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Na quinta-feira de manhã, Lola acordou mais cedo que de costume. Também adormeceu mais tarde. Esteve a dar voltas na cama, a pensar em mil coisas, todas ao mesmo tempo, todas muito depressa… Parecia ter um carrossel na cabeça.

Agora está ali, no calor da sua cama, com aquele que é o seu marido e tem sido durante os últimos quinze anos. Matías é tudo para ela, mas o carrossel não para de dar voltas. Gira e gira, levando as palavras de Matías que se repetem sem parar: «Acho que devíamos casar.»

Foi ontem à noite. Estavam a acabar de jantar. Ela está a descascar uma laranja e ele acaba de acender um cigarro com esse isqueiro de pavio que usavam na guerra para acender as granadas e que a deixa doente assim que o vê.

— Acho que devíamos casar. — Olha para ela expectante por cima do fumo do cigarro recém-aceso. Depois acrescenta com calma: — Agora que a Adela morreu, já não há nenhum inconveniente.

Lola é mais temperamental e às vezes reage bruscamente.

— Queres dizer que era isso? — Larga a faca em cima da toalha com demasiado ímpeto; o golpe sobressalta-o e a ela também. — Que dependia tudo da Adela?

Ele mostra-se muito calmo. Parece estar preparado para esta reação.

— Sabes muito bem que legalmente não podíamos.

— Pois — responde ela em tom despeitado —, mas pensei que eu e tu já tínhamos casado legalmente. Pelo menos, era isso que dizias antes.

— É verdade — reconhece Matías. — Para mim tu foste a minha mulher legítima e eu senti-me teu marido de pleno direito, sabes perfeitamente.

— E então, se era tudo tão legal, porque é que agora vens com essa história de nos casarmos outra vez? Vais-lhes dar razão?

Matías esconde o rosto atrás de uma baforada. Parece sereno, mas Lola sabe que pôs o dedo na ferida.

Quando a olha nos olhos, uns segundos depois, parece subitamente abatido.

— Isto não vai mudar, Lola. Temos de o admitir de uma vez por todas. E se me acontecer alguma coisa, eu não quero que fiques desprotegida.

Desarma-a com essa atitude. Lola pega-lhe na mão através da mesa.

— Está bem — diz. — Deixa-me pensar no assunto com calma. E agora vamos para a cama que eu estou a morrer de frio.

Nessa noite já não falam mais. Mas o que não é dito pelas palavras é dito pela pele. Lola põe os pés entre as coxas de Matías e acomoda-se na cavidade do seu ombro. No carrossel vê Rose Tomlin que lhe sussurra: «A minha pátria era a cavidade de um ombro…» Matías acaricia-lhe o mesmo braço uma e outra vez e ela não se mexe até que por fim ele adormece. E depois a noite continua, lenta, desmesurada, como se no sono de Matías e na vigília de Lola se juntassem todas as horas do mundo. Um mundo cheio de minutos, muitos tiquetaques produzidos por relógios invisíveis, enquanto o carrossel dá voltas e aparece constantemente o rosto da Rapariga dos Cabelos de Linho.

Adormece. E acorda.

Essa rapariga de cabelo louro que tem um vestido de renda azul-celeste. O que está a fazer em cima de um cavalo de cartão-pedra? Porque é que tem o diadema de Frances na cabeça?

O carrossel gira. Matías dorme.

De repente, vê o rosto de Adela, com uma expressão austera e amarga, e o da sua mãe que lhe acena alegremente com a mão. Todas em cima de um carrossel que dá voltas e voltas…

Adormece.

E acorda.

Matías abraça-a pela cintura e ela não se consegue mexer. Não faz mal. Está bem assim.

Está completamente acordada quando ele se levanta, mas não abre os olhos. Ouve-o entrar e sair da casa de banho, ouve-o vestir-se e, quando ele se baixa e lhe dá um beijo na testa, diz:

— Não me quero levantar. Dormi muito mal.

Matías sorri.

— Então dorme um bocadinho mais.

Não o faz. Apesar de tudo, levanta-se. Hoje tem de ficar na loja. Matías preparou o café e um pouco de pão frito com açúcar.

— Está delicioso — reconhece.

Ele parece estar de bom humor.

— Então, vou-to fazer mais vezes.

Vestem os casacos, saem juntos de casa, caminham pelo passeio, atravessam uma passadeira… E é então que se atreve a dizer-lhe:

— Não vou casar contigo.

Matías para e vira-se para ela, que se vê forçada a fazer um movimento estranho.

— Porquê? — pergunta ele.

Não saberia dizer se a decisão o magoa, mas o seu semblante é grave.

— Vamos andando, está muito frio.

— Não. — Matías retém-na pelo braço. — Isto é importante. Porquê?

Lola também está séria.

— Eu e tu já somos casados, lembras-te? Casámos em 1936, justamente quando a guerra começou. Fomos ao Tribunal. Deram-nos uma certidão de casamento. Foi tudo completamente legal.

— Tens a certeza daquilo que estás a dizer? Porque já sabes o que as pessoas pensam. Os teus próprios pais, sem ir mais longe.

Matías nunca tinha feito qualquer referência aos seus pais. Era um tema tabu entre eles. Lola está prestes a desatar a chorar. Mal dormiu e tem a alma e os nervos cansados.

— Eu sei muito bem quem sou — diz com uma segurança que até a surpreende a ela própria. — E também quem são eles; não te preocupes. — Empurra-o levemente para que ele comece a andar. — E agora vamos embora. Estou a morrer de frio.

Quando chegam à livraria e ele está a subir a persiana, Lola lembra-se.

— Já agora, este ano temos mais uma convidada para o jantar de Natal.