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Passei pela ótica para avisar Sagrario de que hoje não posso ir com ela ao ensaio. São quase dez, mas parece que acabam de abrir porque ainda está a vestir a bata.

— Ah, ainda bem — diz-me quando lhe conto que tenho de ir ao consulado. — Eu ainda não estou recuperada do susto do outro dia.

É uma rapariga um pouco impressionável. Eu já me tinha esquecido completamente do incidente. Tenho vontade de lhe contar que ontem encontraram morto um dos meus vizinhos, para que se dê conta de que em Madrid essas coisas estão constantemente a acontecer.

— Saiu nos jornais alguma notícia sobre o assalto que a senhora presenciou no outro dia? — pergunto-lhe, embora saiba a resposta de antemão.

— É curioso — responde-me ela com ingenuidade —, não vi nada. E na rádio também não disseram nem uma palavra.

Não sei se lhe devo dizer o que penso. Por fim, faço-o, subtilmente, mas faço-o.

— E não será porque o homem foi assassinado pela polícia por erro e não querem que se torne público?

Sagrario duvida durante um instante. Aperta o último botão da bata branca e depois encolhe os ombros.

— O meu pai também diz isso — confessa em voz baixa. — E talvez tenha razão, sabe? Porque fui à esquadra para testemunhar, disse-lhes que tinha visto tudo, e a verdade é que não me ligaram muito. Disseram que, se precisassem do meu depoimento, me chamariam.

Volta a encolher os ombros como se aquilo fosse demasiado complicado para ela.

— O meu pai diz — repete baixando ainda mais a voz, apesar de estarmos sozinhas — que não me vão chamar. O que acha?

— Acho que o seu pai tem razão.

— Mas é injusto. Aquele pobre homem não tinha feito nada e mataram-no ali mesmo, à frente da sua mulher. Não acha que deviam castigar o polícia que o fez?

Esta rapariga é demasiado ingénua.

— Tente esquecer — respondo. — Não pense mais no assunto. A senhora não pode resolver nada, não está nas suas mãos.

— É verdade — admite ela.

Entrou alguém.

— Então, vemo-nos na quarta-feira que vem? — pergunta-me um pouco mais animada.

— Sim, na quarta-feira que vem — digo sem muita convicção.

No fundo, eu também sou um pouco ingénua, penso enquanto me dirijo, dando um passeio, ao consulado britânico. Vou uma vez por mês. Encontro-me com o cônsul ou com o seu secretário, faço um novo requerimento e volto a casa de mãos vazias. Mas não me rendo. Claro que não.

«Tente esquecer», disse a Sagrario. E eu sou a primeira a não o fazer. Embora tenha de vender todas as propriedades a Constance, vou continuar aqui até que o governo espanhol o reconheça.

O ritual de sempre.

Entrar no consulado. Cumprimentar Dorothy, perguntar pelos seus filhos, que estão num colégio em Inglaterra, cumprimentar Christopher, que se queimou numa mão e a tem aparatosamente ligada, encontrar-me com Nigel tentando não fazer nenhuma referência ao facto de ele ter tirado o bigode e, ao mesmo tempo, tentar mostrar-me amigável para que não me acusem de ser uma velha louca que está há dez anos a chatear com a história do seu marido… Tentar… Esforçar-me… Não desfalecer, apesar do esgotante que é.

Quando já preenchi o novo formulário, uma vez concluído o encontro com o cônsul Vickers, despeço-me de Dorothy. Faço-o sempre.

Reparo que tem pendurado na parede, ao pé da sua mesa, um desenho de uma papoila. Imagino que foi feito por algum dos seus filhos. Por debaixo estão escritos uns versos: «Nos campos da Flandres as papoilas florescem/entre as cruzes, fila após fila.» Sei o que significam essa papoila e esses versos. Qualquer inglês o sabe.

