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Bonnie, Owen, Henry e eu decidimos viajar juntos para Espanha nessa primavera, para visitar Jordan que continuava em Valência. Fizemos uma longa viagem de três dias em comboio. Passámos a primeira noite na fronteira e na segunda, embora pudéssemos ter continuado o caminho, dormimos numa pensão em Barcelona. Owen tinha muito interesse em conhecer esta cidade porque, ao que parece, em Paris tinha mantido contacto com um músico catalão de cujo nome não me lembro e este tinha-lhe falado tanto dela que a idealizou. Bonnie adorou Barcelona, porque havia muitos cafés abertos a toda hora, e a mim lembrou-me algumas das cidades italianas que tinha conhecido. Gostei sobretudo do clima, da temperatura, suave e levemente húmida, com a tepidez que a costa arrebata ao mar.

Vou lembrar-me para sempre do trajeto de Barcelona a Valência durante a noite, num comboio aos solavancos que parecia parar a cada momento. Era difícil dormir ali. Viajávamos num compartimento de seis pessoas, mas em Tarragona saiu o homem que ocupava um assento duplo e ficámos só os quatro. Bonnie e Owen dormiam abraçados. Owen ressonava de vez em quando, de forma irregular, e cada vez que eu estava prestes a adormecer acordava com um dos seus repentinos roncos. Lembro-me de que Henry tinha apoiado a cabeça entre o encosto e a separação dos assentos, que tinha a forma de um peito de pombo, e parecia estar a dormir. Eu fiz o mesmo contra o caixilho da janela, mas não consegui: por esta altura da noite já estava completamente acordada. A sensação de ter um buraco cheio de ar no estômago também não ajudava muito. De qualquer forma, gostava de estar ali acordada, em vigília, alerta; sentia-me como se fosse acontecer alguma coisa extraordinária.

Olhava para o nosso reflexo no vidro da janela e para os nossos rostos, os dos quatro, que se projetavam contra as sombras do exterior. E então, muito suavemente, como se alguém fechasse uma cortina escura e deixasse passar a luz pouco a pouco, amanheceu. E ali, à minha esquerda, estava o Mediterrâneo, cinzento e neutro a princípio, um pouco prateado depois e no fim, quando o sol se levantava pelo horizonte, extremamente azul. Só havia três cores nesta paisagem: o verde dos pinheiros, o pardo da terra e o azul do mar, mas nessa simplicidade parecia estar encerrada toda a gama do arco-íris. Era como se desse mar e desse litoral nascessem todas as coisas.

Fiz muitas viagens ao longo da minha vida, mas esta é uma das que nunca poderei esquecer. Henry acabava de regressar de Inglaterra e eu tinha-lhe contado o que se passara com Roger. Ele só me perguntou:

— Há algum motivo para eu me preocupar? Queres ficar com ele?

Eu garanti-lhe que não e ele acreditou em mim. Nunca mais voltámos a falar sobre esse assunto. Roger e todos os Rogers deste mundo desvaneceram-se para sempre.

E agora ele dormia naquele comboio espanhol e eu velava o seu sono sabendo que ficaríamos juntos toda a vida. O sol elevava-se, inundando tudo de uma luz dourada, e o mar parecia próximo e tentador.

Jordan e Elisabeth estavam na gare à nossa espera. Lembro-me dessa imagem como uma das últimas que tenho dos dois juntos. Anos mais tarde, em 1938, quando cheguei de novo a Valência, teria adorado que estivessem à minha espera, mas dessa vez eu e o medo aparecemos sozinhos naquela estação em guerra.

Todos adorámos Valência. Jordan e Elisabeth viviam no centro, num hotel que curiosamente tinha o nome «Hotel Inglés» pendurado da fachada. Durante os poucos dias que passámos na cidade, na maior parte do tempo fomos de café em café e de tasca em tasca. Chegámos a conhecer estabelecimentos de todo o tipo: tabernas, bodegas, baiucas, armazéns de vinho, cervejarias, cafés, bares de cocktails, só bares, mercearias que serviam vinho, quiosques na rua, esplanadas nos parques, bares na praia, barracas de feira… Nunca pensei que numa cidade pudessem existir tantos lugares onde beber.

