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Ainda não vieram buscar o cadáver. Estão à espera do juiz.

Quando eu e Henry chegamos à curva de Hampstead onde aconteceu o acidente, Sarah e Charles já lá estão. Foram os primeiros a saber. Ao que parece, Frances levava o convite na mala, e a polícia apareceu na festa, onde ainda restavam alguns convidados, para procurar alguém que pudesse identificar o cadáver. A sua noite de núpcias tinha-se transformado em algo sinistro. Não consigo estar totalmente consciente da minha dor; ainda por cima, sinto uma enorme pena de Sarah, como se a desgraça lhe tivesse acontecido a ela e não a mim.

Abraçamo-nos. O corpo de Frances está tapado com uma manta do exército. Não quero olhar. Não posso olhar.

Sarah leva-me para longe desse vulto inerme, até à árvore contra a qual o Morris Bullnose bateu. Charles conta a Henry que foi ele quem identificou o cadáver.

O Morris tem a parte da frente destruída e o radiador à vista. Ainda fumega um pouco. É ridículo, mas custa-me que o Morris tenha ficado assim. É o Morris Bullnose de Frances, repito para mim uma e outra vez.

Não sei o que fazer com o meu corpo, que não me obedece. Quero desmaiar, sair deste pesadelo que parece uma brincadeira macabra.

E ainda haverá mais.

Mais e mais dor.

Mais malditas surpresas.

Começa a chover quando chega o Rolls-Royce do qual sai o meu pai. Surpreende-me muito vê-lo ali. Ainda ninguém conseguiu que chegue o juiz.

Ele também me abraça. O nosso primeiro abraço…

— Lamento muito, querida — diz ao meu ouvido. A gola do seu sobretudo cheira a uma mistura de suor e de vetiver.

Depois alguém propõe que nos refugiemos nos carros. A chuva está a molhar o corpo de Frances. Um polícia coloca o seu capote em cima da manta e eu tenho vontade de me meter dentro desse tecido molhado e de a abraçar com todas as minhas forças para impedir que se vá embora.

Frances…

Sarah, Charles e Henry acomodam-me no Rolls com Sir Edgar. Todos devem pensar que precisamos de estar a sós.

Sentamo-nos um em frente do outro. Ele inclina-se para a frente e estende-me as mãos, como há umas horas. Não quero que o faça; não sei porquê, mas a única coisa que desejo é ter as palmas apoiadas no couro bege do assento. Quero estar assim. Deixa-me ficar apoiada em alguma coisa real, pai.

Entrego as minhas mãos como se entregasse a vontade.

— Quero que saibas que, embora acabes de perder a tua mãe, não estás sozinha. Eu vou cuidar de ti.

O que está a dizer?

— Não te preocupes.

Mãe? O que é que este louco está a dizer? Mãe? A minha mãe chamava-se Margaret, Maggie. Era tua amante, Edgar Goodwill, e tu deixaste-a abandonada ao seu destino. O destino era eu, sabias?

— Vou fazer tudo o que for necessário para que tenhas o nosso apelido. Nunca passarás qualquer privação.

Quero sair deste carro. Retiro as mãos e abro a porta do Rolls. Os meus sapatos brancos pisam uma poça. Corro para os outros carros, procurando Sarah desesperadamente. Finalmente, vejo-os. Estão os três juntos. Charles fuma com a janela aberta.

Fico ali em frente. Parada debaixo da chuva. Com o rosto marejado de lágrimas e os olhos arregalados de susto.

É Henry quem sai e me obriga a entrar no carro da polícia. Vejo que por fim levaram o corpo de Frances. Tenho vontade de gritar.

É tudo verdade. Sarah confirma-mo.

Verdade.

— A Frances fez-me prometer — Sarah vira-se para Charles —, fez-nos prometer a todos que nunca te diríamos nada.

Não percebo. Não consigo perceber.

Quando amanhece, levam-me de novo ao hotel. Chamaram um médico, que me injeta um calmante. Sarah quer ficar, mas é a sua noite de núpcias, não o posso permitir.

— Podes ficar comigo? — peço a Henry.

Não sei porque o faço. É um completo desconhecido. Também não sei porque é que lhe suplico que se deite na cama e que me abrace. Dormimos assim. A nossa primeira noite.