Sorrio-lhe e ela retribui-me o sorriso ao ver que reparo no desenho. Eu e Dorothy temos algo em comum. O seu marido morreu há uns anos, durante a Segunda Guerra Mundial. Era piloto da RAF e abateram o seu avião algures entre a Dinamarca e a Holanda.

— Olhe, guardei uma para si.

Tira da gaveta uma dessas papoilas de papel que se fabricam para o Remembrance Day. Em Inglaterra, no dia 11 de novembro, toda a gente as usa.

— Já passou a data — diz Dorothy com evidente pesar —, mas pensei que talvez a visse antes.

— Não se preocupe, querida — respondo enquanto coloco a papoila na lapela do casaco. — Qualquer data é boa para recordar os que partiram, não acha?

Esse será o único consolo que levo hoje da minha visita, porque o encontro com o cônsul foi tão infrutífero como sempre.

— Como é que correu hoje? — pergunta-me atenciosamente.

— Como sempre — respondo.

Dorothy tem carinho por mim. Já são muitos anos a vir reclamar.

— E não se cansa?

Falámos outras vezes sobre isso. Ela acha que o governo espanhol nunca dará o braço a torcer.

— Tenho de o fazer, querida. E não é assim tão complicado: só têm de reconhecer que aqueles soldados mataram o meu marido quando a guerra já tinha acabado.

— Eu percebo — Dorothy não acha que seja tão fácil como eu —, mas isso seria o mesmo que reconhecer que foi um vulgar assassínio e não uma baixa de guerra.

— Eu sei.

Acho que me compreende, mas afinal de contas o que é que isso interessa? Cada vez me importa menos a opinião dos outros.

Quando saio do prédio, vou dar um longo passeio até à Glorieta de Atocha, onde apanharei o autocarro de Carabanchel.

Normas. Acordos e convenções. Todos a cantar, a rezar ou o que for mais conveniente nas mesmas datas…

Não. Lamento, mas não. Hoje é para mim o autêntico Remembrance Day. Porque é hoje que recordo essas pastagens de montanha arrasadas pelas geadas. É hoje que ouço os hinos dos que vão morrer… «Nos campos da Flandres as papoilas florescem/entre as cruzes, fila após fila.» E nos de Espanha também. Embora toda a gente queira esquecê-lo.

O autocarro já está na paragem. Antes de entrar, compro um ramo de flores a uma cigana que tem três grandes baldes cheios de crisântemos e de cravos.

Esta viagem, como uma liturgia.

Uma vez por mês, aconteça o que acontecer, quase sempre depois de ir ao consulado, vou ao cemitério britânico e visito o túmulo de Owen. Quem diria, quando o conheci na casa dos Ferguson, e depois, quando nos encontrámos de novo em Paris, que ia acabar por ser um dos meus melhores amigos. Coitado de Owen, que amizade tão estranha tivemos e que longe estás agora. É terrível, mas temos de fazer um grande esforço para não nos esquecermos dos mortos.

Estes autocarros não são muito confortáveis, sobretudo quando estão cheios de gente; agora não é o caso, tenho dois bancos só para mim. Sentei-me junto à janela, porque assim consigo ver como a paisagem vai mudando. Algum tempo depois de atravessar o rio, quando o autocarro começa aos solavancos por causa dos buracos, vejo que estão a construir um bairro novo. São casas humildes, uns cubos de quatro ou cinco andares, que parecem diretamente colocados em cima da terra por asfaltar, como se os tivessem atirado para ali de qualquer maneira. Madrid está a crescer. Nos últimos quatro anos tudo mudou muito, sobretudo na periferia. Desapareceram as terras de lavoura, os pequenos vinhedos e os campos de melões; agora há bairros novos por todo o lado.

