41
— A senhora fica cá no Natal ou vai para o seu país? — pergunta Lola.
— Não, não — respondo de imediato, sem considerar a resposta —, vou ficar em Madrid.
— E o seu filho vem passar as festas consigo?
— Quase de certeza que sim — minto descaradamente; afinal de contas, ainda faltam mais de dez dias para esse dia.
Pegou com cuidado no meu casaco e vejo que passa distraidamente uma mão pelo tecido.
— Que suave — exclama com essa espontaneidade tão sua. — Que tipo de lã é?
— Não é lã, é vicunha.
— É como a alpaca, mas mais caro, não é?
Rio-me porque às vezes é tão direta que parece uma rapariguinha.
— Sim — admito —, acho que a tiram de uns animais que existem nos Andes.
— É incrível, não pesa nada.
— E, no entanto, é muito quente. Tenho-o há pelo menos vinte anos, mas nunca está fora de moda.
Deixou o casaco com muito cuidado em cima de uma montanha de livros que estão empilhados na mesa.
— A minha mãe diz sempre: o que é bom dura. — Depois olha-me e encolhe os ombros. — Mas claro…
Nesse claro está resumido todo um mundo de perdas e de calamidades.
Espero ter a oportunidade de pôr os livros na estante, porque hoje trouxe quatro exemplares: um novo de Faulkner, um de André Gide e um de Paul Valéry, os dois em francês, e outro com encadernação espanhola que contém duas obras de teatro de Shakespeare. No sábado vou comprar a Matías o de Faulkner e o de Edith Wharton que trouxe no outro dia, e depois não tenho outro remédio senão começar a comprar exemplares em francês porque já não me restam edições inglesas em casa.
— Ontem estive com a minha mãe naqueles grandes armazéns, as Galerías Preciados. Fomos comprar as prendas do Dia de Reis, sabe como é, depois lanchámos num café de estilo inglês, não sei se conhece, o café La India… Lembrei-me de si.
Sentámo-nos quase ao mesmo tempo. Vejo que o livro está preparado na escada de três degraus que há atrás de Lola.
— Disse à minha mãe que tinha uma amiga inglesa.
— Ah, sim? E o que disse a sua mãe?
Lola ri-se.
— Acho que não lhe devo dizer.
— Bem, não deve ser assim tão grave.
— Sim, garanto-lhe que é.
— A sério? Estou a ficar curiosa. Isso não se deve fazer a uma pessoa da minha idade. Vá, diga-me.
— Bem — admite sem qualquer malícia —, pois disse que aproveitasse para lhe pedir que nos devolvam Gibraltar.
Agora eu também me rio.
— Na verdade, acho que isso não está nas minhas mãos.
Fico surpreendida ao reparar de repente que na sua voz há um certo tom de desculpa. Pensei que ela devia achar o comentário da sua mãe tão disparatado como eu.
— Infelizmente, os meus pais não têm uma posição muito liberal. Estão demasiado próximos, para dizê-lo de alguma forma, deste regime.
— E a senhora não gosta disso — atrevo-me a dizer.
— Claro que não. Cria-me muitos problemas, sobretudo com o Matías.
— Eu percebo.
Não gosto dessa expressão de pesar no seu rosto. Essa não é a Lola que eu conheço.
— A senhora às vezes sente-se dividida, não é?
Vira a cabeça e olha-me atentamente.
— Sim — reconhece —, é verdade.
— Não se preocupe; isso é porque ainda ama os seus pais. Se não existisse esse afeto pelo meio, não sentiria qualquer contradição.
Continua a olhar-me fixamente, como se quisesse descobrir alguma coisa que não está à vista.
— Porque é tão fácil falar consigo sobre certas coisas? — pergunta, imagino que sem esperar qualquer resposta da minha parte. — Acho que não tive este tipo de conversas nem com as minhas melhores amigas.
Agora sou eu que a observo pensativa.
— Sabe porquê? — Faço uma pausa. — Por esse livro — digo apontando para A Rapariga dos Cabelos de Linho. — Habituámo-nos a partilhar a intimidade de Rose Tomlin, o seu mundo secreto. E isso predispõe-nos para as confidências.
— Sim — reconhece Lola —, é possível. — Levanta-se e pega nele. — Já agora… — acrescenta um segundo antes de se sentar de novo. — Obrigada por me ter ajudado no outro dia.
No início não a percebo.
— Com o tal homem.
— Ah… Não tem de agradecer.
— Não queria por nada do mundo — comenta com preocupação — que isto lhe causasse algum tipo de problema com as autoridades espanholas. Porque podiam mandá-la de volta para o seu país, não é?
Outra vez essa expressão de pesar que lhe deixa o rosto tão feio.
— Não, querida, não podiam. Garanto-lhe, pode ficar descansada.
