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Fragmentos, retalhos de vida.

Jordan Miller veio visitar-nos em várias ocasiões. Aparecia e desaparecia durante um ano ou dois. E depois voltava a surgir como se nos tivéssemos visto na tarde anterior.

Lembro-me claramente da primeira vez em que esteve na Croft House. Apareceu de surpresa assim que o seu romance foi publicado na Europa. Nem sequer tínhamos conseguido lê-lo. Segundo nos disse, ia a caminho de Londres. Sem dúvida, a nossa casa não estava em nenhuma rota que levasse a Londres, a não ser que alguém tivesse desembarcado numa das falésias da zona, e acho que esse não era o caso.

A princípio, Henry não conseguia suportá-lo. Mas aconteceu-lhe o mesmo que a mim com Owen, passou do desprezo ao apreço como se as duas palavras, além de terem a mesma raiz, corressem uma atrás da outra.

No que se refere a mim, tenho de reconhecer que gostava de ver Jordan Miller durante alguns períodos, de preferência curtos, porque me trazia notícias dos velhos amigos. Dessa vez contou-me que Dick e Maida continuavam a beber e a discutir com a integridade de dois pugilistas dispostos a não perderem nenhum combate. Pena que já os tenham perdido todos, acrescentou sem qualquer compaixão… Bonnie estava em Barcelona a cantar de novo em clubes de jazz. Ela também tinha escrito um livro e, na opinião de Jordan, só o tinham publicado porque falava da sua relação com Owen Lawson e contava todo o tipo de detalhes escabrosos. Roger tinha casado com uma nova-iorquina rica e agora vivia à grande e à francesa. E assim, com uns e com outros, conseguimos passar dois serões sem falarmos de nada verdadeiramente importante.

— O sucesso fez com que o seu ego seja menos inapropriado — comentou Henry quando ele se foi embora, por fim, a caminho de Londres, desta vez pela rota correta.

Mais lembranças que chegam sem pedir autorização…

Eu e Henry estamos em Paris, na casa da rua de Surène e Jordan aparece de surpresa com uma mulher jovem que não é Elisabeth. Ficamos a saber nesse momento que se divorciaram e que ele voltou a casar imediatamente com esta rapariga que tem uma blusa de seda e parece demasiado jovem. Não pergunto detalhes, e é melhor assim. Também não pergunto pela coitada da Elisabeth, mas ele dá-nos a entender que a relação e a própria Elisabeth tinham envelhecido após dez anos de casamento…

A nova esposa chama-se Muriel e a sua principal qualidade é estar louca por Jordan. Isso, sem dúvida, é evidente. Tão evidente que às vezes é incómodo. Eu e Henry não temos por hábito beijarmo-nos a meio do jantar ou tocarmos um no outro se estamos acompanhados. Quando vamos para a cama, Henry lança:

— Que canseira ver tanta paixão. Estou esgotado.

E depois Owen. Ainda hoje, depois de tantas coisas que nos aconteceram, me pergunto como diabo se meteu desta maneira nas nossas vidas.

Desde os tempos de Bonnie que nos víamos com frequência, tanto em Sussex — sobretudo quando ele se mudou definitivamente para Inglaterra —, como em Paris, quando passávamos lá longas temporadas para compensarmos a pacífica vida no campo. Às vezes Henry dizia que parecíamos um casal de três. Também era diferente com Felicia, uma escultora inglesa com quem nos começámos a relacionar durante os longos invernos na Croft House e que às vezes parecia viver na nossa casa.

E, além disso, havia Constance, a minha meia-irmã.

Acho que Jordan e Constance se conheceram numa ocasião. Não me lembro bem da cena, mas sei que Jordan me disse:

— A tua irmã faz-me medo. As pessoas como ela têm a virtude de arrastar os outros para um mundo extremamente aborrecido.

A verdade é que Jordan tinha mais medo do aborrecimento do que da morte.

Nesses anos viajámos muito pela Europa. Itália, Grécia, o sul de França… É curioso, porque tudo o que queríamos ver estava à volta do Mediterrâneo. Todos os anos fazíamos uma viagem, e Owen vinha sempre connosco. Sozinho ou acompanhado. Na maior parte das vezes acompanhado, devo dizer. Tenho dificuldade em lembrar-me dele sem uma mulher ao lado, mas sei que, em segredo e sem o confessar, sempre teve saudades de Bonnie. Quando todos julgávamos que se odiavam, um ou outro fazia uma fugaz entrada em cena que, sempre sem exceção, acabava com uma colossal discussão. Acho que agora os dois dedicavam o mesmo entusiasmo a odiar-se que antes a amar-se.

Em suma, Owen tinha-se instalado nas nossas vidas de pleno direito. Para o bem e para o mal. Sempre ajudou Henry, proporcionando-lhe contactos, apresentando-lhe pessoas e partilhando com ele todas as amizades que tinha feito ao longo dos anos.

Também me lembro — disso nunca me vou conseguir esquecer, mesmo que quisesse — de uma época em que Owen desapareceu. Quando regressou a Inglaterra vinha com Bonnie. Não era nada de extraordinário, já tinha acontecido outras vezes, mas agora ela estava doente, não sabíamos até que ponto; acho que nem sequer o próprio Owen sabia. Tinha-a resgatado num estado lamentável de uma pensão suja na fronteira espanhola e cuidou dela com um amor infinito, até que a alegre Bonnie de voz triste como as madrugadas morreu. Não restava nada daquela rapariga que cantava no escuro Blue Storm, enquanto sobrevivia à base de cocktails. No dia da sua morte, depois de regressar do cemitério, preparei uns Manhattan em sua honra e eu, Henry e Owen embebedámo-nos tentando fugir da realidade e ficarmos mais próximos dela.