O autocarro enfia-se num troço de estrada no qual não há uma única edificação; são apenas trezentos metros, mas parece que saímos da cidade, e depois entra numa larga rua sem asfalto. As casas aparecem alinhadas dos dois lados, brancas, com grandes portões, uns castanhos e outros pintados de um estranho azul-anil. Essa cor lembra-me as aldeias que percorremos durante a guerra, quando tentávamos chegar a Madrid naquele velho camião militar. Quase todas as casas têm um pequeno quintal. Numa delas há um mecânico com a persiana metálica levantada e noutra uma taberna com uma barrica à porta. É preciso ver como este tipo de construções condiz pouco numa capital. Não imagino nada parecido em Londres ou em Paris. E, no entanto, sempre gostei deste aspeto de aldeia grande que tem Madrid.

É a minha paragem. Pego nas flores, que deixaram o banco molhado, seco-o como consigo com a palma da mão e puxo a argola para que o condutor saiba que vou sair. Uma mulher que leva um cesto ao colo e um xaile preto nos ombros sorri-me sem motivo. Estou prestes a agradecer-lhe por esse gesto tão inesperado e atencioso. Os espanhóis sorriem pouco. Foi a primeira coisa que me surpreendeu ao chegar aqui. Pensei que era por causa da guerra, e depois por causa do pós-guerra, mas agora apercebo-me de que são assim. Devolvo-lhe o sorriso e saio com o meu ramo de flores.

A lápide está salpicada de lama. Não consigo limpá-la porque não tenho onde arranjar água, mas não faz mal; quando voltar a chover limpar-se-á sozinha. Acho que não vai demorar muito, porque o céu está nublado.

O que me incomoda é ver que o ramo que deixei aqui na última vez desapareceu. Sei que há pessoas que o fazem, disse-me uma vez o guarda: roubam as flores dos outros túmulos para pô-las nos dos seus familiares. Não me importo minimamente, tenho de admitir; não me parece que ninguém faça isso por maldade ou por avareza; antes pelo contrário, inclino-me a pensar que se o fazem é porque não tiveram a possibilidade de comprar um triste ramo de flores aos seus defuntos.

Enfim, Owen, aqui tens estes crisântemos amarelos que comprei a uma cigana. Pensa que depois, se alguém os levar, já são dois a usufruir deles.

Lamento muito que não estejas a descansar nas praias de Dover como querias.

Também lamento não ter posto no teu epitáfio aqueles versos de Matthew Arnold de que falámos uma vez: «Arrastados por alarmes confusos de luta e fuga/Onde exércitos ignorantes chocam de noite.» Mas prometo-te que, mais cedo ou mais tarde, o farei.

Se um dia voltarmos a casa, fá-lo-ei.

Entretanto, não estás mal aqui, pois não? Afinal de contas estamos juntos… Neste país ao qual chegámos a pensar que íamos ficar apenas dois meses.

Sim, já sei que o epitáfio que mandei gravar na lápide parece um pouco fora do comum, mas este é solo britânico, querido; aqui qualquer um pode ser tão excêntrico quanto quiser. E, além disso, pensei que te divertiria. Não viste aquele panteão que está ali ao fundo? Puseram uma placa esmaltada com a imagem de um macaco ao morto. Deve ser um animal de estimação, digo eu, mas é demasiado extravagante, na minha opinião. Tu tens como epitáfio a frase que mais me surpreendeu quando te conheci. É uma forma, como outra qualquer, de te ter presente. Gosto quando a leio. É como se te estivesse a ouvir.

Vou limpar aquele primeiro «s» que ficou ilegível por causa da lama. Agora sim. Agora entende-se. Gostava que o meu amigo livreiro viesse ver isto.

Conrad e tu.

Essa amizade que, como a nossa, sobreviveu ao tempo, às discussões e à morte.

«Só houve dois assuntos pelos quais discutimos: sobre o verdadeiro sabor do açafrão e se é possível distinguir uma ovelha de outra.»

Agora tenho de ir, Owen. Acho que vai chover.

Quando entro de novo no autocarro penso que amanhã é quinta-feira… Quando é que lho direi?