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A verdade é que, para o bem e para o mal, nunca agradecerei o suficiente a Frances por me ter permitido conhecer a Paris dos anos vinte.
Vi Jordan Miller mais duas vezes antes de ir para Inglaterra. A última foi no Criterion. Faltavam dois dias para Frances regressar e Roger já estava na Itália, por isso eu sentia-me numa espécie de limbo. Tinha pensado ficar em casa, mas os meus amigos, René e Suzy, apareceram antes do jantar e vi-me obrigada a ir com eles.
Comemos uns canapés no bar do Criterion, onde René tinha combinado com uns músicos que ia contratar para a festa de anos de Suzy. Quando já lá estávamos há mais de meia hora, juntaram-se à reunião os Moore, Marianne Frost, Jordan Miller e a sua mulher, Elizabeth, que era oito anos mais velha do que ele e que o seguia com uma atitude tão dedicada como incompreensível; algum tempo depois apareceram também Dick Parker e Maida. Não havia um único serão no qual não estivessem presentes. Dick era bonito, tão bonito, refinado e elegante que até deixava de ser atraente para as mulheres. Mais tarde, Jordan disse sobre ele, quando a amizade entre os dois já tinha ido por água abaixo, que era tão fino e delicado como uma donzela. Maida era um pouco incómoda para mim, porque dava a impressão de estar perfeitamente bêbeda a qualquer hora do dia em que a encontrássemos. Sem dúvida, era impossível ir ao bar do Criterion e não encontrar algum conhecido. Os serões costumavam acabar numa espécie de assembleia de belos e malditos, tão eufórica e incontrolável como a Paris da época.
As conversas.
Sempre díspares, confusas, arrevesadas.
— … é capaz de beber uma garrafa de bourbon numa noite…
Alguém atrás de mim arrasta uma cadeira.
— … e então apareceu quase nua…
Um homem beija-me na face, não consigo lembrar-me de quem é; mas sei que depois se senta longe, no outro extremo da mesa. E que isso me entristece durante um instante.
— … um livro daquele poeta irlandês…
E uma voz de mulher que chama o empregado.
— … que grande discussão tiveram…
— Mas tu lês poesia? Eu já só leio romances. O futuro é o romance…
Sei que ali há pessoas com um verdadeiro talento, e também vários farsantes.
— Ouve, a poesia não tem o mínimo futuro.
Nessa noite, à exceção de mim e de René, todos os outros eram americanos, Suzy também. Costumava acontecer. Às vezes, eu própria me perguntava onde tinham ido parar os nossos amigos franceses. Uns meses depois tinha afastado este marulho do outro lado do oceano da minha vida.
— … ah… mas, querida, é de Idaho, como é que não havia de estar louco?
Americanos. Eram criativos, espontâneos, irreverentes. Mas sobretudo escandalosamente otimistas. Roger tinha razão: a Europa tinha envelhecido e todos aqueles estrangeiros se apoderavam pouco a pouco de Paris. Esta impressão era real ou tinha que ver com o simples facto de Frances estar há três meses fora e de eu não me ter deixado levar por Roger?
— Ele deu-lhe um murro e atirou-a ao chão. Ali, à frente de toda a gente…
Alguém pede outra garrafa. Mais vozes e mais risos. E rios de álcool.
Os músicos chegaram e René foi para uma ponta da mesa com eles, para negociar as condições. Quando René deixa a sua cadeira livre, Miller levanta-se e vai-se sentar ao lado de Suzy. Sei o que vai acontecer de seguida.
No outro extremo da mesa, Maida, que está sentada ao lado da mulher de Miller, bebe o rum de Jordan e faz um sinal ao empregado, mostrando-lhe o copo vazio.
E ouço como num sonho já sonhado:
— Uma bala… e aquele pobre soldado italiano que…
Suzy é uma americana muito simpática e vistosa. Tem o cabelo vermelho e comprido, muito encaracolado. Usa-o sempre apanhado de formas diferentes e qualquer coisa que faça com essa extraordinária cabeleira fica fantástica.
— Não podia deixá-lo morrer ali, tu percebes…
Não foi certamente o seu cabelo que Jordan viu em primeiro lugar, porque Suzy, que é muito alta, muito bonita e muito rica, tem uns bonitos seios. E isso deixa os homens loucos. Hoje leva uma túnica de desenhos geométricos, aberta dos dois lados e unida por fitas estreitas do mesmo tecido que desenham o percurso completo do seu corpo nu. Quando está sentada, esta pequena abertura lateral deixa ver a bonita curva ascendente dos seus seios grandes e firmes. Entendo o coitado do Jordan. É difícil não olhar para ali.
— Sim… fui condecorado… O governo italiano…
René regressou. Os músicos foram-se embora.