Estou tentada a explicar-lhe como funcionam as coisas, mas não o faço. Há tempo que me precavi em relação a esta longínqua possibilidade. Para alguma coisa tinha de servir ser filha de quem sou.
— E sabe uma coisa? — digo de seguida. — Acho que esse sujeito não voltará a incomodá-la.
Lola adota uma certa expressão de dúvida, como se julgasse que isso não é possível. Mas eu sei que é. Neste momento, poria as minhas mãos no fogo por isso.
Depois do cemitério. Com a lembrança de Paris na memória… Quando Henry e Owen ainda estavam vivos e éramos capazes de tudo.
Sim. Depois do cemitério.
Vou a pé até à rua Infantas. É hora do almoço.
Na esquina da Alcalá, cruzo-me com uma carroça puxada por dois cavalos percherões. Leva oito barris grandes acondicionados de pé. Suponho que faz a distribuição da fábrica de cerveja que vi quando ia no autocarro. Dentro de pouco tempo estas carroças vão desaparecer e pelas ruas de Madrid só se verão camiões, elétricos e automóveis, como em Paris.
Há pouca gente na Gran Vía e ainda menos ao virar a esquina, passando pela rua Reina e entrando na Infantas. Infelizmente, o prédio onde se encontra a pensão Ruano não tem porteiro. É uma pena, porque as conversas com os porteiros são a minha especialidade.
A porta de entrada está aberta, por isso subo ao primeiro andar e toco à campainha. Também tem aldraba, mas é melhor não fazer muito alarido.
Abre-me a porta um homenzinho com o cabelo cheio de brilhantina e um bigode com as pontas enceradas reviradas para cima. Não é muito alto, mas tem as costas largas, como um halterofilista.
— Desculpe incomodar — digo com o meu melhor sorriso e o meu sotaque inglês tão acentuado quanto me é possível; sei que isso dá resultado. — Estou à procura de uma pessoa e acho que é cliente da pensão. A última vez que o vi estava hospedado no andar de cima.
O homem olha para mim a estranhar.
— De cima? — pergunta. — Isso é impossível. A pensão só tem este andar. No andar de cima há duas casas particulares.
Fico desconcertada. Pelo que Lola me tinha contado, julguei perceber que se encontravam no quarto de uma pensão.
— Como é a pessoa que procura? — pergunta o homem.
— Bem, deve ser mais ou menos da minha idade. É da sua altura.
Tenho muito cuidado para não lhe dizer que é um tipo de estatura baixa.
— E tem um daqueles bigodinhos que marcam uma linha um pouco ridícula, não sei se me está a perceber…
O homem põe instintivamente as mãos no seu bigode farfalhudo. Os olhos brilham-lhe de satisfação.
— Acho que é polícia ou alguma coisa assim.
Faz-me um sinal.
— Entre, entre, é melhor falarmos cá dentro.
Fecha a porta olhando para o cimo das escadas.
— Não é polícia — diz-me assim que a fecha. — É seu amigo?
Reparei num leve tom de prevenção da sua parte.
— Não, que ideia — respondo para que ganhe de novo confiança. — De todo. Antes pelo contrário. Estou à procura dele para lhe dar um recado de outra pessoa. É que esse homem está a dever uma coisa a uma amiga, percebe?
Acertei em cheio. Aparentemente, o da caneta Parker não é visto com bons olhos no prédio.
— Quem lhe dera a ele ser polícia — solta com amargura. — É só um bufo que ajuda o pessoal da Brigada dos Costumes e anda por aí à procura de pessoas para denunciar.
Julgo intuir de onde vem o seu ressentimento.
— Não sei se está a ver — insiste o homem sem que seja necessário, porque o compreendi perfeitamente —, pessoal do espetáculo, mulheres libertinas, homossexuais… A senhora é estrangeira, não é?
Exagerar o meu sotaque deu o resultado que esperava. Admito que sou.
— Então já sabe como é que são essas coisas.
Não sei muito bem a que é que se refere nem qual é a relação entre a minha nacionalidade e o tipo que assedia Lola. Embora me pareça que se sente mais à vontade com alguém de fora e que não irá à esquadra dar com a língua nos dentes.
— E então não vive aqui?
— Na pensão? Não. Vive no andar de cima. Mas agora não deve estar. A mulher dele, sim; acabo de me cruzar com ela nas escadas.
Bem. Isto está a funcionar.
— O senhor não gosta muito desse homem, pois não?
Abri as comportas. A água sai a jorros. Traz troncos, pedras, lama… Arrasta anos de ressentimento com ela. Conta-me que foi esse sujeito que denunciou um «amigo» — e sublinha-o para que eu me dê conta, se quiser, de que tipo de amizade se trata —, e estende-se na descrição da sova que lhe deram. «Moeram-no de pancada», comenta com amargura, e depois conta-me a história de uma pobre mulher que tinha de trabalhar na rua para sustentar os seus filhos, e esse tipo metia-a continuamente no calabouço, não por moral, nem nada, só para fazer mal a uma pobre infeliz que não se podia defender.