Entre um estabelecimento e outro, Jordan foi-nos apresentando os seus amigos espanhóis. Eram pessoas simples, alguns jornalistas ou escritores locais, algum pescador e até um engraxador muito risonho. Todos falavam aos gritos. Jordan era o único que conseguia entendê-los, mas tanto eu como Henry ficámos surpreendidos perante a quantidade de amigos que ele e Elisabeth tinham feito em poucos meses. Até me lembro de que disse a Henry que devíamos ter sido um pouco mais sociáveis. Ele olhou-me com o seu meio sorriso e depois passou-me a mão pelo cabelo como se eu fosse uma rapariguinha. Não gostava que ele me tratasse assim.

Valência. Sol. Calor. Lembro-me de estarmos deitados naquele hotel, enredados nuns lençóis levemente húmidos, com a janela aberta de par em par. Henry tinha o cabelo colado à testa pelo suor e deslizava os seus dedos de maneira mecânica pela cavidade que havia entre o osso da minha anca e a barriga.

— Estás a suar — disse-me.

— Eu não suo — respondi. — Derreto.

Ele soltou uma gargalhada e apertou-me contra o seu corpo. Depois, ao envelhecer, essa cavidade desapareceu, acho que já não a tenho e, de qualquer forma, já ninguém poderá deslizar a sua mão por ela.

Um belo dia viajámos para o Sul, entre quintas com laranjeiras e edificações terrosas já sem fachadas caiadas.

— Alcarias, chamam-se alcarias. É uma palavra árabe — comentou Jordan.

Chegámos a um lugar onde havia uma espécie de povoação com grandes palmeiras cheias de tâmaras. Jordan parou o carro.

— Acho que estamos perdidos.

Todos tentámos colaborar, mas Elisabeth ficou um pouco nervosa porque tinha deixado o filho em Valência.

— Não fiques histérica — lançou-lhe Jordan. — Estamos apenas a dez quilómetros de Valência; se quiseres podes voltar a pé.

Ficámos em silêncio. Elisabeth virou-se docilmente para Bonnie.

— É que nunca o deixo sozinho — quis justificar-se. — E também não conhecemos muito bem aquelas pessoas.

Owen e Jordan tinham-se aproximado da casa para perguntar.

— Não te preocupes — disse Bonnie, agarrando afetuosamente Elisabeth pelos ombros —, estaremos de volta à hora prevista: depois do almoço. Prometo-te. E não vai ser a pé, como diz o teu marido.

O sol aquece com força quando, depois de entrarmos todos no carro, iniciamos de novo o caminho. Surpreende-me que Elisabeth e Jordan se comportem como se nada tivesse acontecido.

— Chegámos!

Miller parou o automóvel ao pé de uma casinha sem janelas e com o telhado de palha. É um telhado muito pontiagudo, de duas águas, como algumas velhas cabanas normandas. Tem uma cruz de madeira em cada um dos extremos.

— Isto é a Albufera — diz Jordan visivelmente satisfeito com o seu sentido de orientação.

Estamos à beira de um lago. Elisabeth sai do carro e abraça-se feliz à sua cintura. Eu e Henry olhamos um para o outro, Bonnie murmura alguma coisa que eu não entendo e Owen encolhe os ombros, dirige-se ao porta-bagagens e tira um odre de vinho, um saco de pele de animal que serve para beber sem copo.

— Temos de beber pelo gargalo, «a morro», como dizem os espanhóis.

Jordan faz-nos uma demonstração: pega no odre com as duas mãos, levanta-o, aperta-o e um pequeno jorro de vinho bate-lhe nos dentes.

Todos provamos. É divertido.

Não sei quando é que os pescadores chegaram, nem quando é que cozinharam a comida no interior da barraca. Lembro-me de que eu e Henry passeámos pela margem, a contemplar as estacas que põem para estenderem as redes. Há gaivotas e corvos-marinhos pousados em cada uma delas. Tem tudo um aspeto aprazível, mas, independentemente do sítio para onde olhamos, vê-se o trabalho esforçado das pessoas que vivem à volta da lagoa.

Ainda nos vejo a todos nós, ali, em território espanhol, a beber e a comer felizes. E lembro-me da dignidade que aquele pescador e a sua família transmitiam. De regresso ao carro, enquanto Bonnie protestava com o cheiro a alho que emanávamos todos ao falar, Jordan disse:

— Há demasiados homens e mulheres no mundo que deviam ser homenageados.

Nessa viagem consolidou-se a amizade que eu e Jordan tínhamos iniciado em Paris e que, mais tarde, manteríamos por carta. Foi também naquela altura que a data e as circunstâncias da morte de Henry foram definidas, embora nenhum de nós o soubesse.

Foi ao regressar de Espanha que soube que Sarah se tinha suicidado.