no chão e uma junta pendurada na parede do alpendre. Quem nos abriu a porta foi um homem alto e encorpado que beijou Madame Hervieu sem tirar os olhos de cima de mim. Era impossível reconhecer o pequeno Marcel naquele indivíduo de nariz achatado e corpo proeminente. Tanto ele como a sua mulher, uma ruiva magra e séria, se sentiram incomodados com a visita, embora tenham disfarçado, mas era evidente que a minha presença os colocava numa situação forçada com a qual, de repente, não sabiam lidar. Felizmente a criança fez as delícias de todos e foi passando de mão em mão, até que começou a chorar de forma desconsolada e eu consegui despedir-me daquela que tinha sido a minha família durante anos. Ali não havia lugar para Rose.

Excluída, sem um lugar onde passado e presente não se importunassem um ao outro.

Circulei cerca de quinhentos metros, até que a quinta se perdeu de vista. Parei o carro na entrada de um caminho e desatei a chorar. Não me lembro de ter chorado tanto na minha vida.