— Não é flor que se cheire — conclui. — Tenha cuidado.
Quando lhe dou a mão para nos despedirmos, tenho uma ideia muito clara sobre quem estou a enfrentar. Mas ainda falta o mais importante. Antes de fechar a porta, quando já estou no patamar, o homem baixa a voz.
— Mas ouça o que eu lhe digo: na rua pode ser um valentão, mas é ela quem usa as calças em casa. A mulher mantém-no na linha. Quer saber porquê? — Aproxima-se um pouco e baixa ainda mais a voz. — O pai é Martínez Saglés. Sabe quem é?
Nego com a cabeça. O homem olha para um lado e para outro.
— Falangista. Um dos mandachuvas de Franco. É um bronco, mas esteve prestes a ser governador civil várias vezes. Por isso já pode imaginar quem é que manda nessa casa…
Sabia que esta visita seria essencial. Sabia. Tenho vontade de beijar o homem da pensão.
Dez minutos depois estou sentada numa cadeira forrada de verde na sala de jantar mais feia que já vi na minha vida, com uma mulher desgrenhada que fala em voz alta. E então, finalmente, abre-se a porta. Esperava ansiosamente por este momento.
Ele fica petrificado quando me vê. Não pronuncia uma única palavra.
— Está aqui uma senhora que te veio visitar — diz a sua mulher sem muitos preâmbulos.
— Sim… é que estávamos muito preocupados na livraria — lanço de seguida, antes de ele reagir. — Como o senhor é um cliente habitual…
A mulher olha para nós, sem dar crédito ao que está a ouvir. Tenho a certeza de que nunca o viu com um livro na mão.
— É que há dois dias, quando veio deixar a caneta — explico para que tudo adquira um tom verosímil —, nos esquecemos de lhe dizer que vamos fechar o negócio e que já não o poderemos atender. — Parece que não me entende. Ou não me quer entender. — Bem, comentava com a sua mulher que o senhor é cliente há muito tempo, desde a época da guerra, e estava prestes a contar-lhe qual foi exatamente o teor da sua relação com os donos nessa época quando o senhor chegou.
Começa a ficar muito nervoso. Então tiro a caneta do bolso do meu casaco e entrego-lha. Ele pega nela e continua mudo e quedo.
— Assim sendo, fico contente por a ter trazido pessoalmente e por ter conhecido a sua esposa. Já agora, aviso-o de que não se dê ao trabalho de ir à livraria, porque não encontrará o que o senhor procura. Nunca mais. — Acho que agora percebeu. — Enfim — digo levantando-me —, deixo-os, pois devem querer almoçar. Se precisar de alguma coisa, podemos trazer-lha a casa, agora que sabemos onde mora. Eu própria virei e tratarei do assunto com a sua esposa. Parece-lhe bem?
Não sei o que responde nem me interessa. Missão cumprida.
— Queria propor-lhe uma coisa.
De repente regresso à realidade e vejo Lola no mesmo sítio, com o livro na mão. Não sei quanto tempo estive absorta.
— Gostaria de convidar a senhora e o seu filho para jantarem connosco na noite de Natal.
Fico surpreendida. Tanto que não sou capaz de reagir.
— O que acha? Quer pensar no assunto?
— Bem…
— Não precisa de me responder já. Fale com ele. Eu também não disse nada ao Matías, mas de certeza que vai gostar da ideia.
— Agradeço-lhe muitíssimo. Mas não sei… Vocês devem querer estar em família.
Lola nega com a cabeça.
— Não, nós jantamos sempre sozinhos. E por uma vez gostaria que não fosse assim.
— E os seus pais?
Volta a ficar séria. Ou triste. Ou uma mistura das duas coisas.
— Eles também jantam sozinhos.
Percebo que não devo perguntar mais nada. Ouço que alguém entra no átrio. Por um instante penso no homenzinho do bigode, mas felizmente é o empregado.
— Hoje não temos churros — diz, colocando a bandeja no balcão. — Morreu um familiar da senhora que faz os churros e fecharam; mas trouxe-vos uns croissants muito bons. — Destapa a bandeja. — Se não gostarem, levo-os agora mesmo e trago-vos outra coisa; uma torrada com doce ou umas madalenas.
— Por mim está bem — diz rapidamente Lola.
— Deixe os croissants — respondo eu. — Têm um ar ótimo. E não é preciso regressar para vir buscar as chávenas; eu posso levá-las quando me for embora.
— De maneira nenhuma — protesta o homem. — Eu venho sempre que for necessário, era só o que faltava. — Pega no jarro e serve-nos o leite quente. — Bebam-no antes que arrefeça. — E depois baixa muito a voz: — Vão ver que bom que está o café hoje. É brasileiro… O chefe comprou-o no contrabando.