— Olá, amigo — diz a Miller. — Já aqui estou. Podes ir para o teu lugar.
Jordan levanta-se contrariado e regressa para a outra ponta da mesa, onde Maida fuma enquanto olha obsessivamente para o vazio.
— Quem era aquele? — pergunta René a Suzy.
— Um jornalista. Acho que me disse que era correspondente do Toronto Star.
São os anos vinte. Somos jovens, intrépidos e todos uns perfeitos desconhecidos.
Marianne Frost está a tentar dizer-me alguma coisa através das vozes e dos risos, quando me dou conta de que Owen está ali, numa mesa mais atrás.
Ele também me vê. Cumprimenta-me com uma inclinação de cabeça e levanta-se quase de imediato e aproxima-se; primeiro dirige-se aos Parker e depois faz um sinal ao seu acompanhante, um tipo com óculos e bigode que parece um professor universitário, para que também se aproxime. Vejo que os apresenta, ou talvez já se conhecessem, porque Dick e o homem dos óculos apertam a mão com entusiasmo e começam a conversar animadamente. Depois Lawson percorre o perímetro da nossa mesa, passa em frente a Miller sem lhe prestar a mínima atenção, e chega à ponta em que eu me encontro. René empurra a sua cadeira e deixa-lhe um espaço. Agora Owen Lawson finge falar comigo enquanto não tira os olhos do vestido de Suzy.
— Há algum tempo que não vejo a Frances — diz com esse sotaque tão puramente inglês que de repente me choca como se não o ouvisse há mil anos. — Disseram-me que tinha atravessado o Atlântico.
— Regressa daqui a dois dias. Esteve na América quase três meses.
— Oh! Uma viagem longa, sem dúvida.
Acende um cigarro e o fumo chega-me diretamente aos olhos.
— Vão ao casamento da filha dos Ferguson?
Fico surpreendida com a pergunta.
— Sim — respondo laconicamente.
Põe o cigarro na boca com esses dedos de unhas compridas, manchadas de nicotina.
— Então vemo-nos lá.
O que é que me incomoda neste homem? Não é o seu aspeto. Não só. Nem a sua conversa. É culto, educado, agradável. Imagino que a minha aversão tenha que ver com Elsinor Park e com a forma como senti que eu era demasiado jovem e não estava à altura. Cada vez que voltava a encontrar-me com Owen Lawson sentia-me assim. Estranhamente excluída. De alguma coisa. Não sei de quê. Talvez do leito no qual Frances e James se encontravam às escondidas enquanto eu só lhe podia ler livros. Enfim. Assim era. Absurdo, eu sei. Mas também inevitável.
— Rose? Rose Cosway?
Há um homem à minha frente. Demoro uns segundos a reconhecê-lo.
— Elliott — murmuro contrariada quando reconheço o seu desagradável sorriso. — O que estás a fazer em Paris?
Dá-se conta de que não fico nada contente por o ver.
— Vim com a minha noiva. A Sarah não te disse nada? Estiveste com ela em Deauville…
— Não — respondo educadamente. — Não sabia de nada.
— Gostava que a conhecesses.
Sigo-o, tentando não parecer muito antipática. Há uma rapariga muito jovem sentada numa mesa para dois. Não parece estar muito divertida.
— Florence, tenho o prazer de te apresentar Rose Cosway.
A rapariga levanta-se e esboça um tímido sorriso.
— Somos quase parentes — acrescenta Elliott olhando para mim —, não é?
Aperto a mão da sua noiva. Quase parentes… O que é que queres dizer com isso, Elliott?
Não me quero sentar com eles. Explico-lhe que tenho outro compromisso, que estou com uns amigos na mesa do fundo. Elliott e Florence viram-se para lá. Dick Parker levantou-se, com o seu copo na mão, e diz alguma coisa que deve ser muito engraçada, porque desatam todos às gargalhadas.
— Escritores americanos, sabes como é — digo a Elliott de forma perversa. — O teu irmão ia gostar deste ambiente.
O dedo na ferida. Quase parentes, não é isso…?
Despedimo-nos até ao dia do casamento.
— Já agora — comenta-me como quem não quer a coisa, mas com interesse —, o duque de Ashford também vai lá estar, já sabes?
— Sim — respondo com um considerável sangue-frio. — Alguém me disse, não me lembro bem de quem. Vai ser um acontecimento memorável, sem dúvida. Fico contente pela Sarah e pelo Charles; já sabes que gosto muito deles.
Elliott não tem tempo de responder porque me despeço da sua noiva com uma leve inclinação de cabeça e deixo-o a falar sozinho.
Na minha mesa a festa continua. Eu estou profundamente alterada.
Olho para todos. Um por um.
Nessa noite, assim que chego a casa, escrevo a Roger para lhe dizer que depois do casamento vou para a Itália.